segunda-feira, outubro 30, 2006

Bocarras

O Ricardo estava aflito, um erro de casting, uma brincadeira de mau gosto, nada mais, nada menos, do que um menino largado nas mãos daquele tonto, e, caramba, era um menino feio, daqueles muito inchados e roxos em que os familiares e amigos apenas conseguem esboçar um “que querido”, colados ao vidro do berçário da maternidade.

Catrefadas de caracteres,

(no jornalismo, a prosa mede-se nesta unidade. Em vez de dá-me aí 250 gramas desta merda é mais, arranja-te como quiseres, enche chouriços, mas preciso de três mil caracteres mais entrada para ontem. E, com tempo, aliás, mentira, o que me falta é mesmo inspiração e não o tempo, irei escrever neste buraco escuro onde já só pairam meia dúzia de almas resistentes, o poder de mil e quinhentos caracteres numa página par, aquela que, dizem as estatísticas, é menos lida nos jornais)

um trabalho sobre spreads, taeg's, tanb's, armadilhas pérfidas escondidas na banda magnética do cartão de crédito e no dinheiro fácil conseguido por telefone sem perguntas indiscretas, através do chamariz de anúncios idiotas, e ainda há pouco tempo eu era jornalista de economia, melhor, ainda há pouco tempo fiz um crédito à habitação, por isso, acabámos por comemorar seis meses de estado de graça total, com o Ricardo, no Magnólia, com tostas de presunto à frente dos narizes, no local onde, outrora, há muito tempo atrás mesmo, eu comia com o Zé Ralha, elaboradíssimos gelados durante o Inverno, na defunta cafetaria do Londres.

Uma tosta de presunto finíssima, coisa de autor, de fast food armada em slow food, cogumelos e courgettes, e eu disse-lhe, fora de brincadeiras, quase com o mesmo tom que o André lançou à mesa de um recanto escondido no Bairro Alto, que estava com vontade de um rock rural algures entre as flores e o Corvo:

Se eu me tornar redundante, se me passarem um cheque para a mão, já sei o que vou fazer.

E sem mais suspense disse

Abro uma loja de vestidos de noivas.

Todos eles acham que sou muito cosmopolita, e que sou intensa, culta, e mais umas quantas inverdades – eu sou apenas uma rapariga que sonhava ser maquilhadora, na primeira infância, costureira, na pré-adolescência, e cantora de fado, em plena idade do armário –, mas com uma loja de vestidos de noiva, a vida levava-se como um conto de fadas, imaginem só as histórias bonitas que eu ouviria todos os dias, entre provas, saiotes, cetins e tules. Não viveria rodeada de pulhices, rasteiras, mentiras, apenas felicidade absurda todos os dias da minha semana.

Algures entre as sombras, batons e os blushs da minha mãe, os tecidos e as máquinas de costura Singer com que me entretinha tardes a fio a fazer vestidos para a Barbie, eu quis ser voz de desenhos animados. E é sobre essa vocação que versa este post, só que, claro, tenho que dar uma volta muito grande aobilhar grande para lá chegar (e isto lembra-me também que estou preparada para acabar a saga do Professor de Filosofia).
Eu não sou nada, reparem bem, a ideia da loja de vestidos de noiva é capaz de ser a melhor dos últimos tempos. Sou a miúda que se vai casar, eventualmente, se o dinheiro se dignar a armar-se em papo seco e a multipilicar-se sem razão aparente, ao som de gaitas de foles no jardim da Estrela, e cujo momento alto do dia é à noite, quando me sento à mesa de jantar e pego na pinça de gelo e na pinça da salada e as transformo na família Bocarras – Bocarras júnior, a pinça de gelo, mais meiga, com uma vozinha aguda e irritante que gosta de oferecer Smarties no final de uma refeição degustada sem queixumes; e Bocarras pai, vozeirão rouco, humor negro, apetite obsessivo por pezinhos de crianças loiras, e uma antipatia nata pelo João, a quem insiste chamar de palerma.

Os Bocarras fizeram com que a Carolina voltasse a comer. São apenas pinças de gelo e da salada, que intimidam o anjo loiro a mastigar e engolir a comida, sob pena de levar uma trinca no rabo de uma pinça de salada.

Como a comida já fria, sem graça, para fazer os Bocarras (ainda não como cabeças de peixe, logo, ainda não faço grandes sacrifícios enquanto mãe). Escavaco a garganta a fazer a voz do Bocarras pai, mas a temperamental pinça da salada não me faz pior do que as duas dezenas de cigarros que me ajudam a passar as horas numa redacção em pé de guerra.

E depois, vou com o Bocarras Júnior pescar com o pacote de Smarties à despensa onde as putas das formigas atacam tudo o que está fora de tupperwares hereméticos, e cada vez tenho mais certeza que uma loja de vestidos de noiva é que era.

quinta-feira, outubro 26, 2006

Arco-íris

Talvez eu devesse contar-vos, à boleia do segundo episódio seguido de Noddy que passa na televisão bordeux, e que traz à metade loira de mim a história do arco-íris mágico do país dos brinquedos e do tesouro escondido algures atrás de uma colina onde ele nasce, sobre o céu de milagre que se decidiu abater sobre nós, sobrepondo-se ao cinzento carregado dos céus chuvosos de Leiria, quando decidimos arredar o pé da cidade que tem um estádio encarnado encostado a um castelo, com todos os sentidos embriagados e quase enternecidos pela docura e mau gosto indescritível do casal de idosos proprietário do café Sem Niveau.

Sinais de Deus é o que é.
Que me dizem que a escolha de um vestido de linhas simples, sem bordados, rendas ou mariquices à revelia e sem a opinião das três madrinhas, a 110 quilómetros de Lisboa, não foi um erro, uma compra por impulso, e que talvez o véu com as rendas de guipure cor de sangue sejam apenas o que falta para compor a imagem da virgem que eu gostaria de ter sido - o amor, repito, nunca é tarde demais para me auto-plagiar, até porque o joão Pedro George não é meu leitor e dificilmente me irá dissecar o blogue, o amor é directamente proporcional às golfadas de sangue que se está disposto a derramar, e era isso que o véu debruado a sangue poderia querer significar no dia em que passo de SOL para CAS no bilhete de identidade - o dia em que a minha filha voltar a ter o nome com que nasceu será igualmente solene, talvez dos melhores da minha vida, mas isso é daqui a muitos anos, quando eu já tiver o cabelo todo grisalho e, provavelmente, a tapar-me o rabo, numa espécie de promessa.
E que o noivo, ah, que coisa tão pirosa de se escrever, melhor que isto só a minha manicure que tem uma série de unhas partidas e descuidadas - em casa de ferreiro espeto de pau, já diz a preciosa ajuda dos ditames populares -, que em 15 minutos de manicure fast food que transformam as minhas mãos, e mesmo antes de eu desembolsar 4,5 euros pelo serviço ultra-rápido e milagroso, é capaz de dizer uma média de 55 "o meu esposo", que o homem tímido de cabelos dourados e revoltos que, contra todas as superstições viu o vestido da noiva, é o homem da minha vida.
Mas, francamente, para sabê-lo, para ter essa certeza, não precisava de um arco-íris sobre uma rotunda de acesso à autoestrada, à saída de Leiria.

segunda-feira, outubro 23, 2006

Pequenos apontamentos de beleza

E no meio de tudo isto há apontamentos de uma beleza simples, da que dói, e que são da mesma matéria que o suicídio premeditado da octogenária que se chamava Maria Teresa de Jesus.

(foi mesmo assim. tirou os anéis dos dedos, o fio de ouro do pescoço e em último lugar a aliança, e alinhou-os na bancada da cozinha. subiu à banqueta, tirou os pés dos chinelitos de fazenda, fez questão de os colocar perfeitos na perpendicular e só depois fez aquilo que tinha a fazer, aos primeiros pingos de chuva que lhe caíram na cara)

Um telefonema ao início da manhã, a valsa de Amélie em toque monofónico a sair da mala Todds que viajou dos Emirados Árabes Unidos para o meu ombro direito há mais de três anos e nunca mais de lá saiu, tudo isto no Lidl de Alvalade, que é um Lidl mais ou menos decente, com um rácio equilibrado de gente feia por metro quadrado, o meu outro ombro, o esquerdo, eriçado, com frio, junto à arca e às salsichas alemãs refrigeradas, para ser exacta, a minha mãe a chorar, eu a pensar que tinha morrido algum gato, e ela diz

a Dona Teresa mandou-se da janela,

e nesse momento, a força é-me arrancada das pernas como num roubo por esticão, num micro-segundo vejo à minha frente o sorriso precioso da minha vizinha em frente aos iogurtes de aromas a 1,49 euros, as doze unidades, e noutro, logo a seguir, transporto-me para o futuro, para o dia em que a Magui há-de partir, muito curvadinha e velhinha, e sei que, nesse instante, as pernas não vão só ficar trémulas, vou ficar tetraplégica por alguns minutos, talvez horas, e cair estatelada no chão sem conseguir chorar ou dizer uma palavra.

Chorar no corredor dos congelados.

Mas porque é que ela faria isso, mamã?
E o João a abraçar-me, e eu a tirar os packs de quatro leites de chocolate radioactivos que deixam manchas que não saem nem à força da lixívia, eu sem acreditar, a chorar com soluços, e os fregueses de Alvalade a passarem com os seus cestos do Lidl sem sequer olharem para trás, como se fosse perfeitamente curriqueiro, ordinário, comum, que alguém irrompesse em lágrimas junto à pimenta e à mostarda. E o João a chorar também, parece-me, e isto é coisa de amor gigante.

Depois, as lágrimas de crocodilo, as lágrimas de crocodilo são também belas, quem me disser o contrário não sabe do que fala, eu estive hipnotizada no lencinho de mão da carpideira réptil que sempre quis mal à minha querida vizinha, que me contou a Magui, era enfermeira. A vizinha. Não a carpideira. E as capelas da Servilusa, na Igreja hedionda de Santa Joana Princesa, onde, outrora, durante muitos, muitos anos, havia um canavial pegado à Quinta dos Lagares d’El Rei, as capelas com tapetes de arraiolos no chão e serviço de cafetaria na mezanine, e o sermão despropositado do padre a quem não terão, certamente, dito que a defunta era uma velhinha voadora desesperada, que ninguém decide quando é a hora de morrer, belíssimo, estaria bêbedo, e a minha boca aberta de espanto, tudo perfeito, a começar na racha na parede ao meu lado, como se naquele instante tivesse havido um pequeno terramoto, e o filho da dona Teresa, no fim, a dar-me uma palmadinha no ombro e a pedir,

não chore,

e depois, logo a seguir a mim, a ir socorrer depressa a empregada, a mulata escultural de traseiro que não obedece às regras básicas da gravidade, que trouxe um enorme ramo de orquídeas com um laçarote roxo.

(a dona Teresa gostou muito delas)

E o pai da Isabel, a quem chamavam cachalote fora d’água na quarta classe, a Isabel que, agora sim, está disforme e parece ser minha mãe, que numa aula de olaria respondeu à pergunta
o que é a lambugem?, com a simplesmente genial reposta, A lambugem é para lambujar o barro.
Toma lá, que a miúda nem era nada parva e não se sintam diminuídos se não souberem o que é lambugem, eu também não vou dizer porque não sou nenhum dicionário, só que a Isabel teve um filho do mecânico da rua em idade imprópria, mas o seu pai, que surpresa incrível, é cangalheiro e eu conhecia-lhe apenas os dotes de mago com os mais pequenos, mas, afinal, até faz bastante sentido - mortos, bebés, são todos anjos, e o senhor de baixa estatura e de armações dos anos 70 tem esse fado nesta vida.
E há um vestido de noiva, o mais simples e o mais barato de uma loja nos arredores da feia Leiria, que o Leonardo insiste que é bonita apenas porque aquele pedaço de terra onde seria bem-vindo um tsunami é teimosamente conservador. E há uma demanda pelo véu perfeito, com renda de guipure, ou veneziana. E um café de fino mau gosto, obra de autor, inenarrável, coisa para foto-reportagem detalhada, os estuques nos tectos, as pedras nas paredes, a escolha cromática, os tecidos, os bibelots, as plantas de plástico, um espaço que é um vórtice, uma outra dimensão, e que, num toque de fairplay incrível, colocou no letreiro comercial o seguinte nome de baptismo: Sem Niveau.

sexta-feira, outubro 20, 2006

Simples

Foi tão simples quanto isto, levantou-se, chovia, e era um dia bom para morrer. Chovia que Deus a dava, alguém choraria por ela assim, os céus vestir-se-iam de cinzento muito escuro e chorariam por ela durante dois dias e duas noites. Soube, na noite anterior, no boletim meteorológico, que também os ventos se levantariam por ela, rodopiando e arrancando telhados de zinco e chassis de auto-caravanas, foi tão simples que dói: olhou-se ao espelho, cabelo branco em desalinho, sobrancelhas cinzentas escuras, um buço que teimou em grudar-se debaixo do nariz e por cima da boca depois da menopausa, lavou a cara e sorriu, o dourado dos caninos de metal precioso onde fixava a esquelética reluziu como se fizesse sol junto à banheira, despediu-se da empregada, deu-lhe a folga merecida, adeus e até amanhã, fechou a porta à chave, sentou-se no sofá, ao seu lado estava o fantasma do seu companheiro de olhos azuis turquesa, e na alcatifa, o arfar do espectro do cãozito schauwzer anão que os acompanhou na entrada da terceira idade, levantou-se, tocou ao de leve, um roçagar, nas paredes que o seu marido construiu a pulso, foi à cozinha, bebeu um copo de água, deixou a porta do armário aberta, espreitou, do alto de um nono andar, o jardim enlameado e as arvorezitas que daqui a cinquenta anos serão finalmente gente e sombra, abriu a janela, não pensou em nada, não chorava, subiu à banqueta, fechou os olhos e decidiu que a vida acabava num voo rápido.

Este blogue está de luto carregado. Porque foi assim. Simples.

sábado, outubro 14, 2006

Rapariga peculiar

Ela é uma rapariga tão peculiar.

Canta Mozart no fumódromo, ao fim-de-semana, e, em dez minutos da sua hora de almoço, faz uns cartazes giros para convocar eleições para a Comissão de Trabalhadores, pior, voluntaria-se para a dita cuja CT, só que a vontade de subir para cima de um armário, pode até ser o do economato fechado a cadeado, e gritar a password do seu Compaq (é o seu calão favorito) é cada vez maior, e, sim, ela fala como um carroceiro, uma asneira feia a cada sete palavras, fala demais, é uma pena, devia aprender a estar calada, sobretudo, a calar as suas mãos muito magras, e é arrogante, por um lado, insuportável, julga que todos são uma cambada, e gostava de saber revirar os olhos (só os revira, instintivamente de prazer, disseram-lhe) e suspirar "Que gente", e por outro, por outro, é a mais doce das criaturas, entrevista os loucos desta cidade, e, parece que a esposa do patrão leu dois mil caracteres que ela publicou por descargo de consciência, ciente que nada do que escreve muda a realidade, e que o Aníbal já não vai morrer num quarto pestilento onde se passeiam ratos despudorados.

Dizem-lhe, em tempos foram colegas de secretária, dizem-lhe, és uma rapariga tão peculiar, mas o extraordinário não é que lhe tenham batido palmas no trânsito enquanto ela cantava Mozart porque não tinha cigarros na mala e porque o demónio do estacionamento não estava acordado, nem que, atónito, com a mesmíssima melodia, um outro condutor tenha enfaixado o céu pára-choques na traseira de um veículo que seguia a sua frente. O que é verdadeiramente assombrador não é que ela cante, escreva, pinte, dance, ame, viva, erre, lute, sofra. É que tenha sido uma criança a escrever a dita cantilena.

Salmoura

Os amigos riram-se bem alto quando ela disse que a vida lhe era madrasta e que, agora, todos os dias pareciam sextas-feiras treze, que os azares se sucediam em catadupa um atrás do outro, tanta má sorte apenas porque o patrão fechou o armário do economato à chave e ela, assim, já não podia ser feliz às custas de roubar material de escritório.
Crise, ditaram eles, e agora já não mais podia armazenar caixas de clips na gaveta da secretária, nem levar pilhas para o comando do televisor lá de casa (infelizmente, não havia no armário pilhas para o vibrador, era à sua custa e à de pilhas alcalinas das lojas chinesas que se perdia em prazeres solitários).
Estavam racionados, os clips, as canetas e os blocos de folhas muito finas, e ela não sabia se havia de rir ou de chorar quando o guardião do economato lhe ordenou para estender a sua mão direita em concha e lhe depositou meia dúzia de exemplares de design ordinário, muito brilhantes, contabilizados sem margem para desperdícios.
Esta era mais uma das suas estapafúrdias interpretações da realidade e do destino, mas a melhor de todas as histórias mirabolantes, pelo menos dos últimos tempos, era a perturbação que lhe causou um episódio que aconteceu numa tasca onde a cozinheira abusava do sal e em que todos os petiscos eram servidos em salmoura.
Naquele dia, sugerira ao senhor Zé para colocar um aviso na porta da tasca a proibir a entrada de hipertensos, mas o senhor Zé não era dado a ironias, na verdade, nem sequer ouviu o que ela disse, presumiu que fossem duas doses de febras, uma Coca-Cola e uma água do Caramulo (no final, uma das bicas seria com adoçante). É que nesse dia era dia de cozido, e em salmoura ou não, a casa estava a abarrotar, e o senhor Zé achava-se telepata, ou isso, ou leitor de lábios, como um surdo.
Aquele casal gosta mesmo de febras, dizia o pessoal da tasca na paz do rescaldo dos almoços servidos à base de sal marinho, mas o que eles não sabiam é que nem importava se a carne era tenra, ou sola de sapato, se era saborosa ou sensaborona, o que interessava mesmo era a dose diária de cloreto de sódio que tinha que ser ingerida, sob pena de uns tremeliques e dores de cabeça durante a tarde.
Numa mesa próxima da nossa heroína, num destes dias, em dia de cozido, um casal almoçava com o seu par de filhos. Já estavam bem aviados, pensou ela, olhando para a mais velha, uma miúda doce, agarrada ao calor do regaço da mãe, e um terrorista que teimava em fazer que faz com o hambúrguer que jazia no prato, sentado ao lado do pai. Uma mãe de cabelo curto preto e feições finas desenhadas numa pele branca e um homem com físico de segurança de discoteca, mas vestindo calções de malha. Os opostos atraem-se, lembra-se ela de pensar, sorrindo para o loiro chupado com quem decidira casar.
E como a criança que comeu todas as batatas fritas, mas não tocou na carne picada, implorou por um arroz doce, ela reparou no casal. Arroz doce era a droga, era o melhor da vida, e injustamente a balança laranja e o metabolismo lento como um caracol proibiam-na de se deleitar com o petisco. Por isso, e só por isso, memorizou o casal com o casal de filhos, e depois não se queixe, é que assim não há espaço suficiente para armazenar datas dos aniversários dos seus amigos, mas voltando ao que interessa, todos eles, o casal e o casal de petizes, falavam francês, se bem que o homem de porte de gigante também verbalizava num português sem sotaque.
E isto seria apenas mais uma informação irrelevante, não tivesse o casal francês bisado na tasca da salmoura, desta vez sem o casal de filhos, e não tivesse o destino feito das suas e sentado o casal dos heróis desta história lado a lado com o casal francês.
Nesse dia, 13, por sinal, dia de aparições de Fátima, já se adivinhava algo estranho: não pediram febras e o senhor Zé sorriu com malícia ao gritar o pedido para a copa da cozinha. Infelizmente, a escolha do cardápio, rolos de porco à Mexicana, vinham com pouco sal, mas realmente assustador nessa curtíssima hora de almoço foi que o casal falava francês desta vez expressava-se em castelhano perfeito.
O barulho da sala era estridente, rais'parta mais o cozido que lhe enchia a tasca pacata, era demais para um ouvido direito com uma otite aguda, e de repente, a heroína zangou-se com o seu amor, porque ele foi mau, analisado a frio, até foi bondoso como só ele sabe ser, apenas quis que ela não sofresse se o mundo não fosse o lugar menos mau que ela estava a defender que era, amuou, e conseguiu estar dez minutos sem abrir a boca, ou a abri-la apenas para entrar a carne insonsa.
E nisto, ouviu castelhano ao seu lado direito, da boca do casal que há uma semana falava fluentemente francês. Perdeu o equilíbrio, não sabe se foi da otite, mas ouviu o zumbido que a costuma avisar que está eminente a perda de sentidos, e distintamente, no fundo de uma sinfonia desafinada que pairava naquela tasca, lá da última mesa do restaurante, como se tivesse audição suprasónica, ouviu uma jornalista a falar do cavalo Mister Ed.
Não desmaiou e, das duas uma, ou tantas vezes se abeirou da loucura que algum dia a asa da cantarinha tinha que se partir, ou tem mesmo que se obrigar a comer comida salgada, muito salgada.

quarta-feira, outubro 11, 2006

Uma dúvida que me atormenta


De que marca são os óculos escuros de Kim Jong-ll?

terça-feira, outubro 10, 2006

COR*

Depois de um dia infernal e de uma notícia que há-de fazer rolar cabeças. E olha para a minha cara de satisfação de tramar espartalhões, mas, na verdade, o melhor momento do dia foi a resposta à secretária de
-- E qual é o motivo do contacto?
-- Corrupção.
(silêncio)
-- Peço, então, que transmita o recado.

*Carolina Oliveira Ralha. Tem uma sigla muito mais feliz que a da mãe.

E se Cavaco não vai à Liberdade, a Liberdade vai até ele

Cavaco Silva não vai visitar hoje o Bairro lisboeta que, ironicamente, foi chamado de Liberdade. Cavaco Silva não dá cavaco ao Bairro da Liberdade, mas eu aproveito para lhe dizer que, na Liberdade, há um homem, seu homónimo, ex-combatente do Ultramar, um homem tão doce como eu nunca vi, que me beijou a mão e se pôs de joelhos aos meus pés na esperança que eu lhe desse uma casa onde não tivesse que ter medo que as ratazanas lhe comessem as orelhas durante o sono, porque esta noite, Aníbal Barata dormiu num colchão que partilha com percevejos. Esse homem, senhor Presidente, na assoalhada com pouco mais de seis metros quadrados sem janela onde "vive", tem posters da Amália e també seus - são as personalidades que ele mais admira, e nem que fosse por isso, apenas por isso, o senhor deveria ir cumprimentá-lo e, já agora, se não fosse pedir muito, fazer um telefonema para que este homem deixasse de viver como um animal num esgoto (sei lá, qualquer buffet de luxo do Estado pagaria um quarto e assistência médica a Aníbal Barata).
Se Cavaco não põe um pé na Liberdade, eu levo-lhe uma rua da Liberdade até a si, faço visita virtual a um bairro que os meus olhos não estavam preparados para ver.

[Este trabalho foi publicado no PÚBLICO de 29 de Janeiro. Texto: Diana Ralha Fotos: Rui Gaudêncio]



À espera da Liberdade


A última favela de Lisboa. A primeira também. Enraízada nas costas de Monsanto e aos pés do Aqueduto das Águas Livres. Com vista para o Tejo e para toda Lisboa. Irónica escolha de palavras: um milhar de lisboetas vive em condições idênticas às da Revolução Industrial num bairro chamado Liberdade. Esperam-na há mais de 50 anos.


Um trabalho de Diana Ralha [texto] e Rui Gaudêncio [fotos]


Há coisas que os olhos não estão preparados para ver.

Um milhar de pessoas a viver na companhia de ratos, percevejos, imundice, escombros e entulho. Imagens de Fátima e fotografias de Amália espalhadas pelas paredes, numa espécie de culto, de fé inabalável. Bibelôs, muitos, cisnes, cães, gatos, de vidro ou de porcelana, apinhados em uma, no máximo de duas assoalhadas com pouco mais de cinco metros quadrados.
Habitações que não são mais do que corredores, sem janelas, com as paredes pintadas de cores vivas e salpicadas de bolor. Divisões versáteis e minúsculas, que servem para tudo: para cozinhar, para comer e para dormir.
Sanitas ao lado do micro-ondas, a um canto da sala, aos pés da cama, atrás de um vão de escadas.Por vezes, não existem sequer. A substituí-las, há baldes de plástico no chão, que os seus donos mascaram de sanita, enfeitando-os com tampos de plástico. Depois de cheios despejam-se na rua, nas pias existentes nos pátios. Os lavatórios são um luxo.
Um milhar de pessoas, adormece e acorda todos os dias nestas condições. Liberdade. Vivem num bairro chamado Liberdade. Moram assim desde sempre. A maioria há mais de meio século, mas ainda se encontram anciões que ali criaram raízes há 80 anos, quando o mais antigo e último dos mais precários bairro de Lisboa assentou arraiais e cresceu sem freios nas costas de Monsanto, na freguesia de Campolide. Nasceram, casaram, criaram filhos e os netos na Liberdade. São escravos dela.
Ensombrado pelo Aqueduto das Águas Livres, colado ao pacato e cobiçado Bairro da Serafina, com vista para o Tejo e com Monsanto a enquadrá-lo como uma moldura de vegetação luxuriante, o Bairro da Liberdade é “a última favela de Lisboa”. Quem o qualificou com estas palavras foi António Carmona Rodrigues, na altura candidato à presidência da Câmara Municipal de Lisboa. Não exagerou. Prometeu deitá-lo abaixo. Há coisas que os olhos não estão preparados para ver.
Quando se morre sai-se pela janela num saco

Pátio do Chafariz. Travessa Capela Velha. É apenas uma das ruas de um bairro onde toda a gente se conhece, ajuda e tem sempre as portas abertas, com as chaves na fechadura. Sem medos.
Por fora, lembra uma aldeia, há crianças e velhos nas ruas, cheiros vários, cortinas de renda de nylon e de xadrês colorido. Nada faz adivinhar em que condições vivem os moradores do Bairro da Liberdade.
armen Almeida, 40 anos de bairro e de vida, nunca saiu daquele pátio. Mudou da casa do pai para a do marido. Transportou os seus pertences para apenas duas portas ao lado. No seu T1, ao qual se acede por um corredor escuro e umas escadas a pique que teimam em ceder e pregar rasteiras, moram três pessoas. Tem água em casa porque fez as obras à sua conta. A sanita está ao lado do micro-ondas, numa cozinha improvisada em pouco mais de três metros quadrados.
Esta mulher de coração frágil, recém-operado, está inquieta. A sua sogra regressa do hospital amanhã, segunda-feira, com uma perna amputada. Carmen sabe que a idosa não mais irá sair do buraco a que ali se chama casa até ao dia em que fechar os olhos para sempre. Desabafa, enquanto desce um vão de quatro degraus com a largura de não mais de cinquenta centímetros: “Quando se morre aqui, sai-se num saco de plástico pela janela. Não se sai num caixão”.
Voltando aos vivos. Número da porta 71 A. Aníbal Barata, olhos verdes, muito doces, voz de candura infantil imputada à demência. Um quarto. Sem janela. Um cheiro que se entranha na roupa, na pele. A porta abre-se, não abre toda, só o suficiente para entrar um corpo de lado. Não abre o suficiente porque o quarto é exíguo, a porta bate numa cama onde se acumulam pilhas de lixo, tralhas diversas. Percevejos.
Lá dentro, como um animal e rodeado deles, sobretudo de ratos, vive, desde 1965, um ex-combatente da guerra colonial. Serviu em Angola. Está reformado por invalidez. Enlouqueceu. Está entregue à bondade dos vizinhos e da irmã, que mora uma ou duas portas à frente. Aníbal Barata gosta de Amália, há fotografias e cartazes da fadista na orgia de parafernálias várias que colecciona no seu quarto: “Quem não gosta de Amália não é português”, diz. Gosta de Cavaco Silva também – está um exemplar da revista “Homem”, em grande destaque, aos pés da sua cama. Quase não se vê parede. Aníbal pendura espelhos, posters, demasiada informação para a retina. Ao centro, uma imagem do sagrado coração de Jesus diz, em letras garrafais: “É preciso orar”.
Dez passos à frente. Fim de um pátio do bairro da Liberdade, onde crianças brincam com cães de raça (um pittbul, um caniche, um yorkshire terrier e um lulu da Pomerânia) e pardais chilreiam nas gaiolas pregadas às fachadas das casas. É um pátio cheio de flores e de couves, plantadas por Eva Duarte e que, afiança, já renderam duas sopas este ano.
No fim do pequeno pátio, numa habitação prestes a desmoronar-se, sem telhado, sem reboco nas paredes, apenas tijolos unidos com cimento, mora Francisco Sousa. Aos 49 anos está desempregado e sem direito à prestação social do rendimento mínimo garantido. Este homem, de enormes unhas e gengivas pueris, não tem como se proteger do frio e da chuva. Não tem casa de banho ou cozinha. Sobrevive de biscates e da ajuda dos vizinhos.



Grafitti para esconder o bolor

Os moradores abrem, sem vergonha, as portas das suas casas. É assim em todo o bairro. O asseio é a norma. Ana Isabel mora na Liberdade há apenas três anos com o marido. São ambos muito jovens, já têm um filho com três anos, que dorme num colchão encostado à cama dos pais. São os vizinhos da frente de Francisco e recuperaram a braços uma barraca idêntica à sua. Lutam contra a humidade. Escondem-na, no quarto, com cortinas de renda, com cachecóis de clubes de futebol e posters de ídolos musicais. A humidade não se vê, mas sente-se, entranha-se nos ossos. Na sala, com pouco mais de quatro metros quadrados, desistiram, é uma luta inglória, optaram por um tromp l’oeil, camuflaram o bolor das paredes com um grafitti.
O cenário repete-se naquele pátio, em todo o bairro.
Existe uma tentação forte de verificar, à cautela, na agenda em que ano se está. 2006,1906? Oito pessoas a morar numa habitação que tem um quarto esconso enfiado no sótão, uma sala que também é cozinha, e uma divisão sem janelas, com cerca de cinco metros quadrados, onde dormem quatro pessoas de noite. Um filho de 21 anos, e um neto pequeno a dormir ao lado dos pais e avós.
Um quarto e uma sala. Mínimos. Não há cozinha, nem casa de banho. José Cardoso, setenta anos de boa figura, sobretudo de bom corte e boa fazenda, viveu sempre sozinho. Na companhia de imagens de Fátima e bibelôs do Benfica. “É só miséria”, desabafa, mas volta atrás, quase com vergonha do sacrilégio que a sua boca acabou de reproduzir: “Posso-me dar por contente. Há pessoas aqui no Bairro a viverem trinta vezes pior.”

qui é tudo boa gente

Todos gostam de viver no Bairro da Liberdade. Garantem que não há desacatos, insegurança, admitindo, porém, existir algum tráfico e consumo de droga no bairro. Não se encontra ninguém, que algum dia, em meio século de vida, tenha sido assaltado no bairro.


A noite cai, a ponte 25 de Abril e o aqueduto iluminados compõem um cenário de beleza invejável e, lá em baixo, no Eixo Norte-Sul e na Avenida de Ceuta, os carros seguem em fila indiana sem supor que, ali tão perto ,há um vórtice temporal que faz recuar tempo até ao início da revolução industrial.
Quase todos querem permanecer encostados a Monsanto e ao Aqueduto das Águas Livres, com vista para toda a cidade. Sonham há décadas viver com um pouco de dignidade, mais como pessoas e menos como animais. Muitos perderam já a esperança e também a conta das vezes em que abriram as portas das suas casas, sem vergonha, ou escondendo-a o melhor que sabem, e escutaram as promessas eleitorais, nunca cumpridas, de uma vida melhor.
Mas ainda há quem acredite. A anciã Hermínia Tasso, octogenária, tantos anos de vida como de bairro, sabe que já não vai ver o dia em que a liberdade vai chegar: “Já não vou ver. Mas fico contente por saber que vão ajudar quem precisa. As pessoas merecem, são todos boa gente, acodem-se uns aos outros”.
Com apenas dez anos, Sara Ramos, muitas sardas no nariz, acalenta este sonho: “Tenho muita gente com quem brincar, tenho tanta gente para conhecer aqui no Bairro. Só precisamos de casas melhores. Moramos em buraquinhos que até dão para viver, mas gostava mesmo era de ter um quarto só para mim”, desabafa, entre suspiros e um sorriso envergonhado, à porta de uma das muitas mercearias do bairro para onde vai brincar depois de chegar da escola.

terça-feira, outubro 03, 2006

DOR*

Eu tenho cortinados beringela nas janelas do quarto, de onde vejo uma nesga da Duque de Loulé; são reles, de polyester, translúcidos como os vestidos de cerimónia das fadas, e eu pensei, durante muito tempo, que através da escrita talvez eu pudesse contar tudo: a forma como as duas cortinas de tecido altamente inflamável (se lhes deitar fogo, elas desfaz-se numa lágrima; eu gostava de poder escrever sobre isto, também) se unem, e como dessa sobreposição se formam uns ziguezagues em tudo semelhantes ao efeito televisivo de uma camisa às riscas; o ronronar rouco do gato de 233 gramas debaixo da cama; o chocalhar do espanta-espíritos lá fora e a hera moribunda em cima da floreira de Alegrias da Casa que já não têm mais força para me dar flores todas as manhãs.
Eu pensei que tinha nascido com este nome, e que apenas por isso, grandes desígnios me esperariam pela frente, a toda a hora, sucediam-se ao longo da passadeira vermelha - que eu diria encarnada -; aliás, eu pensei que o meu destino me caía em cima da cabeça, da mesma forma que me acontecem outras coisas extrordinárias todos os dias, eu achei que era destes dedos que ia sair algo que me tornasse só um bocadinho imortal, eu pensei - aos 28 anos de idade, vejam lá - que há magia em todas as coisas inanimadas, que as árvores não são só árvores e que as casas não são só tijolos, telhas e janelas.
Se calhar, o meu destino é roubar azulejos de fachadas de prédios que têm licenças de demolição penduradas à janela. Sou, neste momento, uma mulher sem fé, a poesia provavelmente morreu, porque o Santo Expedito não quis os meus cabelos, nem a Teresinha, junto ao altar da Basílica dos Mártires, deita uma lágrima por mim, sob o olhar atónito do cónego.


*Diana Oliveira Ralha

segunda-feira, outubro 02, 2006

Banda sonora

Já disse isto ao chefe, numa manhã em que quando ele chegou já ia eu no meu terceiro café grátis (por enquanto, aproveite-se o café enquanto ele dura, enquanto ele não tem questões de redundância para resolver no quarto piso) e quarto Davidoff fumado despudoradamente a um canto de uma redacção deserta.
A vida devia vir com banda sonora.

Ele chegou e perguntou-me pela performance do Ipod 30 Gygas que os malucos dos meus amigos decidiram oferecer-me no dia 22 de Julho, e eu respondi-lhe:

– Chefe, eu nunca tinha sentido a Fontes Pereira de Melo como senti esta manhã.

E depois percebi que ele não estava a seguir o meu raciocínio e expliquei-me melhor: – É a cidade, T, a cidade dói-me menos com a banda sonora certa.

Nesse dia, era Tiersen, pianinho do Good Bye Lenine e tudo pareceu perfeito: a bófia na esquina da António Augusto de Aguiar a guardar os operários que estavam armados em toupeiras dentro dos esgotos, as casas-fantasmas que só eu miro e admiro, até o Hotel Sana com a sua loja que vende galos de Barcelos e nossas senhoras de Fátima cujo manto é meteorológico (e vocês não podem imaginar o quão perfeita é a banda sonora sob a qual escrevo estas palavras, e por cima do som de anjos, e de espantas-espíritos feitos de pedacinhos de vidro, eu oiço os meus dedos a martelar, e parece mesmo que esta percussão doida faz parte da música) pareceram-me sublimes, e sou capaz de jurar que se pôs um céu de milagre quando atravessei a rua por um amaranhado de carros parados à espera, pacientes, de cehgar a sua vez de entrar na rotunda que está guardada por um leão.

O Ipod estava na mala quando, pela primeira vez e descaradamente, infringi a lei, não esquecerei, já tive um termo de identidade e residência por um crime grave que não cometi, queixa do outro que me fode o juízo de três em três semanas (quem mais poderia, não é?), e tudo me diz que sou capaz de me viciar nisto como em qualquer outra droga (não me deixem entrar no casino, por favor, é um pedido).

Ele viu-me as mãos a tremer, e até tirou uma foto das minhas bochechas rosadas, prestes a explodir, e o peito muito para fora, parecia três quilos mais magra, quase não respirava, e sussurava, os olhos nem pestanejavam e a voz saía com um tom que nunca se tinha ouvido. Na rua de baixo, o João pensava que eu já tinha ido presa. Quatro avenidas a seguir, a minha mãe de alerta máximo, prevenida de que, se calhar, teria que ir à esquadra, pagar a caução.

O Ipod ficou na mala, não era preciso: a vida decorre em película, às vezes com uns planos e argumentos muito maus, mas desta vez, os heróis da trama estavam bem iluminados, e os diálogos, ou a falta deles, prendeu os olhos de todos à tela, naquela tarde, as vacas foram a leilão na pala do Siza e dois seres descobriram um propósito na ausência. Esta era a banda sonora.