sexta-feira, abril 28, 2006

(A)os leitores

Os leitores são um pouco como os filhos, acabo de o descobrir agora, quando devia estar a lavar a loiça, ou a arrumar a casa, não, não, não, melhor que todas as tarefas domésticas: devia estar a d-o-r-m-i-r (e esta noite dormi o quê? seis horas? Batam palmas, levantem o rabo da cadeira ou do sofá, este é um recorde mensal, e o melhor da noite não foi a quantidade, foi a qualidade do sono, os sonhos. Os Pestanas reconciliaram-se com as paredes seculares da Martinha e, em ano de comemorações freudianas, esta semana o baú lá se decidiu a abrir, para arejar, e as correntes que o sufocavam saíram por artes mágicas, e não foi o senhor Sigesmundo quem de lá saiu vestido de coelhinho; foi o fiel discípulo Jung que se acomodou no closet de minha casa - escrevi isto e espreitei pela porta do quarto e os mais atentos, os que devoram este blogue uma, duas, sei lá quantas vezes por dia, deviam ter detectado, neste preciso instante, que algo mudou, que já não escrevo no sofá laranja, mas daqui, sentada na colchão, a meio da cama, pernas cruzadas, olho os meus joelhos intactos sem cicatrizes e já tenho saudades deles assim, tortos e defeituosos, mas sem marcas, daqui vê-se o chão quadriculado a encarnado sangue-de-bói da cozinha e vê-se, também, uma nesga de closet, mas não está ninguém lá dentro: os fantasmas estão a dormir e o Jung só acorda quando eu estiver a dormir o terceiro sono, o sono que, às vezes, abre a porta aos sonhos, quando está bem disposto).
Os leitores são como os filhos sim. As suas necessidades sobrepõem-se às nossas. E este naquito de prosa, quando tudo o que menos me apetecia era estar a escrever - calma, também não me apetecia lavar a loiça, ou estender a máquina de roupa que está no tambor da máquina de lavar desde manhã; eu quero mesmo é sonhar acordada com coincidências, magias e orgias botânicas - comprova-o.
Desejem-me sorte. Não sejam gatos, não queiram saber demais, só quero a audiência esquizofrénica a torcer por mim.

Post-it *

Estou feliz

* Post roubado à menina que não gosta de queijo.

quinta-feira, abril 27, 2006

História

[Perdão pela demora no arranjo paisagístico do quintal, mas, nos intervalos desta escrita, a minha favorita (hoje em dia, já não é a minha favorita, lamento: agora, gosto de escrever com esferográficas do PSD na Moleskine e rasgar as folhas, um sacrilégio nunca antes cometido na grande colecção de cadernos pretos que já escrevinhei na vida, rasgar pedaços de mim, escritos com caligrafias que variam consoante o meu estado de espírito, e depositá-los à noite, no Jardim da Estrela, porque sei que são adubo para a rosa e sei, tenho a certeza, que alguém os vai recolher poucas horas depois) - e isto é só às vezes, muito de vez em quando -, tenho que entrevistar o presidente da câmara de Lisboa, e desgravar a entrevista no mesmo dia (e isto implica ouvir a mesma conversa duas vezes e ouvir a minha voz irritante na fita da cassete), e editá-la, cortá-la, fazer vários textos e títulos, e a meio disso tudo, ainda tenho que ouvir da boca do ortopedista lindíssimo, escolhido num casting qualquer de telenovelas da TVI, a dizer-me que preciso de duas operações em cada joelho, uma, simples, que são dois furinhos e outra que deixa cicatrizes enormes, e depois quase que tenho eu de o consolar, porque ele que diz-me que é um crime fazer-me marcas daquelas nas pernas, mas já não era pelos meus lindos olhos, nunca foi pelas pernas ou pelos joelhos, muito menos pelas mamocas que faço parecer interessantes com decotes sinuosos (e o Carmona, naturalmente, que se desbocou um pouco mais do que devia, pela indecência do vestido que levei para os Paços do Concelho): quem quiser morar em mim, vai ter que levar com duas cicatrizes laterais de dez centímetros de comprimento nas pernas, e claro que eu vou tentar a fisioterapia, doutor, tento a fisioterapia mesmo que haja muito pouca esperança. É que eu também não queria marcas, não queria mais do que as que já tenho e que não foram feitas com o bisturi ou o com o objectivo de me tirar as dores ou endireitar as rótulas]

Tenho uma história para escrever. Mas não a escrevo aqui, não a escrevo para mim, para mim não preciso, prefiro vivê-la a cada dia que passa desta Primavera, a cada rosa que brota no jardim da Estrela. Escrevo, hei-de escrever, com tempo, com calma, de dia, protegida do sol por uma árvore cujo nome informa que ali existe uma bela sombra, para a minha filha. Esta história fez-me sonhar, esta madrugada, com bolas de sabão que traziam o arco-íris lá dentro. E eu não sonhava há não sei quantos meses.

E está um post em draft neste blogue desde a madrugada d0 25 do 4. E o Blogger e todos os blogues da blogosfera fazem figas para que ele seja publicado.
Até lá.

quarta-feira, abril 26, 2006

Mesa-de-cabeceira

Plátano esquizofrénico (do jardim botânico privativo do Zé Ralha) e rosa de Santa Teresinha (Jardim da Estrela). Falta a folha da ficus religiosa (debaixo da qual, Buda atingiu o nirvana, e que veio, também do jardim do meu progenitor), a Carolina, fã do senhor gorducho e sorridente, deu-lhe o sumisso.
Sonhos botânicos é o que desejam estas duas, folha e flor, aqui à cabeceira.

[um pássaro branco disse-me que há correio esquizofrénico atado à sua asa, no sítio do costume]

terça-feira, abril 25, 2006

Probabilidades

[isto deve estar cheio de gralhas, mas a revisão do texto fica para amanhã]

Aprendi as letras na sala cinco, da escola 111, com a senhora professora Gertrudes Maria e a sua régua e palmatória em cima da mesa. E lembro-me da primeira vez que conseguir ler fora da sala de aula e dos manuais escolares. Foi na televisão, foram as legendas de uma série do tempo dos romanos, onde uma personagem, de sandálias atadas à perna, comprava azeite para alumiar a noite e as candeias.
Estava sentada em cima de uma colcha de crochet feita pela Magui nas suas noites de insónia (it runs in the family). A colcha tapava os buracos de um sofá que mendigava por reforma, que me quadriculava a pele das pernas e da cara quando lá adormecia em cima de uma almofada de patchwork feita, também, pela minha mãe fada-do-lar (e eu sou fada-do-blog, mamã, orgulha-te!).
A gata Íris amassava a colcha e ronronava, as garras às vezes ficavam presas nas cadeias e eu ajudava-a a desenganchá-las, a minha mãe reluzia, ouvia-se-lhe o coração, porque, ao seu lado, nos sofás pretos, estava um dos poucos "amantes" que lhe conhecemos depois do fatídico episódio Zé Ralha - e esse amigo, um amor que nasceu ao telefone, tinha-me trazido uma boneca Tucha, ou uma mini-tábua de engomar com um ferro de engomar eléctrico (não consigo precisar, mas trouxe ambos os presentes, em ocasiões distintas), chamava-se Nelson e, quando ele nos visitava, eu saía em pézinhos de lã do quarto da empregada onde dormi durante vinte anos, encostava-me, matreira, à porta de vidro martelado da sala, e via-os a dançar e ficava feliz e ia-me deitar novamente -, e eu resmunguei, de pijama de tecido turco azul, e cabelo preso em duas trancinhas: "as letras vão muito rápido, assim não consigo ler".
E o primeiro espanto foi que o azeite servia, não só para temperar a salada e o bacalhau, mas, também, para dar luz aos romanos. Depois de digerir essa informação, uma maior revelação abateu-se sobre a pequena cabecita, que nunca foi simples: descobri o poder da palavra escrita. Post-it da memória.
A minha memória é um enorme baú - façam-me uma Ressonância Magnética ao cérebro e há-de aparecer no monitor uma enorme mancha azul, que é da tristeza, e um buraco escuro e sem fundo, que é a memória. Porque eu sou isso mesmo, carrego esta sina: um reservatório de memórias, das minhas e das dos outros (e, no entanto, apesar de ter uma memória fotográfica educada nos melhores colégios, o Goaiaoia diz que eu, bebé, bebé como a minha filha, entrava muda e saía calada de uma casa bonita da Travessa do Noronha e, no entanto, não me lembro dele e, por falta de papel e de caneta, ou seja, da palavra escrita, apenas guardei dessa casa no Bairro Alto, um estaladão do Zé Ralha nas minhas bochechas na sala-dupla, e a Marta a dar-me papas Cerélac na cozinha enorme (lembro-me, também, de chorar baixinho, às escuras, num quarto ao fundo, à esquerda, e os meus irmãos, os emigrantes na Escócia, ainda nem sequer tinham nascido, ou talvez o Bernardo já tivesse, de qualquer forma, eu tinha talvez uns três anos, e a memória, a minha, recua até aí).
Comecei a escrever, a escrever para a minha memória, com sete anos - eu soube logo o poder da palavra escrita, vocês acreditem nisto que vos conto.
Num saco da 5-à-sec, abandonado há semanas e semanas atrás da porta da cozinha encarnada, está uma caixa, de Pandora, com os meus diários. Li o segundo volume, 8 aos 10 anos, foi inofensivo, e até me ri com o relato preciso dos dias de uma menina que nunca foi parva, mas que também não era, e continua a não ser, suficientemente brilhante.
Não ouso abrir os volumes três e quatro. Porque a memória é funda, é um armazém sem fim de arquivo-morto, mas também é selectiva, faz a triagem à entrada e fecha a sete chaves o que não interessa.
Esta não escrevo, não preciso: ficou gravada a ferros e, depois, foi tatuada por cima da cicatriz. Enterro-a comigo e quando eu morrer, para além de baterem em latas, como no poema, arranjem-me um bouquet de rosas de santa Teresinha.
Quais eram as probabilidades de passares à memória vitalícia, de seres uma daquelas recordações que nem é preciso escrever?

segunda-feira, abril 24, 2006

Agora durmo menos

Agora durmo menos. Agora escrevo menos.
Foi ele quem mo disse e não era um lamento, não o entendi como uma reprimenda, não levei com nenhum processo disciplinar quando o sol ainda dormitava, apesar de o despertador já estar a tocar há um bons dez minutos, acordando os melros, que já cantavam “bom dia, princesa”, em Santa Marta.
Mas posso estar enganada: os chats, pelo menos este, que vive dentro do Gmail, não têm tom, e também não têm smileys irritantes e sons e winks que fazem tremer o ecrã, não têm fotos ou webcams. Posso ter entendido tudo mal.
Não escrevo menos: os chats são posts, e esta madrugada escrevi um post com 762 linhas, um post que foi apurando em fogo alto, a um ritmo frenético de chuva de estrelas cadentes em céu limpo de Agosto, quatro horas a ser confeccionado e ficou delicioso, não estorricou (a Magui havia de se orgulhar, e o frango do jantar também estava bem – e quando, meu Deus, quando é que eu memorizo que a Esquizo não gosta de queijo???).
Não escrevo menos. Mas devia ser proibido escrever aos fins-de-semana. O Blogger fechava a barraca a bem da nossa saudinha, porque os compulsivos não sabem quando parar (e não sei o que se passa, que graça me foi concedida, porque são seis e meia da tarde, as minhas pestanas estiveram coladas apenas durante quatro horas e meia – o que me lembra que preciso de mais um café, o segundo, e isto vem no seguimento do que eu ia escrever a propósito de serem seis e meia da tarde e de eu ter fumado apenas quatro cigarros).
Antigamente, as audiências diminuiam drasticamente aos fins-de-semana. Agora já não (e estou careca de receber mensagens, essas sim, de protesto: “então hoje não postas?”). Estamos todos agarrados a isto. Eu levo com um ano e quatro meses de adição. Quero Metadona, por favor ponham-me na Metadona.
Não escrevo menos (e se eu paro de escrever?, sempre, recorrente no meu cérebro, em caligrafia itálica, Dupont de prata encaixada nas folhas cozidas da Moleskine). Passei a manhã a rabiscar folhas de papel, a amachucar folhas e a mandá-las para o chão, insatisfeita com o resultado, a certa altura, liguei o computador, Word com ele, antigamente era ao contrário, saía melhor no papel, mas no teclado, já o escrevi, já percebi porque é, trabalham duas mãos, dez dedos, e no papel, quem labuta é a direita, aquela que eu cortava se fosse preciso para o meu irmão siciliano a esquerda pode ficar a destruir as sobrancelhas – novo tique – ou a fazer festas ao cabelo que nunca mais acaba. Uma manhã inteira a escrever o bilhete de resgate que irá acompanhar o livro de 1880 na sua próxima viagem, até ao jardim da Estrela.
Não era um bom dia para o largar. Muitas famílias infelizes, a fingirem que são felizes e equilibradas e funcionais, no seu passeio domingueiro e isto de abandonar livros seculares é como roubar um chocolate no supermercado: um nervoso miudinho e todos os olhos, até os dos patos do lago, por cima da mulher de cabelos compridos, vestido florido e sapatos de cunha Adolfo Dominguez, a seguir todos os seus passos. Fiquei-me pela réperage, não era um bom dia para a caça ao tesouro, apesar do sol que me aconchegou a pele dos ombros, e o livro bem que se contorcia na mochila com ganas de liberdade, com uma insustentável vontade de devir. E agora ele desassossegou-me e não foi por ter dito que eu agora dormia menos e escrevia menos, foi porque me falou de um miradouro e eu não vi nenhum miradouro no jardim da Estrela e, se calhar, gosto dessa ideia, de o pousar num sítio onde ele tenha vista sobre a cidade, que possa lá ficar umas horas, a arejar, depois de ter estado fechado na garagem do Sequeira, dentro de um boca de sapo, depois de ter viajado de Portimão, onde foi comprado há 120 anos, o livro merece uma paisagem bonita, que fique gravada nas suas páginas a tinta invisível, até que ele o venha buscar e o carregue debaixo do braço por 130 degraus acima do nível do mar.

[o post acabou de ser escrito às 19:21. Mas ao que parece o Blogger está a castigar-me pela ausência prolongada e está a fazer-se de difícil]

domingo, abril 23, 2006

Parece-me um bom dia

Para largar um livro (é um livro especial, não é um livro qualquer e tem capa de couro, e letras douradas e páginas amarelecidas pelos seus 118 anos de vida), comprado na garagem do senhor Sequeira, por uma moeda de euro (antes fosse de ouro, era mais bonito se tivesse sido uma moeda de ouro), para largá-lo algures no jardim da Estrela.
Preparados para a caça ao tesouro?

A família [siciliana]

Eu sempre medi o amor na proporção do sangue que se está disposto a derramar.
Por ti, dou a minha mão direita.

sexta-feira, abril 21, 2006

O 50.000 do 56

Pensei que o ponto alto do dia tivesse sido às dez. Ninguém esperava por mim, por isso, a casa da Magui continua a ser o meu asilo, ali peço santuário todas as noites, ela não me dá, nunca me deu colo, mas dá-me de jantar, e sobra sempre comida que dava para alimentar um batalhão porque ela cozinha para todos os filhos, os que nasceram e os que não chegaram a nascer, e sou sempre só eu que apareço, todos os dias sem falta, pico o ponto, assino a folha de presença com o meu apelido perfeitamente imperceptível e, durante uma hora e meia, tenho com que quem falar das idiotices dos meus dias sempre iguais.
No AXN passava a série "Missing", que gosto de ver Português Suave amarelo atrás de Português Suave amarelo (e a Magui não entende porque é que fumo dos cigarros dela depois do jantar e eu também não encontro nenhuma justificação plausível, não gosto sequer do sabor: arrepiam-me a pele ao primeiro bafo), a Carolina brincava com as Barbies pernetas em cima da gaiola dos pombos bebés, que a cadela Boneca resgata do jardim e traz na boca para a Magui criar grão-a-grão (hoje, a cadela encontrou duas rolas bebés e amanhã a Magui vai largar uns borrachos criados a pão-de-ló desde o Natal), o gato Lucas ronronava no meu colo, dengoso, e vinte anos depois do meu primeiro pedido, a Magui finalmente arranjou cinco minutos de paciência para me ensinar o ponto básico do crochet.
E eu fiz duas carreiras, toscas, a linha castanha escura (novelo e agulha estão aqui ao meu lado; tenho que praticar, talvez o crochet me dê sono, talvez o crochet me impeça de ficar agarrada ao computador pela madrugada fora, em noites em que são laranja, da cor do sofá e da parede da segunda sala de Santa Marta, noites sem estrelas, sem lua, noites em que nascem corujas lá em cima, no Marquês, mas aqui em baixo, em Santa Marta, morrem amores perfeitos à janela de um quarto andar, e eu sei que os leitores são capazes de não gostar desta ideia, de eu trocar as postas de pescada pela renda, mas eu estou a enlouquecer e este blogue não ajuda).
Não apanhei o jeito de fazer dançar o pulso com a agulha e a linha (um passinho para a frente e outro para trás), tropeçavam uns nos outros, a linha engalfinhava-se na agulha e o pulso caía para cima deles, uma desgraça, de língua de fora, esforço imenso, crochet em câmara lenta para retardados, e a Magui a gritar comigo e eu nervosa por não ter aprendido sozinha como ela (já não me bastava ter tido um irmão que aprendeu a ler e a escrever sozinho, tinha que levar com uma mãe que aprendeu todos os lavores do mundo pela sua própria mão de fada-do-lar, não é assim, não é assim, dá uma laçada, não é por trás, é pela frente, dá cá essa merda; e eu, mamã, deixa-me tentar, eu só consigo perceber se for eu a fazer; ai que tu és lenta, pega na agulha como se fosse uma caneta, sabes o que é uma caneta?) Mas, apesar da impaciência para a minha descoordenação motora (queria eu tocar piano...), a Magui finalmente conseguiu ensinar-me a fazer crochet.
E eu pensei que o dia ficava por aí.
Eu bordo, eu pinto, eu escrevo, eu canto, eu até já sou modelo fotográfico, não cozinho lá grande coisa, mas passo camisas a ferro com distinção, crio uma filha sozinha, levo uma causa idiota até ao Tribunal Constitucional, tenho o cabelo a bater-me no fundo das costas e um pacote de gomas de ursinhos do meu lado direito e, do esquerdo, um pacote de Drum azul claro e mortalhas Smoking de papel de arroz (e, depois disto, devia ter aqui comigo o material que me faz rir, mas não, a pedrita que nunca mais acaba está longe, escondida, e não consigo ordenar às pernas que se levantem), tenho comportamentos compulsivos com a comida, com o tabaco, com o blog, com o gmail, com o messenger, com a perna que não pára de tremer, com o pai-de-todos da mão direita que está todo escavacado e, para me parecer um pouco mais com a minha mãe, comecei, também, a destruir as sobrancelhas enquanto leio.

Vesti-me de Primavera, ainda estou no campo, na Ponta do Mar, freguesia do Seixal desde 1832, escrito no barracão sem telhado, o chão coberto de lusalide, lá ao fundo, o homem de tee-shirt encarnada apanha caracóis colados às folhas carnudas dos chorões amarelos, vesti-me de turquesa e verde seco, padrão anos setenta, alças cruzadas nas costas (as costas que fazem dois pequenos pneus de lado, descobri isso pela objectiva do Joaquim Gromicho), mas hoje o céu chora.
E dou dois euros ao arrumador que ainda é um homem bonito, e ele gaba-me a pulseira de madrepérola que comprei na loja chinesa, diz que comprou uma igual para a namorada, e a Teresa está à minha espera à chuva, e eu nem sei onde me enfiar, porque já nem consigo ser pontual, eu era obsessiva com a pontualidade e é assim que eu vejo que estou um farrapo. Agradeço-lhe mais mil vezes por ter encontrado o meu anel na Ponta do Mar, junto à roda do Frontera. O anel queria lá ficar, não é a primeira vez que ele tenta fugir do meu dedo, eu nem sei como seria a vida sem ele, tenho calo no dedo de nunca o tirar, é o anel da minha avó Zá, era o anel com que eu brincava às princesices na Praça Pasteur, e ele quis ficar na fábrica abandonada de seca de bacalhau, e a Teresa a procurá-lo, frenética, e eu sem reacção, ao volante do tanque da Opel a falar com a minha avó, a dar-lhe um responso, e até já tinha desistido, mas a Teresa não, e à última da hora ele aparece enterrado na areia, prateado, brilhante, ao pé da roda direita do jipe e eu abraço a Teresa - este foi o momento do dia de ontem e, desculpem-me, é só um instante, mas eu tenho que olhar para ele e para a minha mão, a que já não se queixa da tendinite de esforço há uns meses.
E Davidoff atrás de Davidoff, e eu como uma panela de pressão debaixo da Ficus do Príncipe Real, e a panela de pressão que a Milucha me ofereceu há quase dez anos para o meu enxoval continua virgem, queria aqui fazer uma comparação qualquer com o alívio da pressão da panela, mas eu nem sei como ela funciona, ou para que serve, eu só sei que, da mesma forma que ela encontrou o anel, que é um tronco de árvore, conseguiu que eu não explodisse naquela tarde por debaixo da árvore secular. E depois do Príncipe Real levou-me ao jardim da Estrela, eu precisava de jardins, e lá fomos para minha segunda expedição à Estrela. E ela é a única pessoa no mundo que alinharia na demanda louca de descobrir onde vive o 50.000 sem quaisquer pistas.
Eu até já sei algumas coisas sobre o 50.000. Este não é um blogue de engate, Ana. Já me deixei de parolices românticas. Ninguém no seu perfeito juízo ama alguém apenas pelo que esse alguém escreve ou já escreveu, o 50.000 leu-me os arquivos e tornou-se íntimo, e como tem memória fotográfica, até sabe que o reembolso do meu IRS do ano passado foi de 1237 euros, eu já tentei engatar neste blogue e falhei e não me meto nunca mais numa dessas esquizofrenias (mas era uma ideia bonita, não era, encontrar o amor por aqui?).
Apesar de não ser um blogue de engate, este quintal tinha grandes expectativas em relação a dois leitores surpresa: o 33.333 e o 50.000. A minha vida é dura. Se eu não a adocicar com estas superstições, vou voltar a picotar os pulsos. E eu só sei que há cacos meus por todo o lado, como quando deixo cair um pirex no chão da cozinha, milhares de fragmentos, e não há ninguém que tenha paciência para montar tudo de novo. E depois há ainda o problema da cola. A avó Zá colava tudo com Araldite e eu já nem sei se ainda se vende e se é assim que se escreve. [e como hoje, eles, os dois inomináveis favoritos deste blogue, me partiram mais um bocadinho e me fizeram chorar, quando tudo o que eu não precisava era que abrissem mais uma fenda, eu não sei o que vou fazer, se calhar, vou passar a andar com um autocolante nas costas a avisar: handle with care, hand wash only]
O 50.000 dorme menos do que eu [neste momento, espero, está a dormir, depois de uma maratona de 25 horas seguidas]. Manda-me mp3 de poemas de Al Berto, ditos pelo próprio Al Berto, para o Gmail. Faz-me companhia toda a madrugada, pelo Google Talk, até ontem, até ao feito mais notável dos últimos tempos, tratávamo-nos por "você" e eu sabia mesmo muito pouco: o nome, que vive em oito assoalhadas, que galga 130 degraus para chegar até a casa, que da janela vê o castelo de São Jorge e o jardim da Estrela. Sabia isto. E farejei a Estrela como um perdigueiro, eu e a Teresa inventariámos as várias hipóteses, isolámos probabilidades, subimos e descemos ruas, ambas de saltos altos, e escolhemos que o 50.000 vivia no número 56 de uma rua próxima não muito próxima do jardim. E à noite, pelo Google Talk, eu escrevi-lhe: Já escolhi onde é que quero que more. Para mim, mora no 56.
E ele mora no 56.

[E este é o post 616. Tinha em mente, há algum tempo, que tinha que sair um belo post. Não estou certa que tenha conseguido]

When I am laid on earth

Domingo, às oito da noite, ecoará esta, no CCB, esta que eu andava à procura há mais de seis meses. Má sorte: acordei tarde para a festa da música e já não há bilhetes.
Fica para os leitores enquanto não sai posta de pescada fresquinha ultra-congelada no alto mar, acabada de sair da arca congeladora.

Egocêntrica

Este post é só para mim, para eu não ficar triste quando acordar, quando ligar o computador, abrir o Firefox, colocar a password louca do Gmail, carregar no Enter, esperar que a página abra e, depois, tambores a rufar, compasso de espera de dois segundos, e nada; nada que me diga bom dia, nenhuma mensagem, nenhum elogio, nenhuma declaração de morte ou de amor -- zero, nicles, rien.

(e eu disse-lhe isto no café açucarado aqui da rua de cima, que escrevia pela madrugada fora, porque, assim, de manhã, quase de certeza que tinha pelo menos, no Gmail, um comentário dos habitués morcegos do (t)ralha. É que os dias começam cinzentos quando ninguém me escreve, explico, e já me basta o desamor da caixa do correio lá de baixo, 60 degraus abaixo, que apenas me presenteia com uma lata de comida de cão, dos tempos idos em que cuidava do Alfredo - o rafeiro ruivinho que acabou na fábrica do sabão -, de dois em dois meses recebo declarações de guerra da EDP e EPAL e, mensalmente, uma carta de amor da Tvcabo. E depois desta conversa, na manhã seguinte, às 09h35, um email que dizia apenas: "para teres qualquer coisa no email de manhã").

Os obsessivos são assim. Ou isto são os compulsivos? Estive a pensar nisto o dia todo: acho que sou mais compulsiva que obsessiva - ai, kryptonite, tenho que ir dormir, estou sem poderes: duas vezes na mesma frase a palavra proibida, que nunca sei como se escreve, mas que agora já sei, porque um caça-gralhas me ensinou, e o post que há-de nascer a seguir, que já leva com quatro mil caracteres, mas que tenho de parar porque são duas da manhã, é sobre ele: o 50.000 do 56.
Esqueçam o coro das freirinhas, os tarados à beira-rio, em Belém. Nada mais importa. Surrealidades é já no próximo capítulo, é uma promessa, eu sei que me tenho baldado, mas a emissão segue dentro de momentos e, até lá, tenham todos muito medo, porque coisas bizarras acontecem a quem ousa ler este quintal e é bem mais assustador do que o fenómeno do Entroncamento.

quarta-feira, abril 19, 2006

Final countdown

Confirmou um a um, colou o nariz ao ecrã, deslizou o indicador de cima para baixo percorrendo uma listagem de mais de quinhentas sequências numéricas. Repetiu o procedimento três vezes, o número mágico, o número místico, era meticulosa como os japoneses e tinha a paciência de cem milhões de chineses.
Nada.
Em tempos disse-lhe: Um dia vais deixar de me ler. Vai ser um dia qualquer, nem vais dar por isso, não precisas de tomar uma resolução firme, ou marcar data no calendário. É a ordem natural das coisas. Acordas uma manhã e a obsessão compulsiva de seguir os meus passos no domínio blogspot já não te vai acelerar a pulsação. Vais passar a respirar tranquilamente como quem dorme um sono profundo às quatro da madrugada, quando a passarada acorda e o sono chilreia acordando a vizinha de ouvidos tísicos.
À primeira falta injustificada, admito, ainda te vai doer: uma moinha suportável, uma areia no sapato ou um espinho de rosa enterrado debaixo da pele da palma da mão. Vais sentir remorsos e vergastar as costas com um ramo de azevinho durante a primeira hora. Deixas o sal grosso na cozinha à terceira falta, esqueces-te deliberadamente dele e deixas cicatrizar as feridas. Dou-te sete faltas, tantas quanto as vidas que um gato, para me esqueceres de vez.
No dia em que o IP não ficou registado uma única vez no programa espião começou a contagem decrescente.

[Audiências esquizofrénicas justificam este tipo de postas portadoras de inúmeras doenças mentais]

Lembrete

Não esquece, daqui a umas horas, de contar a história de como as freirinhas de São Sebastião da Pedreira te convidaram para cantar no coro na próxima quinta-feira à noite; de magistrados jubilados do ministério público a demonstrarem solidariedade com a tua causa shakesperiana; do sonho de uma noite de verão de uma queixa no Conselho Superior da Magistratura contra um Desembargador de olhos azuis que nunca esquecerás por mais anos que vivas; de seres "o ponto de fuga" de todo este mundo imenso; de ninguém ter gostado do terceiro capítulo do quatro mãos; do tarado que fazia jogging junto à doca fluvial de Belém, ao início da noite, e que disse que te rebentava com o cú todo e, claro, descreve o teu indiferente à vontade com o homem suado que te queria sodomizar, é muito importante isso - tens lá tesão para isso? Essa merdinha (ergue o dedo mindinho da mão direita para o tarado que passa da corrida para a marcha) nem com uma embalagem inteira de Viagra lá ia, ò desgraçado... Já viste o tamanho do meu rabo? Perdias-te, imbecil, lá davas conta do recado... -; do jantar surreal com o Garcia Pereira com barracudas e tubarões; da jornalista que chegou no fim, banhada e perfumada, que não jantou, bebeu duas caipirinhas, mas que não se livrou de pagar 25 euros de conta como todos nós, a mesma que lê a (t)ralha, que, subtil, quase subliminarmente, lança para a mesa: "ela tem muitas histórias".
E nem ela sabe as histórias que eu tenho para contar.
Não as esqueças, e como andas cansada, escrevi este lembrete, mas agora é cama e sono de beleza.

terça-feira, abril 18, 2006

Modigliani

"Transportei uma mala cheia de amor, mas não houve ninguém com quem partilhar o seu peso"
Amedeo Modigliani

[O que é uma mentira do caraças, exagero fleumático do artista, porque na noite de 24 de Janeiro de 1920, aos 36 anos, Modigliani morre consumido pela bebida, pelo fumo e pela tuberculose e, no dia seguinte, a sua esposa Jeanne, grávida de nove meses, suicida-se atirando-se do quinto andar de um prédio abaixo.]

Capítulo três

Depois de uma semana de afincada reflexão e renúncia, finalmente pari o capítulo III do Quatro Mãos. Ide coscuvilhar. É só carregar aqui.

Do ódio

Sou uma mulher atormentada.
Pelo cansaço, pelo medo, pelas demandas shakesperianas loucas em que me meti e cujo final será uma tragédia, de certeza, e não um "viveram felizes para todo o sempre". Pelo ódio, só tenho um e isso apurou o sentimento, tornei-me especialista, sou exemplar a odiar, gosto de ser a melhor em tudo o que me meto, sou fria e calculista, sou o melhor e o pior dos seres, não me deixem nunca comprar uma Beretta, não me dêem licença de porte de arma nesta vida nem na próxima, tirem-me da frente o antigo testamento que eu arranco um olho por um olho e um dente por um dente.
Lembro-me dos classificados falsos que plantei durante meses no jornal Ocasião: vende-se T3 Avenidas Novas, 120 mil euros, pela urgência e o número de telemóvel do meu ódio; ou potentes BMW por tuta e meia; e mensagens eróticas sugestivas impressas na mesma publicação semanal. Todos os anúncios gratuitos colocadas pela Internet, com caixas de correio electrónico inventadas para o efeito, submetidos nunca através do meu computador, mas em web cafés na outra ponta da cidade da minha casa (e nessa altura, eu soube que podia ser assassina profissional, que tinha tudo o que era necessário).
Torturas. Sou má. Lembro-me de colocar as Valquírias de Wagner aos altos berros, nos primeiros meses de 2004, às segundas, terças e sextas-feiras. E o Requiem de Mozart. De minutos antes das dez da manhã, descer um piso, até ao nono andar, e deixar a porta do elevador aberta e obrigar o meu único ódio a trepar dez patamares de escadas de mármore com pixagens revolucionárias dos meus inquilinos comunas, eternizadas há mais de trinta anos.
Tenho saudades daquelas escadas, são como a caixa de comentários deste blogue, aconteceram lá as coisas mais extraordinárias ao longo de toda a minha infância e adolescência, vivi num quartinho da empregada e nas escadas; vi ladrões e drogados, casais de namorados em cenas potencialmente siflíticas, tive pressentimentos e maus presságios que acabaram por se concretizar, mantive conversetas de café com Deus e com os anjos, porque a carrinha do colégio deixava-me à porta do 22 e depois tinha que esperar, uma, duas, três, sei lá quantas horas para que o Leonardo chegasse da Gago Coutinho; houve cantorias com voz de anjo que perdi para os maços de tabaco, pautas de Mozart e de Bach espalhadas nos degraus entre o primeiro e o rés-do-chão, uma flauta e uma guitarra clássica como única companhia na idade do armário, e nunca fui tão feliz como nessa altura, quando um dos melhores músicos de Portugal, que nasceu e cresceu naquelas escadas, me encontrou ali e julgou que quem cantava era uma das vozes do país, e eu tinha 14 anos, e os sonhos todos na mão, e mais tarde, tive 37 metros quadrados sobre os céus de Alvalade.
E do elevador. Do Hércules cansado. Tenho saudades dele. Às vezes, a viagem até ao décimo piso demorava horas, isto quando levava o cérebro perdido; outras, nem dava por conta da contagem crescente de andares, passava a barreira do som, tenho a certeza disto, e via a minha imagem reflectida no espelho que não existia há mais de vinte anos e que tinha sido pintado de negro pelo meu tio Zé.

segunda-feira, abril 17, 2006

Zé Bastos [saturday night]

[Se forem a ver, Zé Bastos, já em Sines não tínhamos nenhum canabináceo connosco e divertimo-nos como uns piaçabas, no redemoinho da descarga do autoclismo. E se o Zé Bastos dos cabelos encaracolados garantir que volta a Sines este ano, eu cedo a minha cama na pensão que a Teresa já reservou, ou pensa reservar o quanto antes, e vou acampar com ele, de novo, para uma qualquer praia em que acorde com o sol de chapa às nove e picos da manhã e com os pescadores mirones, a tentarem perceber se rolou sexo (ou trepa – um Zé Bastos ensinou-me este vocábulo no Domingo de Páscoa, à saída do Incógnito, muito perto das seis da manhã) por debaixo de um edredão roxo acabadinho de sair da 5-à-sec (e que presença de espírito, ter dois edredões na bagageira do Idea e, sim, é verdade, vou contar-lhes Zé Bastos; se há coisa que eu faço como ninguém é a auto flagelação: nessa madrugada eu disse um surreal “não me ponham areia nos edredões”, quando nos preparávamos para destilar o álcool consumido naquele festival junto às ondas do mar].

O plano para Sábado era ajudar o Telescópio (agora e para sempre Zé Bastos) a mudar os seus trapinhos do Bairro das Colónias para a residencial Zé Bastos, três assoalhas entre o Príncipe Real e a saudosa Praça das Flores.
Trapinhos o tanas. Dobrei cuecas, camisolas, chiça, que o gajo tem tanta roupa como eu, enfiei tudo em mochilas de campismo, e ele não teve hipótese, não podia esperar outra coisa ao pedir-me ajuda e carro nesta mudança: o Sagrado Coração de Maria de néon que lhe ofereci pelo Natal há três anos - e que iniciou uma tradição sinistra de oferecermos as coisas mais surreais pelos natais e aniversários – foi com ele, terá que ter lugar de destaque na residencial (e repara como sou matreira e os três volumes das memórias da Irmã Lúcia que me ofereceste de “prenda de mudança” estão no teu caixote de papeladas e fotos, algures no chão do ninho de ratos para onde te mudaste no passado sábado).
Eu achei que teria de carregar móveis, edredons, bibelôs, o Zé Bastos carregou em Julho, quatro andares a cima, dois roupeiros cheios de roupa, era o mínimo que podia fazer. Por isso, fui de ténis. É certo que tinha os saltos altos no saco, para a eventualidade de ter de emprestar algum glamour à mudança. Mas não me maquilhei, não estiquei o cabelo, e até o prometido decote até ao umbigo não passou de uma vã promessa.
E a mudança, para mim, não foi além de uma estante de cd’s vazia com pés de pato e duas mochilas de peso aceitável para quem carrega todos os dias uma loirinha de 15 quilos a contar até 60, e não é a contar segundos que subo, é a contar degraus, mas numa outra madrugada, com o 50.000 (mil perdões se está a ser demasiado citado, mas é que gosto de si), descobri que há sempre alguém pior que nós, que a contagem deste meu amigo da caixa de comentários vai até aos cem.
Começou bem. À porta do 25, malas e caixotes à entrada e chave não nem vê-la. Telefona ao Zé Bastos senhorio, que larga o terceiro Zé Bastos, o que me deixou passar o “rio” com as rodas enormes do Frontera, algures no Bairro Alto.
Ninho de ratos. Buraco. Um monitor de 21 polegadas que o Zé Bastos dos caracóis te empandeirou sem vaselina (acho que o sagrado coração de Maria de néon pode ficar ali, em lugar de destaque). Caixotes por todo o lado. Tijolos no hall e um enorme espelho de moldura dourada. Casa de homens.
Vais-te perder. Eu sempre disse que te ias perder nesta alteração de morada. Não pensei que fosse literal, estava mais a pensar numa coisa de copos e gajas. Depois de ter visto a residencial com os meus próprios olhos tive pena da empregada doméstica dos Zés e a absoluta certeza que te vais perder nos próximos cinco meses. Entre a tralha e a confusão que vai naquela casa.
Jantar num Bairro Alto cheio de espanhóis e poucos portugueses. Jantar não. Uns petiscos. Que saíram caros. Vinte euros por um picapau e um hambúrguer. Cinco jarros de sangria, ok, está tudo explicado.
Eu e o Zé Bastos dos caracóis, o senhorio, falamos da pobreza em África. Utópicos, na doçura dos nossos 27 e 28 anos, aventamos soluções, mais uma hora e apanhávamos o avião e íamos cuidar da fazenda de café da sua família.
Passeio pelas ruas. Imperiais. Vontade de fazer xixi. Aparece um amigo a quem os Zés chamam de “comuna” e eu já estou por tudo, na tasca, a comer picapaus e a beber sangria atrás de sangria partilhei a mesa e a bebida com elementos do PCP (gostei da ex-deputada) e portei-me bem, apenas um bocadinho de urticária, mas portei-me bem, não fiz passar nenhuma vergonha (acho, porém, que à conversa com o Zé Bastos senhorio, ainda disse que era de direita, mas ninguém ouviu).
O “comuna” comprou uma mota, blá, blá, blá, não me lembro de muito mais e vamos para o Incógnito. Imperiais, imperiais, ex-estagiários de caracóis loiros a dizerem-me, etilizados, que eu sou o melhor do pasquim, que sou a luz deste buraco, a maior, que delirava com as conversas ao telefone que “metiam muitos caralhos”. Dançar, dançar, dançar e ainda bem que não troquei os ténis pelos saltos altos. Até fechar. Conduzem-nos à saída, o Zé Bastos inquilino ensina-me a palavra trepa.
Vamos comer uma cachupa (abriu um restaurante no meu prédio que tem cachupa rica). E eu a achar que era em sentido poético, mas não, segundo andar de um prédio decadente, paredes a escorrerem gordura, um gato laranja ao meu colo. O Zé Bastos senhorio a fazer birra de sono. Eu sem um cêntimo na carteira. Come a cachupa e chama um táxi que nos leva à residencial Zé Bastos.
O Zé Bastos do mato, do todo-o-terreno, dorme no sofá. Só me resta o chão. Venha ele. Almofada e manta por cima. Confortável o tapete. Durmo até às nove e dez da manhã. O ronco do Zé Bastos recém-inquilino é insuportável. O que dorme em cima de mim, no sofá, tem um sono limpo e tranquilo, delicioso. Fico uns minutos a olhar, não abusivamente, porque ele está a dormir um sono bom. Dorme enroscadinho numa manta laranja.
Insisto, tento dormir mais uma hora. Impossível. Na casa-de-banho tenho o pressentimento que, quando achar o amor, ele vai-me roncar de certeza.
Saio em pezinhos de lã.
E não vejo a hora de voltar à residencial Zé Bastos.

O efeito borboleta

Cruzamento da Estados Unidos da América com a Rio de Janeiro. Onze horas da manhã (há empregos cinco estrelas sem horas de entrada e de saída) e, do meu lado direito, o café mais manhoso do bairro, muito alumínio, muito neón e muitos espelhos e era ali que comíamos bitoques aos fins-de-semana, enfiados numa cave gordurosa (lembro-me de o Português Suave amarelo da Magui custar 107,50 escudos), isto quando os avós morreram em fila indiana e deixaram a Magui sozinha no mundo, com um emprego de secretária de direcção pago pelo escalão de estivador num armazém cash and carry perto do rio (quando não havia hipermercados ou a Makro, muito menos o MARL), doze horas de trabalho diário, três autocarros, almoço junto das gaivotas e dos contentores do Porto de Lisboa e, lá em casa, dois filhos pequenos para criar (foi há muitos anos, seguramente há mais de dez, que não entro naquele café).
Barreiras da Polícia Municipal a cercarem os motivos geométricos da calçada – a fachada do prédio que alberga o espelhado e pegajoso Brasiliamérica vai caindo aos pedaços, como uma mulher enraivecida que tenta bater a sua marca pessoal no lançamento de peças de roupa do marido infiel pela janela (e um lance de prédios abaixo, não há muito tempo, uma mulher acabou com o seu sofrimento e voou da janela do seu quarto andar para os pés de um choupo que não morreu de pé; e do outro lado da rua, mas há muitos, muitos mais anos, lembro-me disto ainda, a carrinha do colégio à minha espera e um corpo de uma rapariga largado num caixote do lixo).
O Toyota Yaris reluzente, matrícula deste mês de Abril, à minha frente e não avança, quer seguir em frente e eu quero cortar à direita, e suspiro e não há nada a fazer, não levo, sequer, a mão à buzina, ou o pai de todos ao manípulo dos máximos. Constato mais uma vez que aquela faixa é como as caixas de supermercado para grávidas, deficientes e acompanhantes de crianças de colo – há um magnetismo qualquer irracional, os carrinhos de compras são atraídos para essas caixas exclusivas como porcos às trufas, e as grávidas e os velhinhos de bengala vão para as outras caixas sem rezingar.
“Chico esperto”, diz a Magui, surpresa, eu diria atordoada com a minha estranha tolerância – a estrada, o asfalto, revela o pior que há em mim. “Deixa estar, mamã, se calhar é porque tem que ser assim, dez, quinze segundos podem mudar a minha vida, sabes que já passou tanto tempo desde o acidente na Avenida da Liberdade, mas ainda hoje eu penso nesta coisa dos segundos. Se eu não tivesse deixado a Catarina na Rua da Rosa, se não me tivesse demorado a despedir (estávamos naquela fase, a mais bonita das relações, em que não nos largávamos um minuto, ela ligava-me todas as manhãs, eu tenho saudades disso, mas não é um lamento, é nostalgia, é uma lembrança), se o carro da polícia não tivesse tido dificuldade em estacionar na Praça da Alegria, se eu tivesse ido pelo Rato como sempre fazia, se, se, se… não teria chocado de frente com o Mercedes, na Avenida da Liberdade. Tu é que me disseste para eu nunca pensar nisto, que dava em louca, deixa estar o chico esperto, dez segundos fazem toda a diferença, se calhar tenho que ficar aqui parada, se calhar, foi um anjo que colocou o Yaris acabado de sair do stand à minha frente”.


Como é que é a metáfora da borboleta? Devia ter o Google instalado no meu cérebro (e como é que o corrector ortográfico do Word desconhece a palavra Google? Assim se vê a tirania despótica da Microsoft…). Hoje – já era hoje, já passavam já quase duas horas do dia de hoje –, o companheiro acidental das noites sem fim,

(os dias passaram a ter mais horas, agora eu sei que é isso, não são insónias: os dias estão maiores, tinham mesmo que estar maiores, não me chegam as 24 horas – é que, pelo menos, oito são a trabalhar, outras oito deviam ser a dormir e, depois, restam outras oito e não me chega, tu nem imaginas quanto tempo demora um post a nascer e não sei que pontuação pôr agora aqui, já abusei dos travessões e dos dois pontos, vai um ponto e vírgula, perdoem os que gostam das coisas certinhas; um dia, imprimo-te a (t)ralha e dou-ta para leres nas noites em que não consegues dormir, nem 1000 mg de Codeína com Paracetamol a correrem na corrente sanguínea, gostava de saber se gostas ou se, como sempre, dirias uma coisa menos simpática como quando os vizinhos te gabam a minha beleza e tu dizes que todas as catraias da minha idade são bonitas)

o visitante 50.000 (coisas extraordinárias acontecem neste blogue escuro, caramba), perguntou-me como se chamam “aquelas coisas que prendem as passadeiras aos degraus da escada” (e antes, eu tinha-lhe perguntado por umas amêndoas de caramelo, tipo meteoritos – ontem não me lembrei desta comparação, não soube dizer a que se assemelhavam as amêndoas que o meu avô guardava num armário que tinha puxadores de esfinges faraónicas) e eu não sabia, e ele descobriu no Google Blog Search que se chamam “tranglas”.
O efeito borboleta, a teoria do caos, não quero espreitar à Wikipédia, este blogue não é erudito (por acaso está a ser escrito ao som de música erudita, mas pára por aí a erudição), não pretende ser tese de doutoramento ou aparecer citado na imprensa ou nos blogues da primeira divisão. Este é um blogue para consumo da casa, daí estar exposto à frente dos olhos de quem o quiser ver, mas uma plaquinha escrita à mão e sem nenhuma pontuação, informa que é reservado o direito de admissão, e que é prejudicial o seu consumo a menores de 16 anos. Uma borboleta bate as asas do outro lado do mundo e, nos seus antípodas, um tufão deixa tudo em pantanas. Acho que é isto.
Não me saem as borboletas da cabeça. Tomara as tivesse no estômago. Outro dia, com o codificado girassol, disse-lhe que tinha borboletas no estômago, quando queria mesmo dizer que tinha traças. Ele explicou que eram coisas distintas. Traças igual a fome. Borboletas igual a amor. Tenho as duas. Tenho fome de amor.
O homem que manda libelinhas amestradas à minha casa-de-banho laranja dorme com crisálidas camaleónicas no seu quarto. As pessoas esquecem-se que a borboleta um dia foi lagarta. Que, depois, de comer muitas couves (nunca sintam nojo das lagartas das couves, são de certeza, a promessa de duas asas delicadas), amua e decide-se fechar em copas na couraça da crisálida. Eu não me esqueço. Nunca dormi com crisálidas presas aos armários. Mas à noite, quando metade da madrugada já passou, sem fazer estremecer o silêncio da sala do sofá laranja, adormeço com a visão de casulos quebrados e asas coloridas a baterem num quarto às seis e vinte da manhã, a anunciarem uma doce Primavera.

[A foto foi tirada no dia da libelinha. Estava com propensão aos seres alados nesse dia. A borboleta nocturna pousou-me na mão e para a Leica e depois morreu]

Hoje sonhei que sonhava


[Ninguém dorme na minha cama / Ninguém tenta sonhar meus sonhos - post súbito a ouvir o fado-tango Cansaço, de Joaquim Campos e Luís de Macedo]

domingo, abril 16, 2006

Tentativa e erro

[É tão difícil começar: os posts, como as cebolas picadas, são escritos sempre com muito amor e sem dead lines de fecho para cumprir, sem editores a pressionarem, sem rotativas que se perdem ao mínimo bloqueio criativo. Às vezes acontece, o obrigar-me a escrever, por estas bandas. Sei que há muitos olhos a pairarem por aqui, à noite, como corujas, e de dia, como aves de rapina. Lido mal com a desilusão. Faço tudo pelos outros, esmifro-me, fico seca e sou péssima gestora de expectativas. Não sou uma máquina frenética de produção literária. Espero transes que, às vezes, perdem-se pelas ruas estreitas e becos da rede, luto na lama com as frases, fecho os olhos e vejo letras na escuridão, escrevo e apago, solto os dedos como cães presos à corrente todo o dia, desespero e às vezes desisto. Como hoje. Certamente, amanhã, de manhã, enquanto afogo o cabelo, a cara e os dias calmos de folga no duche, surgirá a frase mágica que iniciará a história da minha primeira visita ao jardim da Estrela que queria contar. Amanhã volto à janela sobre a Andrade Corvo, volto a apostar alto na roleta da EMEL com a protecção do demónio do estacionamento, e os posts voltarão à sua cadência de sete mil caracteres por dia. Nada me inspira mais do que posts entre notícias que, quando saem para as bancas, já são passado. Nada me dá mais gozo do que ser a notícia de ontem.]

sábado, abril 15, 2006

O segredo

iluminação

Descobri isto na cozinha encarnada. A chorar copiosamente sobre as cebolas e sobre a madeira escura e esfaqueada da tábua em forma de porquinho.
Uma hora a picar três cebolas. Uma hora a chorar, sem sequer conseguir abrir as pálpebras. Devo a iluminação às cebolas do ti Manel.
E, de um lado, a minha mãe, zangada com a demora, sempre descontente com o meu desempenho de fada do lar, a gritar-me ao ouvido direito "despacha essa merda, francamente, filha...". Do outro, a Teresa a lembrar-me que gosta da cebola meticulosamente guilhotinada.
O segredo é fazer tudo com amor.
Já percebo porque é que a Magui demora sempre cinco minutos a escolher as cebolas.

No mato, com tracção às quatro rodas

Uma criança. Hoje parecia uma criança a desembrulhar presentes com as bochechas muito rosadas (eu sei que sou filha da minha mãe e que a genética só se baralhou na paleta, trocando o branco leite da pele por um dourado, o azul dos olhos por um castanho escuro, e o loiro do cabelo por um castanho acobreado, quando com a comoção, qualquer que seja a comoção, me nasce um rubor trigueiro nas bochechas, que combina perfeitamente, com os pequenos cabelos muito frisados que nascem ao pé das orelhas).
Ainda não foi hoje que me levaram ao jardim da Estrela. O São Pedro não quis, entendeu por bem não me tirar dez anos de cada perna, disse que já estou crescidinha para me emprestar, ainda que por umas horas, poucas, o complexo de Peter Pan - mas o que lhe deu um gozo danado, ao santo, foi estragar o fim-de-semana prolongado a todos os que rumaram ao sul, à procura do enrubescimento da pele semelhante ao que me tinge a cara à mínima alegria, medo, amor e tristeza (e se eles soubessem como é fácil ficar com uma corzinha saudável...poupava-se um dinheirão em gasolina e portagens e os lucros da Brisa e da Galp caíam a pique).
Eu também rumei ao sul. Sem pretensões a achar um norte. E bingo!
Levei o quatro por quatro, o carro de casada, ao meu lado, um amigo recente, matinal e pontual (já gostava dele, mas a pontualidade às primeiras horas da manhã de um feriado espantou-me), cabeça luzidia e olhos verdes, e outro par de olhos verdes, de um outro verde, um pantone ainda não registado, é verde dor, olhos muito brilhantes, isto lá atrás, no banco de um Frontera que também era verde, muito escuro (e na bagageira, uma arca chinesa, a madeira finamente talhada com flores de ameixoeira, e não era meu o baú, mas gostei que viesse connosco, podia dar jeito para esconder um cadáver, para enterrar um tesouro, para enterrar os meus medos e as tristezas, já agora, para enterrar amores putrefactos da minha companheira de repérage).
Pela primeira vez, comigo atrás do volante, o tractor saiu do asfalto, chocalhou em lombas toscamente esculpidas pelas na terra batida, voou sobre areia, até andou sobre as águas de um rio (era uma poça de água, mas, para mim, era um rio, e ele sabia que para mim ia sempre saber-me a um rio, por isso, cedeu o lugar ao volante e disse-me para eu andar sobre as águas). E eu soltar guinchos de alegria, a perguntar em pânico, com as mãos no volante, cruzadas, sem saber onde as enfiar, e os pés a dançar o fandango entre o acelarador e a embraiagem: "E agora, Jo? E agora?", e ele: "Dá-lhe, dá-lhe, não traves", e eu: "Aiiiiii....."
Encontrámos campos de papoilas rodeadas de espigas verdes, tal como eu os imaginei num post mais abaixo (faltavam as marcejas...), dunas com acácias em flor, cardos azuis e fábricas abandonadas de seca de bacalhau.
Entrámos noutra dimensão, tenho a certeza que sim, na rodagem de um novo filme de Kusturica, quando avistámos um mar de gente enfiado no lodo à procura de minhocas (até a velha, com as rodas da sua cadeira e uma manta a tapar-lhe as pernas mortas, enfiada no lamaçal), quando nos cruzámos com um aglomerado da gente mais feia que se pariu em Portugal, a piquenicar no meio de cavalos brancos ao som de música cigana.
A vida anda lá fora, e eu nunca tinha partido assim, sem itinerário, pela terra batida e pelo mato a dentro. O Jo ensinou-me hoje que nunca, em caso algum, se pode pôr o pé no travão, ou na embraiagem; é sempre, sempre no acelerador. Isto no todo-o-terreno. Só que não é só no todo-o-terreno.
Afinal, sou uma personagem também.
E continuo sem ter ido ao jardim da Estrela.

quinta-feira, abril 13, 2006

Sem fim

Este blogue está em ponto morto.
Só me apetece escrever sobre um personagem e não quero, não gosto de passar por neurótica obsessiva (já escrevi no post "História Interminável" que esta palavra é a minha kryptonite, que por mais dicionários que consulte, nunca sei, nunca consigo memorizar qual a sua correcta grafia - apesar de hoje, ao jantar, me lembrar com exactidão o que trazia vestido e calçado no dia longínquo em que perdoei a Ana nas chegadas do Aeroporto de Lisboa).
A partir do momento em que li uma resposta sem fim, vi à frente dos olhos inchados a mais bela imagem, hei-de escrever sobre isso quando parar de sangrar; por enquanto, e conforme confirmam as cartas e comentários destes leitores, só sei passar dor.
Lamento. Não sabia que tinha esse dom. Não sei se quero ter esse dom.
Calo os dedos e vou lavar o cabelo (hoje, como ontem, as palavras estão amuadas)

[Tem cuidado com aquilo que desejas, disse-me um girassol. É que o mais provável é que aconteça. Este é um conselho que não esqueço]

quarta-feira, abril 12, 2006

Én Csak Azt Csodálom

Én csak azt csodálom
Bennem valójában
Ki a szeretojét
Gyakran nem láthatja
Lám én az enyémet
Csak máma nem láttam
Mégis az én szívem
Majd meghal bújában.



[Admiro tanto aqueles que não vêem os seus amores

O meu amor foi embora há apenas um dia
E já o meu coração se afoga em mágoas.]

Folclore húngaro. Cantado por Marta Sebastyen.

Os jarros de Beatriz



[Para um amor que sempre viveu na memória]

O jardim [da dona celeste]

[Aquele cão é o Fiel; vejam como ele está doido para urinar nos jarros da dona Celeste]

A carga pronta e metida nos contentores [adeus, ó meus amores]


[Ainda o lixo do 22. Ainda as pinturas do meu tio, do meu pai, José Oliveira]

A casa do lixo do 22

[A Carolina olha para as pinturas do tio-avô, na casa do lixo do 22]

terça-feira, abril 11, 2006

E nada de extraordinário acontece


Faltou ao encontro, nem todos têm empregos cinco estrelas, nem todos podem escrever debaixo de uma Ficus que enterra as raízes no céu, e que há-de morrer no Príncipe Real cheia de dias.
Mas mandou mensageiro a dizer que um dia se encontrariam "de alguma maneira estranha". Mandou mensageiro alado, igual ao que ela traz tatuado nas costas que ninguém abraça.
O "fura olhos" entrou de mansinho, ela tirava da corda roupas em miniatura e cantava "eu queria mais alegria, isso é que eu queria", dizendo bom dia aos quintais e às gatas tricolores, preguiçosas, em cima de telhados de zinco.
Não o viu entrar, tremeu de surpresa quando se preparava para deitar um molho de collants coloridos em cima da camisola turquesa, disse, aguenta aí, por favor, vou tirar a Leica da tomada, sabia, alguém lhe sussurrou perto das quatro da manhã, para carregar a bateria da sua maior excentricidade consumista.
Empurrou a patilha do off para o on, no memory card, praguejou o seu melhor calão, é só mais um minuto, aguenta, congela o momento, por favor, eu preciso de te fotografar, para acreditarem em mim, é que contado ninguém acredita, preciso de provas.




E posou durante mais de dez minutos para a camera, ela chegou-se perto demais, lembrou-se do nome "fura olhos", mas não temeu, às tantas pensou que era um fóssil, que estava morta, não lhe ouvia a respiração, sequer a batida cardíaca nem um tremer de asas delicadamente rendilhadas por mil bordadeiras durante a madrugada passada. Terminou o último disparo, o cartão só tem 32 MB, 54 fotos, disse, podes ir à tua vida, e o insecto pré-histórico fez-lhe uma razia à longa trança que descansava sobre o ombro direito, sentiu o vento das asas no pescoço e uma música nos ouvidos cujo refrão era "e nada de extrordinário acontece".

[sem rumo]

Vai ser uma noite daquelas (e depois, nada de lamúrios, que nas fotos de há um ano atrás parecias bebé, que não tinhas olheiras e rugas nos olhos. Quem não dorme não mama?)

Sem tabaco, a dar as últimas passas no Davidoff que se extingue em direcção à vidraça aberta (é a única janela da casa que não foi substituída por alumínio asqueroso, tem vista para os quintais abarracados e para o gigantesco prédio da Duque de Loulé ao abandono).

Sexta-feira, o dia que marquei na agenda que não me levantava da cama. Os planos divinos, porém, eram outros, e telefone tocou às 09h16 (e, sabe-se lá como, chegámos lá abaixo ao Largo onde um andaluz perdeu as botas, pontualmente, à hora estipulada em acórdão do Tribunal).
Perco hora e meia da manhã no boteco vizinho, finalmente, a dona Beatriz explica-me a história dos jarros que estão ao balcão, elegantes e despojados como só os jarros sabem ser na natureza, mesmo que enfiados num boteco amarelado e dentro de uma jarra improvisada num garrafão de água de cinco litros degolado ao meio.
São as minhas flores favoritas. Acaso eu tivesse jeito para a coisa, para a fotografia, gostava de eternizar a Primavera num logradouro das traseiras dos prédios baixos da Estados Unidos da América: o jasmineiro trepa pela fachada acima, chega quase ao primeiro andar, tapando toda a janela da cozinha da porteira, e os jarros estendem-se como um tapete à porta da entrada. O Fiel gosta de lá mandar uma mijinha, mas eu contrario o seu ímpeto canino por mais que a Magui me queira convencer que a nicotina e a ureia fazem bem às flores, que matam os pulgões e outras pragas.
Os jarros da dona Beatriz estão ao balcão há quase quinze dias. Quando chegaram - e esta minha querida taberneira tem sempre cameleira rosa à porta do tasco, enfiada num balde de plástico verde; desconheço o porquê e a minha fixação na realidade não vai tão longe, já me basta ter que digerir tudo o resto, creio, que é superstição; da mesma forma que alguns comerciantes da avenida do Brasil colocam figuras de sapos à entrada dos seus estabelecimentos para os ciganos da rua das Murtas não ousarem pôr ali os seus pézinhos arruaceiros, da mesma forma que os namorados se beijam por debaixo do azevinho, da mesma forma que a Magui tem sempre um pezinho de arruda à porta e sempre que esta planta mágica murcha inexplicavelmente, ou lança um fedor que não se pode, a minha mãe diz: "Vem aí ramona, Diana..." -, eu gabei-lhos e ela chorou.
Mas o tasco estava cheio, dos habitués, o caro António José, imigrante brasileiro com um bom coração e braços disponíveis para ajudar a levar as minhas compras até a um quarto andar sem elevador, mas com um grave problema com o álcool; o senhor Sequeira, alfarrabista, a enrolar os seus cigarros com maior perícia e precisão que as máquinas industriais, diariamente calibradas pelos técnicos da Tabaqueira; os agentes da vizinha PJ com ar de agentes da PJ; e as duas velhas insuportáveis, que já me rotularam de mulher de má vida por ser mãe solteira (e a casa estava cheia, o boteco é muito pequeno, a casa estava a abarrotar).
Todas as vidas são interessantes. Acredito nisto com todo o ser, tal como apregoo que a sorte protege os audazes.
O António José traz sempre consigo as cartas que a mãe lhe envia e só vejo uma explicação para este cordão umbilical que estica até ao limite de um oceano: o colo e consolo são precisos nas situações mais curriqueiras do dia-a-dia; a senhora sua mãe, professora primária, envia-lhe livros de auto-ajuda tipo Paulo Coelho, que este, depois, empresta à dona Beatriz, e ela, por sua vez, lê-me as dedicatórias enternecida.
O senhor Sequeira gaba-se de ter sido um bon vivant, por agora, a sua única companhia é a cadela Carolina, uma rafeira gorda e mal disposta, os dois boca de sapo que estão estacionados na garagem cheia de livros, de vez em quando um filho, que é a sua cara escarrada e cuspida, e a banca de alfarrabista no Príncipe Real.
Desconheço a vida dos PJ's, é verdade, é um lapso, mas acho-os sinistros e geralmente, bloqueiam-me o Idea e é sempre um cabo dos trabalhos para sair de manhã.
As velhas são castiças. Uma é viúva, veste-se de preto da cabeça aos pés (eu aposto que usa cuecas brancas, porém, é uma abébia que dá a si própria) e a Carolina - a minha, não a cadela do senhor Sequeira - chama-lhe feia. A outra saiu directamente da montra de uma loja de horrores, pobrezinha, muito rouge nas bochechas e baton fora das fronteiras dos lábios, sobrancelhas esborratadas a lápis castanho. E cheira mal, pronto, disse-o (eu não sou uma boa pessoa; não estou aqui a tentar enganar ninguém), e quando chego já muito de noite, ela está à varanda e, invariavelmente, pede-me para confirmar se a porta do prédio está fechada (eu faço-lhe a vontade; não sou assim tão má como isso - a Thê diz que sou a única pessoa do mundo que diz bom dia e boa tarde aos portageiros e dá passou bem e bem haja; isto é porque eu estou mesmo convencida que não existe pior profissão no mundo do que portageiro).
Os jarros são de um morto. Do amor da vida da minha querida Beatriz, que já é uma espécie de avó adoptiva da Carolina, distribuindo barrinhas de Kinder todas as manhãs, que, depois, não me deixa pagar (e graças a Deus que não deixa mesmo, que os meus mil euros não davam para comprar um chocolate à loira todos os dias; pronto, estou outra vez a ser má).
O morto não chegou a recebê-los, à dona Beatriz resta-lhe a consolação de lhe ter ligado horas antes de ele partir. Não foi ao funeral. Dói-lhe muito. Mas não foi para evitar mexericos lá "na terra". A dona Beatriz é casada. Tem quatro filhos. Aquele foi um amor de criança. Tem um calendário com um gatinho, pregado na parede com um pionnaise, repleto de códigos que só ela sabe decifrar. Abre o cofre comigo. Explica-me a história toda, mas eu ainda estou zonza, não era suposto ter-me levantado hoje da cama, queria ter ficado de cama e, por isso, assimilo só um terço da tragédia.
Durante toda a sexta-feira não consigo articular frases completas. A amiga esquizo, que está sempre à janela mágica, lança-me o repto de ir almoçar ao Chiado. Vou sem hesitar. Fica mais tranquila à medida que a tosta de mozarella do almoço desaparece do prato. Diz que eu não estava a fazer sentido durante toda a manhã. Que ficou preocupada. É um anjo.
Há notícias para produzir pela tarde fora (até eu, que não queria trabalhar, tive que escrever para um buraco na página, tive que coser mantas de retalhos, e pior, esqueci-me de assinar uma peça, entre uma consulta de endocrinologista que diz que algo se passa com uma tiróide e 400 telefonemas, mas o registo de propriedade das notícias é algo que já não me rouba horas de sono, nem pensar, a história era só minha, é certo, mas as histórias são de quem as apanhar e, assim, menos problemas tenho eu com as colegas - está colegas de propósito, porque como diria o Cerejo, colegas são as p.... - que teimam divulgar entre si que ando a dormir com este ou com aquele e que, só assim, se justifica que, de vez em quando, tenha uns exclusivos).
Deixo-a à porta do seu jornal, assusto-a mais uma vez dizendo: "Vou apanhar o primeiro autocarro que me aparecer pela frente. Preciso de aventuras, de ver pessoas novas, e nada como andar nos transportes públicos para algo insólito acontecer".
Faço um grande desvio para passar na igreja das minhas preces urgentes e desesperadas (só o faço, naturalmente, porque estou de ténis, a minha fé abala em cima de saltos de sete a dez centímetros), acendo vela ao Expedito, à Teresinha e ao arcanjo são Miguel, faço mil preces, como sempre, acontecem fenómenos por debaixo da espada do meu santinho favorito (fica para outro post), compro raminhos à saída que, só mais tarde descubro, que são para benzer no Domingo que passou (compro-os porque cheiram bem, a alecrim), dou esmola ao romeno que se faz passar por atrapalhadinho (boazinha, sou boazinha, diz a velhota que vende os raminhos) e, depois sim, apanho o primeiro autocarro que me aparece. Deixa-me no Marquês, ainda por cima deixa-me perto do emprego, e nada de extraordinário acontece.

Cortar pelo tracejado


[O gague foi inventado pelo meu irmão, Leonardo Ralha, quando estava a ouvir uma conversa que só lhe dava vontade de cortar os pulsos. Após a matança cruel e injustificada d' O Acidental, o big brother estreia-se na blogosfera a solo, aqui]

segunda-feira, abril 10, 2006

Medos

Hoje, com medo de escrever e de sair à rua.
Detesto férias.

sexta-feira, abril 07, 2006

Migalhas

[Escrito nas madrugadas de oito e nove de Abril. Para quem é bacalhau não basta]

Ele não sabe. Não tinha que saber. Isto é uma migalha.
Noutra vida fui uma formiga, não a rainha, que fica deitadinha a desovar e a ser servida pelas escravas, fui uma igual a tantas outras, as que carregam o mundo às costas, as que fazem peregrinações de quilómetros em busca da santa migalha.
Sou cão farejador, sou porco viciado em trufas, sou detective profissional com investigações com dignidade em todo o país (a César o que é de César: este é o slogan do detective Correia, um Sherlock português que anuncia no PÚBLICO desde a sua fundação; vêem? isto é uma migalha), sou grão-a-grão enche a galinha o papo. Uma migalha achada no palheiro é o quanto baste para mim, é a minha droga, a diferença entre um dia bom e um dia mau.
Em Santa Marta, há migalhas no closet. A minha filha Carolina deixa cair pedaçinhos de bolacha Maria quando estamos de saída, a vestir os casacos, sempre atrasadas para não sei o quê. A loira gosta, também, de esconder os Little People e as surpresas da Kinder no cesto da roupa suja (e acabo de descobrir, porque são três da manhã e a fome apertava, que os snacks dessa marca que imortalizou o Ambrósio têm 8,5 por cento de licor de laranja; estou em transe, ando a dar sopas de cavalo cansado à minha filha e eu a pensar que isto era bom, que tinha mais leite que cacau). As formigas percorrem os trinta metros quadrados da cozinha e dois passitos do hall (podem ir pela sala, mas creio que o caminho é mais longo e as formigas, pelo que sei, até da minha vida passada, não são nada parvas) para recolher a esmola que o anjo loiro deixa na assoalhada onde descansam as minhas dezenas de pés sobressalentes.
Eu sou assim. Junto migalhas para os Invernos frios frios do meu ser. Noutra vida fui uma formiga, mas tenho sempre as portas abertas para as cigarras. A minha vida só faz sentido com elas aqui ao lado, a cantarem-me baladas pela madrugada fora, a comerem da minha comida, a esvaziarem a despensa e o frigorífico, a dormirem na minha cama, em cima dos lençóis de linho branco, bordados pelas mãos cor-de-rosa da minha mãe.
Ele não sabe. Isto é uma migalha, não tinha que saber. Foi o primeiro a escancarar a caixa de correio electrónico desta tralha. Sou capaz até de arriscar a data da sua carta de apresentação - aposto 20 de Novembro de 2005. Dizia qualquer coisa como isto: Por entre as tuas tralhas em pantanas nunca digo nada. Hoje decidi dizer. Leio-te. (Amanhã, confirmo as datas e a fidelidade das suas palavras, quando não me doer a mão e os olhos estiverem menos raiados de sangue, e se acertar em tudo, dou-me por contente, hoje joguei no Euromilhões, amanhã pode ser o meu dia de sorte. Ou é na sexta-feira o sorteio?)
Foi o melhor acordar de há muito tempo. Tem sido um Inverno muito rigoroso. Neva em Lisboa todas as semanas. Tenho recaídas, flutuações de humor que me preocupam, sei que nunca estive tão louca. Hoje não queria acordar. Não ia acordar. O outro ia ficar lá em baixo, no Largo de Andaluz à espera, indeterminadamente. Eventualmente, ficaria preocupado, tentaria telefonar para perceber o atraso. Eu não atenderia o telefone à primeira. Nem à segunda. Talvez à terceira o atendesse para lhe dizer que o despertador não tinha tocado. Era mentira. O despertador tocou à hora certa e eu desliguei-o e não me levantei.
O telefone tocou. Eu pensei que já passava da hora, que era o outro, o das terças e sextas, lá em baixo irrequieto. Teria visto o meu automóvel, ficaria preocupado. Eu pensei em tudo quando o despertador tocou e o desliguei e voltei a dormir (tinha acabado de adormecer; o dia já era dia e eu ainda deambulava pela casa). Teria visto o meu carro sim. Ele também foi formiga. Das más. Das marabuntas. Ele sabe datas em que eu disse "tenho medo, vem aí mais um Ralha", tem tudo na ponta da língua, processa as migalhas no seus sete estômagos e torna-as ácidas e corrosivas, vomita-as e queima quem aparecer pela frente, não partilha absolutamente nada com cigarras, nem pensar, as migalhas junta-as como peças de puzzle para ferir alguém.
O telefone tocou e eu decidi olhar para o visor. 09h16. Número privado. Não era a outra formiga, então, a hora decretada pelo juiz é às 10 (esperarei por ti com os maxilares cerrados). Tinha dormido apenas 45 minutos desde o cantar de galo do telemóvel que silenciei.
Não atendo números privados. Tinha decidido que hoje não ia sair da cama - mandava um holograma à cozinha preparar o biberon da Carolina quando, eventualmente, ela despertasse; o mesmo fantasma estava incumbido de colocar no DVD cinco ou seis episódios do Noddy. Tinha pensado em tudo. Não atendo números privados, hoje nem pelo meu anjo consigo sair da cama, não atendo, não atendo... Atendo. Sem saber porquê, atendo.
O silêncio. Soube logo que era ele, escusava de se ter dito que se chamava David, eu soube logo. Diálogo de loucos, eu respondo-lhe a tudo de olhos fechados, destapada pelos lençóis que arranquei da cama, nas poucas horas que o corpo descansou no colchão e que, no entanto, me brindaram com pesadelos suficientes para um mês.
Pronunciou uma das minhas palavras favoritas, "picuinhas", ele não sabe nada disto, não sabe que eu acho que não mereço estar fotografada no melhor blogue de Portugal - e o amanh'ser não é um blogue sequer, é um território à parte, é beleza pura onde eu me refugio quando não consigo dormir; e, de um lado da cidade, ele fotografava o tralha, e no outro, eu visitava as fotos que têm uma luz mágica e ouvia o Cold Water.
Ele não sabe que só me levantei porque o telefone tocou às 09h16.

Insomnia

miguel says: (1:37:51 AM)
sou tróia. enfiei-me no cavalo.isso é que ninguém espera

miguel says: (1:38:07 AM)
(podes começar o próximo post assim)

miguel says: (1:39:05 AM)
vá....

miguel says: (1:39:08 AM)
desafio-te

miguel says: (1:39:13 AM)
começa um post assim

miguel says: (1:39:18 AM)
ahora chica

I'm jealous of the rain says: (1:39:20 AM)
começo sim

Eu sou a Tróia da Torralta, das torres abandonadas, betão a rasgar o céu azul da Península, colónias de morcegos em quatro paredes sem janela e sem telhado, sou a glória adiada a implorar a implosão, detonada na tenda vip pelos engenheiros, em directo para os quatro canais.
Desta é que tu não estavas à espera.
Mil mãos trabalhassem hoje numa linha de montagem. Dois milhões quatrocentas e trinta e nove porcas tivesse eu torcido o rabo com uma chave inglesa, muito bêbeda e da cor da lagosta. Hoje nada poderá fazer sentido.
Hoje vi um carro estacionado em cima de um gato. Não é metáfora. Estava à janela a fumar Davidoffs brancos, brancos hábitos que a Teresa me passou para os pulmões, e vi o pneu de uma VW Sharan por cima do bichano e o rabo espetado do animal em rigor mortis. E o miolo não admitiu sequer que fosse ilusão de óptica, viu, imediatamente, que era um gato espalmado de rabo de fora. Apesar das dioptrias, apesar de a estagiária engraçada do Internacional garantir que era apenas um pedaço de plástico.
Isto não está bem.
Hoje fiz o download da Bíblia para o Ibook e no Ibook vivem formigas pretas - só dessa maneira eu compreendo que ande sempre uma a passear junto à tecla F8 (ou será sempre a mesma? Eu não mato animais, só os mato, aliás, extermino, goradas todas as vias diplomáticas).
Li o livro de Jó de uma ponta à outra. Usei uma passagem numa caixa de comentários de uma amiga esquizo, que tem um blogue numa cidade aqui perto onde não há sexo.
Procuro amor na caixa dos comentários, não o acho, esta caixa não é abençoada pelo Santo António, é apadrinhada por um santo qualquer, esquecido nas biografias que consulto com uma avidez semelhante à do interesse mórbido de mulheres com rolos na cabeça procuram nas revistas cor-de-rosa, largadas em salões de cabeleireiro, as novidades das caras conhecidas da televisão.
Esta caixa de comentários é como o teu cavalo, sai de lá o inesperado, o insólito. Mil cabeças trabalhassem 80 horas por semana em tempestade cerebral contínua, violando o Código do Trabalho, mil poetas dourassem a pílula em estrofes escritas em guardanapos de papel, nunca inventariam nada semelhante, a imaginação não chegava aos calcanhares daquilo (calcanhares daquilo é bom) que me traz a caixa de comentários, do que me traz a rua Viriato e as suas imediações (gato morto por carro estacionado; repito, gato espalmado por roda de VW Sharan).
Há coisas boas. O 33.333, com quem comecei o novo blogue (publicidade é bom, eu estudei para isto durante quatro anos num edifício louco e bonito colado à Segunda Circular, e este não blogue não é secreto, pode ser linkado pela blogalhada toda, venha a publicidade, quero prime time e páginas ímpares), que na realidade é um blook (apendi esta hoje no site da BBC), que mudou de nome à última da hora (e não nos alonguemos mais em nomes, porque senão eu volto a citar Romeu e Julieta e os Montéquios e Capuletos).
Saiu de lá o 50.000, duplo leitor, que espia os meus dois mundos literários - o a sério (este) e o que me paga o salário, e que é impresso em papel de má qualidade e está à venda por não sei quantos cêntimos, todas as manhãs, nas bancas e quiosques de cima a baixo deste rectângulo pequeno do cú da Europa -, o 50.000, a quem me dirijo respeitosamente na terceira pessoa do singular, que detecta os links que eu faço daqui para o jornal e do jornal para aqui (coisas que eu nunca imaginei que alguém se apercebesse, que alguém se desse ao trabalho)
E depois saíste de lá tu, vestido de coelhinho, subvertes-me as palavras, brincas com elas, deixa-las zonzas de tanto andar à roda, ficam disléxicas, escondes mensagens em garrafas que vêm dar ao Tralha.
Este dia não lembra ao menino Jesus nas palhinhas deitado.
Eu pedi-te a tua mioleira num frasquinho de formol e tu aceitaste entregá-la ao domicílio no ano de 2012.

quinta-feira, abril 06, 2006

Cheias de nada

Quatro mãos, duas são minhas, escrevem um blogue. Aqui.
[este post mudou o nome do blogue. Chamava-se cincogavetascheiasdenada. Não mais]

quarta-feira, abril 05, 2006

Pietá

O que é belo é belo, não tem nada que se lhe diga, é belo de caras, de chapa, e às vezes cega, e por vezes dói.
Campos de papoilas, sarapintados aqui e além de amarelo e de branco das margaças bravias (o dicionário do Word não conhece a palavra "margaça", mas ela existe, ela existe em todos os campos na Primavera – primeiro vêm as flores brancas, depois as amarelas, e só depois a Primavera alarga o leque cromático – e eu hoje de manhã, sob uma chuva torrencial que me feria o vidro do Idea, encontrei papoilas fora de tempo e margaças, em Chelas, foi esta manhã, e é sobre isso mesmo que versa este post: a grandeza da beleza escondida no meio da fealdade), barricadas por uma muralha de espigas verde fluorescente.
Isto é belo. Ninguém pode pôr defeito, que é pecado. É o cenário das minhas mais doces fantasias românticas (isso e vestidos brancos de algodão fininho, que deixam passar a luz e o sol, e cabelo com reflexos cobre, levemente ondulados e ásperos do sal do mar, e a unha do meu indicador direito, sem verniz, a tapar a fenda que nunca existiu entre os meus incisivos).
Há uma beleza maior na dor, na fealdade. Borrão de tinta-da-china debaixo dos olhos, desenhado com rigor de tento pelos pêlos finos dos pincéis de pestanas empapadas em rímel, outrora rijas como icebergues, e que se transformam em aguarela, que se derretem como os relógios dos quadros de Dali, à primeira lágrima que se verte do copo cheio do canto do olho.
Verniz encarnado estalado entre os dentes, unhas e peles roídas com medo do devir, treçolhos de noites em branco. Olhos de cor-de-burro-quando-foge, na cara suja de uma criança com demasiadas cicatrizes para o veludo fino da sua pele. Entrançados complexos numa cabeça onde todos os fios de cabelo são brancos, onde a cara é um mapa de becos de rugas, narizes que pariram verrugas peludas. Bebés de crânio deformado, achatado como um melão, pela travessia sinuosa do parto e da bacia das suas mães, cabecinhas pequeninas como laranjas, marcadas no cocuruto com um círculo perfeito das ventosas. Rapazinhos de cabelo laranja crespo, pestanas da cor do cobre, encaracoladas a mais de 300 graus, medidas por um escantilhão; sardas executadas por um pintor pontilhista na face, e na mão, muito pequena e branca, leitosa, uma camélia rosa, dois lírios azuis, colhidos do quintal e unidos num bouquet, no mais belo bouquet de todas as salas de espera, com um retalho de papel de alumínio.
Há uma beleza maior em tudo isto. Escondida. Para quem vê. Vedada a quem olha.
Na minha amiga Ana, a minha Pietá do dia, espartilhada por um roupão azul, sentada comigo no banco de madeira da recepção do segundo piso da Maternidade Alfredo da Costa, a vermos passar um vai vem de sorrisos, flores, embrulhos e máquinas fotográficas, a pele dela minada por um acne que nunca lhe conheci, e a Ana a segredar-me, seca, sem lágrimas, sem brilho nos olhos, automática, que as odeia, que não consegue voltar para o quarto, porque elas têm os bebés ao seu lado e ela não.

Amor nos tempos modernos

Coordenadas? Quem as tem?

terça-feira, abril 04, 2006

Muitas vírgulas. Poucos pontos. Parágrafos extensos sobre o choro

“Porque é que tu sofres tanto?”
A pergunta salta-lhe pela boca fora, e eu já estou a chorar sem vergonha nenhuma na cara, trago um exemplar do Metro debaixo do sovaco, venho tão perdida para este almoço que nem lembro o que trazia vestido, eu tenho memória de elefante para este tipo de pormenores e varreu-se, é uma terça-feira, a Primavera começou hoje, fui entrevistar uma vereadora da câmara e não disse nada de jeito, empapei as pestanas de rímel preto para não chorar, porque este não é à prova de água, fica um borrão se se solta a lágrima.
É a primeira vez que choro por alguém depois de ti, desta vez não é por tua causa, e és tu que estás ali, para me fazer ver o lado bom das realidades frágeis que me abalam o ser como um terramoto de magnitude seis na escala de Ritcher, tu, que és tão negro como eu, que fazes da depressão um culto, e eu só sei que choro descontroladamente, muito perto do choro com soluços, numa fila de pré-pagamento de um restaurante trendy, onde nos passámos a encontrar – depois de tudo, ainda nos encontramos às escondidas, não é deliberado, estamos separados do resto do mundo apenas pela Fontes Pereira de Melo, podemos ser apanhados a qualquer altura, brinca-se com o fogo, depois de tudo, continuamos a brincar com o fogo.
Limpa-me as lágrimas com a mão, “ficas tão bonita quando estás triste”, e eu encosto a bochecha gorda à mão magra, e desconheço as linhas daquela palma se lá estou encriptada, nunca fiquei a olhar para ela, estive sempre de olhos fechados, ainda hoje não os posso fechar, porque me lembro de uma história que escrevi algures neste blogue, de pestanas que se colam umas às outras em conluio milenar com os amantes. De olhos fechados o tempo passa mais devagar, dizia eu nesse momento de felicidade literária absurda, e com a tua constatação da beleza da minha dor, rio e choro ao mesmo tempo, gargalhada alta, lágrima fácil, daquelas torrenciais, que caem e vão direitinhas ao queixo (e choro mais do olho direito do que o esquerdo).
O exemplar do Metro fica nas escadas, tu é que o abandonas por lá (tento, tento recordar-me em vão de qual era a manchete), ao pé de saleiros e pimenteiros enormes, dispostos numa prateleira de folheado quase negro da Ikea (chamam-lhe wengé à cor, está na moda chamar-lhe isso); pimentas de três cores, sal marinho muito grosso, muito bonitos mesmo – um dia, hei-de comprar um para a Magui, ela havia de gostar –, a ementa à minha frente, a menina da caixa a desviar o olhar do meu choro, embaraçada, e eu a limpar as lágrimas, à pressa, com as costas da mão (a minha vizinha vem à janela já sem lenço, sem cabelo nenhum, com a morte atrás de si, e eu também não a consigo fitar e falo-lhe das tulipas roxas que floriram nos seus canteiros, desconversando de forma estúpida), o prato vegetariano esgotado, vou então para o caril, sim, o menu com café, água natural, porque me dói a garganta, fumo demais, tenho um gânglio no pescoço sempre inchado, sabes que não suporto golas redondas, chegadas à garganta, golas altas, então, são um calvário, esta coisa dos decotes vertiginosos não é só provocação e truque ilusionista para parecer que tenho mamas; é que eu estava sempre com anginas quando era pequena, febres a 40 todas as semanas, e o médico apalpava-me o pescoço a toda a hora, com tanta força e eu quase sufocava, ganhei trauma, é recalcamento sim, fiz a mim própria o diagnóstico, é que nunca na vida me vou sentar no divã, eu não saía de lá se lhe contasse da alergia que me cobre os braços quando estou nervosa, pressionada pelo fecho do jornal, nunca poderia falar-lhe da voz que me faz companhia, saía dali para os maravilhosos jardins da Avenida do Brasil em colete de forças.
A minha filha chora como eu. Gostava de fazer um tratado sobre o choro. Há mil e uma formas de chorar. Eu tapo a boca com a mão direita, quero a dor dentro de mim sempre mais um bocadinho, não gosto de a vomitar à pressa, em busca de curas fáceis e milagrosas. “Porque é que sofres tanto?” Tens aí a tua resposta: sofro tudo de uma enfiada só, não deixo sair a dor, tapo a boca com a mão direita, depois passa a fazer parte de mim, acomoda-se nas minhas entranhas.
E tu como choras? Eu gostava de saber como choras.

[post com muito poucos pontos finais e a abusar das vírgulas. Mil perdões, mas saiu assim e há-de ficar assim]

blured


Este é o estado de espírito da autora deste blogue.
[não sei quem é o autor da foto e espero que seja a Esquizo e não o ex-bomba-relógio, aka decorativo]

Terça-feira

À frente do Ibook desde as onze da noite, já passam 22 minutos da meia noite e nada.
Ainda não estou preocupada. As histórias sucedem-se em catadupa à frente dos meus olhos, simplesmente não as consigo apanhar com os dez dedos que descansam no teclado, quando planam rasteiras por aqui, a provocar, num strip tease desacarado.
Há muitas histórias apara contar.
O Sábado todo dava um daqueles posts intermináveis. Não pode ser. Há muitos inomináveis metidos ao barulho.
Podia contar-vos de como recusei um número mágico de quecas. Como a mulher mais fantástica do mundo me atacou o pescoço, sem deixar marcas, de tão vampira profissional que é. Que o André, o meu único amor capilar, regressou de surpresa, depois de um ano e meio de ausência abrupta e injustificada, quando eu julgava que o momento alto do dia seria arranjar uma vaga na manicure. (quando acabou, o cabelo e depois a maquilhagem, deu-me um beijo nos lábios e disse: "que pena eu ser gay"). Que levei calças brancas e que me veio o período a meio do jantar. Que fui a casa mudar de calças. Que, infelizmente, não tive a presença de espírito de trocar os saltos altos (sete centímetros) por um calçado confortável e mais adequado às ruas da Bica e Bairro Alto. Que eram cinco da manhã e ainda andava eu a recusar quecas por sms.

A queda das audiências deixa-me doente.
Espero que isto passe amanhã.

segunda-feira, abril 03, 2006

Segunda-feira

Pode ser que isto passe, que não tarda nada me surja algo do vazio. Mas, agora, de roupão de banho a secar-me a pele, não me chega nada, nem ninguém. Nem ontem, e a insónia matou-me metade da madrugada e os melhores vêm sempre com as noites brancas. Se calhar, já tudo foi dito, já outros escreveram por mim.
Não começa bem a semana, ainda para mais, não consegui arrancar com o meu novo blogue a meias com o meu querido 33.333.