sexta-feira, abril 23, 2010

O Inspector

Sinto muito a sua dor, começou por dizer o inspector através da ligação de telemóvel que atravessou o rio, que galgou a Baixa Pombalina, e que desceu as escadinhas do metro, abalroou a multidão até às profundezas do cais de embarque.

Eu espero que não a sinta mesmo, que seja apenas uma frase de circunstância, Inspector. Desculpe-me se o ofendo, agradeço-lhe de qualquer forma, mas livro-o desse fardo, de querer sentir a minha dor.

É que eu venho trabalhar todos os dias, eu obrigo-me todos os dias a vir trabalhar.

E fico pacientemente à espera da terceira porta da primeira carruagem no átrio do Intendente, sentido Cais do Sodré, bem atrás da linha amarela de segurança. E eu não sou a mesma desde aquele dia, eu temo nunca mais vir a ser a mesma.

Eu fico atrás da linha amarela e penso no dia em que alguém se vai atirar à linha mesmo à minha frente, estou sempre a pensar nesse dia, imagino o som do embate, os travões da carruagem a chiarem, e no silêncio que se vai fazer depois.

Eu agora sei que se faz silêncio, como se uma bomba tivesse estoirado mesmo ao nosso lado e só se conseguisse ouvir um zumbido agudo, apesar de as bocas se abrirem para soltar o grito, eu sei que só se ouve silêncio, no máximo só se ouve um zumbido.

Eu não sei quando esse dia vai chegar, se vai ser do outro lado do cais, se vai ser à minha frente ou um pouco mais distante, tanto faz, porque eu já vi esse dia acontecer à frente dos meus olhos; esse dia acontece todos os dias à frente dos meus olhos.

Eu posso tê-los fechados, eu posso tentar entreter-me, tapar os olhos com as mãos em concha, ou esfregá-los para me livrar dessa imagem, ler o jornal, olhar para as feições das pessoas sentadas ao meu lado, por isso, acredite, inspector, não queira sentir a minha dor, porque se eu não trago o meu crochet que me anestesia, e se por algum acaso a minha mãe não consegue atender-me o telefone quando estou bem atrás da linha amarela de segurança, tudo recomeça de novo à frente dos meus olhos, e eu volto àquele dia, eu estou sempre a voltar àquele dia.

E naquele dia fez-se silêncio, e um breve zumbido talvez, e depois, curioso, uma única nota, eu que oiço música na minha cabeça, eu que tenho uma orquestra inteira cá dentro, e só há pouco tempo percebi que nem toda a gente tem música na cabeça, mas naquele dia, e durante tantos outros que se seguiram, eu só ouvi um dó, só um dó, martelou durante tanto tempo, só um dó, durante tantas semanas apenas um dó, e foi a primeira vez que eu não tive uma orquestra na minha cabeça, diga-me, por isso, que não sente a minha dor.

Eu continuo a fazer piadas parvas, inspector, eu continuo a fingir que a minha pele é de couro grosso, inquebrável, mas eu assino o meu nome sempre com um travo a sangue, inspector, eu estou espalhada pelo chão, em pequenos estilhaços, e não quero que ninguém se atreva a apanhá-los, eu não quero que os meus filhos me vejam, que o meu marido me abrace, porque fui eu que os arrastei a todos para uma casa assombrada; eu temo não por mim, mas por eles, temo para onde os vou arrastar da próxima vez, e eu lamento ter que o arrastar também a si.

Eu fui à lista telefónica. É coisa dos tempos de jornalista ainda, parece que não perco os tiques de jornalista nunca, que isso também nunca vai passar. Nada de Internet, nas Páginas Amarelas há mesmo de tudo, passeamos o indicador de cima para baixo e há notícias a cada folhinha com a gramagem de papel de Bíblia. Disquei o seu número, sem qualquer esperança, eu disquei o seu número como quem disca uma linha de apoio ou de valor acrescentado à procura de consolo ou ajuda.

Nunca esperei que me ligasse de volta. E agora não sei bem o que pretendo de si. Não esperava que me ligasse e agora estou no metro, e essa é a fase mais difícil do dia, quando estou no metro, recomeça tudo outra vez.

Minto. Eu sei o que quero de si. Queria que me dissesse o que sabe, Inspector, que me inventasse uma história, de tantas que já viu, de tantas que foi obrigado a ver. Eu não estava lá, e preciso que me diga o que viu, Inspector, que me leia os seus relatórios em voz alta, provavelmente quero que me mostre as fotos e o processo inteiro. Talvez assim eu consiga acordar todos os dias sem ter a cama coberta de pólvora.

Eu sonho todos os dias com aquela manhã, inspector, como se tivesse estado atrás da porta, ou do voile transparente das cortinas a assistir a tudo. Vejo todos os detalhes, a moldura e a foto da minha filha recém-nascida ao colo do tio, o candelabro com os anjinhos e a vela vermelha, as gravuras das aves em cima da cabeceira, o retrato da minha avó ao lado da janela, a bandeira da Suíça e a chaminé do Barreiro a assistirem a tudo e, tal como eu, sem poderem soltar um grito, pedir socorro.

E pergunto-me também se a cama estaria feita com os lençóis às florinhas que eu tanto gostava, a última vez que eu fui ao quarto fiz a cama com os lençóis às florinhas.

O inspector ficou em silêncio. A este ponto, a carruagem seguia dentro do túnel e guinchava talvez em protesto pelo pedido que havia sido feito.

Eu não posso ajudá-la, disse. Lamento, não posso mesmo, ninguém saberá nunca o que se passou, não consigo ajudá-la, perdoe, mas é sempre assim, levo demasiados anos nesta profissão para saber que é assim, não é possível saber exactamente o que se passou.

A cabeceira da cama sabe.

O retrato da senhora morena pendurado ao lado da janela sabe.

Ninguém mais saberá.

É tão triste quanto isto, ninguém saberá, e eu fiz o meu trabalho, fi-lo bem, acredite, mas as coisas são mesmo assim - não seria justo dizer-lhe o contrário.

E a sua cabeça há-de voltar a ouvir música, acredito que sim, é apenas uma questão de tempo, talvez não seja já amanhã, mas há-de voltar a ouvir música, talvez ao início um pouco fora de tom, talvez não consiga a afinação perfeita nunca mais, mas, juro-lhe, à medida que o tempo passa torna-se quase suportável, há-de voltar a ouvir música, isso lhe garanto.

E desculpe-me que o volte a dizer. Mas sinto muito a sua dor.