quinta-feira, julho 19, 2007

VI

Mui Nobre e Sempre Leal Cidade de Lisboa.

Depois, havia esse outro mundo, em paralelo, tão ou mais inventado do que o outro, onde, afinal, os magos morrem e as pequenas feiticeiras levitam, o vereador dos espaços verdes e os outros dezasseis membros eleitos que em nada interferiram no meu destino, o Prémio Valmor da Alexandre Herculano, e todos os que lá estavam presos com os pés afundados em terreno movediço, mas com apenas três dedos acima do chão, eu via esse mundo como se estivesse sentada numa nuvem em forma de anjo, e eles lá andavam, pequenitos, atarefados de um lado para o outro, a rescindirem comissões de serviços, a preencherem com uma caligrafia banal os recibos que não têm nenhum pigmento verde, a pilha de caixotes empilhados no anguloso corredor desenhado pelo Ventura Terra, a Lena a receber das minhas mãos o papel que me chegou por milagre e que assegurava que eu não tinha dívidas à segurança social.

Mui Nobre e Sempre Leal Cidade de Lisboa, impresso em papel Canson de 140 gramas por metro quadrado, a enfiar memorandos, despachos, informações, e a lista das árvores classificadas de interesse público, a enfiar listas de contactos da autarquia de Lisboa e a proposta de colocar floreiras na Baixa, a história do cemitério dos Prazeres e sua proposta de requalificação, e eu a saber que não havia dinheiro para comprar gaóleo para os crematórios, tudo para dentro destas pastas com corvos empoleirados no mastro de uma caravela, depois de tudo se ter arquivado por si num caixote, sentada no parapeito da janela, o que vai ser de ti, prédio, a despedir-me das madeiras dos umbrais das portas, a despedir-me das traseiras dos prédios arruinados da rua que honra o presidente da câmara que mais árvores plantou em Lisboa, e o que vai ser de ti, pequena feiticeira?

Ele queria esperar 72 horas.

Quando ela disse isto, procurando, com o olhar, validação do mestre budista, apeteceu-me descer um dedo do meu pedestal e soltar uma gargalhada. O mestre budista nada disse e eu também não ri.
Parece que as almas têm que se habituar à sua provisória condição de errantes quando o corpo morre, deve ter sido isso que ela queria dizer com as 72 horas de espera, lembro-me de ele me falar disso num dia em que eu ainda tinha dentes de leite, mas não demasiado cedo para o mago me ensinar que devemos sempre pedir licença à alma grupo para colher uma flor, que não custa e é nunca é demais ter a gentileza de explicar a que propósito a estamos a arrancar da terra, desde então eu faço-o sempre, ainda hoje, aos pés da Sant’Ana, expliquei ao Deus dos Chorões que aquela flor rosa fluorescente era um presente de anos para o meu pai, mas francamente, eu lembro-me da conversa ao contrário, que ele me contou que deve ser muito triste assistirmos tempo demais à dor de quem deixamos para trás, a mim, no que diz respeito à espera, às 72 horas desde o edifício da segurança social de Ponta Delgada, o que mais me perturbou foi ele a ver-se a si próprio dentro de um frigorífico.

A mui nobre e sempre leal cidade de Lisboa acordou em silêncio.
Não havia corvos, nem caravelas, nem vista para o castelo, apenas uma nesga de Tejo junto ao PER do Vale de Santo António.
O vestido abraçou-se ao corpo, os sapatos não servem de nada para quem anda três dedos acima do chão, mas enfiaram-se dentro dos pés, o Fiat foi em piloto automático até ao Alto de São João. A Mónica e a Dinah estavam lá, e as senhoras do café já se habituaram à presença de olhos inchados e vestes escuras do outro lado do balcão.
As coroas de flores de ontem estavam murchas e, por isso, nenhum coveiro me interpelou para oferecer os seus préstimos de florista a preço de saldo. Dois melros baloiçaram-se no jacarandá que ainda não estava florido, mas não cortaram o silêncio daquela prece matinal.

O Leonardo tardava, pensei que não chegava, o Fialho, a Andreia, o mestre budista, a minha mãe, a Manuela e a Marta, e a que quis esperar 72 horas sozinha a um canto. Uma Ficus Religiosa junto ao crematório, eu a pensar no gasóleo, por momentos, com um pé no outro mundo, o dos vereadores que renunciaram aos mandatos, vi o meu contrato dissolvido num gabinete dos recursos humanos, a câmara a tropeçar e a cair, e num fechar de olhos rápido, de volta ao Alto de São João, lágrimas de mãe aos pés do caixão, e lágrimas de pai, das verdadeiras, das saturadas de sódio, junto aos caracóis prateados.

Não disse nada.

Os irmãos mais velhos ousaram quebrar o silêncio, mas não falaram por mim, porque todas as palavras me foram arrancadas, tive que voltar a aprender a falar, estou a aprender de novo a escrever.

Não abri a boca, ninguém ouviu porque saiu entre dentes, mas apenas cantei esta para a viagem.

domingo, julho 15, 2007

V

Chegou, há mais de dois meses e quatro capítulos atrás, à rua da santa que vai olhando por si, e esta história, mesmo que as palavras teimem em escassear à medida que as imagens se tornam mais nítidas à luz das duas luas que já cresceram no céu, tem de ser escrita em sete capítulos, porque é a história da morte de um mago, vista pelos olhos da sua pequena feiticeira.

Por aqueles dias, os seus pés, os pés de muita gente, mas sobretudo os seus, seguiam três dedos acima do chão.

Houve um momento, e não é fácil precisar, nem na qualidade de narradora, nem na pele de personagem, a partir do qual começou a levitar rasteirinho - talvez, no breve instante em que toda a coragem do mundo se agarrou às suas mãos, que ousaram fazer o que ninguém fez, destapando a face adormecida do caixão, coberta por um naperon de naylon barato, talvez quando as mesmas mãos afagaram, sem tremuras, os caracóis prateados, ou talvez tenha sido no momento em que as lágrimas do seu octogenário avô chegaram ao chão, evaporando-se de imediato, porque aquele homem não chora.

Não foi assim desde o início da viagem - não foi ao primeiro toque do telefone, nem quando a notícia lhe chegou ao cheiro das chagas e ao som das crianças que guinchavam no recreio à hora do almoço. Junto ao edifício da segurança social de Ponta Delgada ainda os tinha bem assentes na terra; lá perto, no Jardim António Borges, estavam tão ou mais presos do que as vastas raízes da maior Ficus Macrophylla que os seus olhos irão certamente ver; carregavam com força no acelerador até ao Porto Formoso, e a custo arrastou-os pelo areal e teve que sorrir quando viu a pequena loira a correr para junto de si. Mesmo quando sobrevoavam o Atlântico, ainda os conseguia sentir.

Não importa. Todos, mais cedo ou mais tarde, saberão. Talvez, a alma que toca incessantemente, sem resposta, à campainha do vizinho, já tenha vivido essa experiência, talvez o primeiro inquilino desta centenária assoalhada tenha sentido o mesmo neste mesmo lugar, junto ao banco de pedra da janela que não existe mais, sabe-se lá há quanto tempo não existe, mas que eu vejo desde o primeiro instante que aqui entrei.

Durante uns escassos segundos, ou mesmo semanas a fio, a dor cessa, passa para lá das marcas, rebenta as escalas, deixa de correr nas veias às golfadas, o ar arrefece, sou capaz de jurar que sim, que correu uma brisa, depois começou a nevar junto ao altar da Sant’Ana, uma neve fofa que caía dos choupos em pompons, e não dos céus em flocos, e depois veio a dormência, foi então que os seus pés passaram a caminhar em frente três dedos acima da calçada.

Chegou à rua da santa que vela por si e continuou a levitar, mesmo correndo riscos desnecessários, quando arriscou uma aterragem de emergência, por ter ousado abrir a porta do primeira quarto à esquerda, onde dormia, numa cama de borboletas, o vestido mágico de uma manhã de primavera.

Deitou-se a seu lado, mais tempo do que aquele que lhe pareceu, e depois foi tudo muito rápido - escorregou para dentro das quatro paredes da segunda porta à direita, só foi à rua da sua santa porque trazia no corpo a mesma roupa há um número de dias que era incapaz de contabilizar, e tirou do cabide o vestido mais bonito que lá estava.

Na manhã seguinte, também o mago iria voar no seu jardim coberto de neve.