quarta-feira, maio 31, 2006

Post a três tempos* [Introdução - As borboletas]

* ou a forma mais matreira que encontrei para aumentar automaticamente a reles produtividade deste blogue enamorado, de 0,33 posts por dia, para 0,50; ou tenho muita coisa na minha cabeça e se não dividir para reinar, ai Jesus que não sei se expludo e se vocês aguentam com os estilhaços de três posts encavalitados num cérebro dormente; ou vocês estão sempre a queixar-se do tamanho dos "lençóis" de letras cinzentas king size, que entortam os olhos sob o fundo preto, e que não há pachorra para as pastilhadas que nunca mais acabam até porque pontos finais é coisa que não abunda por estas bandas (só conheço um que me diz isto, e diz-me isto apesar de dizer, também, entre um whiskey ou outro, que eu podia ser uma grande jornalista se estivesse para aí virada, é só um que me diz isto, mas vale por cem, este vale por cem, ou por mil, tantas quanto as visitas diárias do seu blogue de referência)

Tenho mesmo pena que não venham de África. Trazidas por um vento qualquer, baptizado pelos homens com um nome bonito (foram mesmo os homens que os baptizaram; as mulheres nunca tiveram voto na matéria; ainda hoje não têm voto na matéria, e eu sei bem do que falo, eu luto por esse direito). Daqueles ventos que sopram muito forte e que trazem às costas, à boleia, as areias rebeldes, que não quiseram ficar para sempre no deserto - grãos pequenos que são um nada, nem se vêem se não estiverem em matilha, mas que, ainda assim, têm coragem de sair da sua pequenez, saem debaixo das saias do Sahara apenas com a roupa que trazem no corpo e com todos os sonhos do mundo numa trouxa presa ao ombro; que, depois, no novo mundo, começam uma nova vida e, às vezes, a sede é tanta, é uma sede de mil anos, e juntam-se às águas dos ribeiros, que, sem querer, tingem de encarnado, da cor do sangue (e nisto, sempre que falo de deserto e de ventos, vejo o filme à minha frente: o paciente, quando ainda não o era e não tinha o corpo coberto de queimaduras, e quando ainda não tinha hipotecado um grande amor por ter o nome errado, conta-lhe uma história de ventos terríveis que os homens combatiam com espadas, uma história narrada por Heródoto. O pai da História contou histórias; era um excelente contador de histórias fantásticas que nunca me dei ao trabalho de ler; só sei que era um tonto como eu, que via coisas extraordinárias e belas onde apenas estava a realidade; e se calhar, se eu tivesse vivido naquela tempo, era a mãe de qualquer coisa hoje em dia).
Fiquei desolada. Ao ler o Destak, largado por algum cliente madrugador da taberna da Dona Beatriz. Que está afastada a possibilidade de as borboletas terem vindo de longe. Toda a gente fala delas com nojo, chamam-lhes traças, eu dormi com três no quarto, e estão duas aqui na cozinha, a dona Beatriz pulverizou-as com Dum Dum, e eu dou-lhes asilo, e pouco me importa que não tenham asas coloridas, têm uma vida tão curta e, se querem passar aqui os seus últimos dias, que passem, mas há um mundo lá fora, tento convencer as que dormem na casa-de-banho laranja que no quintal da vizinha alentejana há uma nespereira tão carregada que até os ramos se queixam. E encaminho-as para a liberdade, mas elas teimam em voltar pela nesga da janela que não fecho, e não fecho de propósito para elas voltarem se quiser.
E depois chegou-me esta. Diferente e albina. Dormia no pano da loiça e não no tecto, no pano que cobre a loiça que o senhor 50.000 lavou enquanto eu escrevia notícias, a 500 metros de distância do asilo de borboletas nocturnas de Santa Marta. Pedi licença para a fotografar. A Leica torceu o nariz. Pouca luz. Depois despejei-a com cuidado. Precisava do pano. E da loiça lavada. Hoje foi a primeira ceia. Salsichas com ovos estrelados e arroz basmati. Hoje estou um pouco triste, que coisa esta de quem me deu vida ter uma pedra de granito fria no lugar do coração, mas isso fica para o segundo acto deste post (que, desconfio, já não será escrito esta madrugada, apesar do senhor meu "groom to be" estar aqui mesmo à minha frente, a rever um livro de uma senhora boa em vias de canonização, que tem que estar pronto, sem gralhas e vírgulas supérfluas, até ao final do dia de amanhã).


Ela tem pouco tempo. Praticamente já não voa, temo que sim, que é mesmo assim. Ele tirou os olhos das páginas. E alcançou a máquina fotográfica que não tinha conseguido captar a borboleta em cima do pano da loiça por falta de luz (e de jeito, admito que também tenha sido isso). E eu pensei que queria registar o momento em que eu estragava o primeiro ovo no azeite que borbulhava em cima do bico do fogão. Não. Ela decidiu morrer nas minhas costas, as costas que há tão pouco tempo ninguém abraçava e que não eram o poiso de nenhum ser alado.
Podem não ter vindo de África, nem de nenhum sítio distante (podem até ter estado sempre por cá, quietinhas na despensa ou nos armários da cozinha). Podem ter-me estragado o fim-de-semana nas praias da Comporta e feito com que o quilómetro mágico 22.222 do Idea, às 17h49, da tarde do dia 28 de Maio, fosse memorável e extraordinário, de uma forma insectívora que nunca me teria passado pela cabeça. Mas podem voltar sempre a esta casa. Apesar de não terem asas coloridas, são borboletas.

segunda-feira, maio 29, 2006

Os noivos

E se eu vos disser que me vou casar? É loucura? Totalmente descabido? Serei deserdada? E tu, irmão grande, vais encaminhar-me para o divã do doutor Morais?
29 de Abril de 2007, no jardim da Estrela. Quem quiser que apareça.

sexta-feira, maio 26, 2006

Eutanásia

Como se mata um blog?
Devia ter-lhe dado a carta de alforria quando ele me chegou à visita 50.000, eu tinha prometido a mim própria que seria assim (e hoje, na Basílica dos Mártires - e por causa dele eu sei que a igreja da rua Garrett não é uma igreja, mas sim uma Basílica -, eu garanti ao meu santo querido que a promessa que fiz é mesmo a sério, que não vacilo, que corto mesmo o cabelo com o Victorinox do João e o deposito aos seus pés, deixo-o por cima das sandálias prateadas como paga da graça concedida).
Está um post em draft datado de 25 do 4 (perdoem, mas este blogue não consegue escrever a data por extenso, é outra kryptonite) que devia ter acabado com este blogue. Em grande estilo, quando tinha 250 visitas por dia e cartas de admiradores para o endereço empantanas@gmail.com. Eu teria dado uma bonita viúva do (T)ralha. Uma triste viuvinha como na canção que a minha avó me cantava agarrada às panelas de ferro.
Parei de escrever 1,3 posts por dia. Agora sai um a ferros, de três em três dias. E semeio amontoados delicodoces de palavras nesta terra escura, que já não é tão fértil como antes (reclama pousio). Postas que não vendem tanto como a dor que me fez andar no fio da navalha durante um ano e cinco meses.
Eu venho do marketing e da publicidade, caros. Eu até teria jeito para vender a banha da cobra, foi pena nunca ter tentado, como tantas outras coisas que eu vou ter sempre pena de não ter ousado arriscar, para mais tarde petiscar. É uma pena eu deixar este blogue assim, ao abandono.
Hoje, fui à Charneca. A Charneca não são só as Galinheiras e a Musgueira e a Alta de Lisboa. Eu não sabia. Há quintas senhoriais ao abandono. E há um pequeno cemitério ao lado da Igreja, com campas seculares largadas à sua sorte e à única companhia de ervas daninhas.
Há gente feia na Charneca, conforme as minhas piores premonições. Mas há amoras no chão de um enorme jardim que ninguém frequenta. E eu espreitei o pequeno cemitério por um portão de ferro, fechado a sete chaves - só abre uma vez por ano, para cortar o mato, e diz o padre, que tem sotaque francófono,que duas pessoas vão lá depositar flores de plástico (ele não disse que eram de plástico, eu é que vi) -, e vi o (T)ralha.
Francamente, não sei o que fazer. Não tenho coragem para o matar. Eu, que sempre defendi a eutanásia.

quinta-feira, maio 25, 2006

Mais bonita do que parece

Ele sempre foi um excelente contador de histórias e eu não as sei contar, assim de improviso, não me saem da boca como me saltam aos pulos das pontas dos dedos e nunca poderia ser stand up comediant, mas tinha material para três encarnações de argumentista ou comediante, que a minha vida é tão trágica, de fazer chorar as pedras do vidraço da calçada esburacada, como de fazer xixi à gargalhada nas cuecas e, se calhar, meu querido amigo (ele sabe quem), também não é tão bonita ou tão fascinante como eu a pinto, mas eu prefiro acreditar que sim, que é, e deixa-me, por favor, contrariar-te, porque quem quer que seja que encontra lagartas de papilio machaon onde acaba o país, e as traz consigo no comboio, e as guarda numa caixa transparente, no quarto, à cabeceira, à espera que, uma manhã, elas acordem vestidas com asas coloridas, tem uma existência diferente da dos outros, tem uma existência mais bonita que a dos outros, apesar de, como toda a maralha indistinta, esse alguém também se levanta de madrugada, e não tem um emprego cinco estrelas, e luta por dias melhores que tardam em chegar, como tantos iguais a nós.
E quando a Carolina me começar a pedir histórias de fadas para adormecer, o que é que eu vou fazer? Se calhar, escrevo-as durante o dia e, assim, apenas tenho que lhas ler à noite, e eu sei fazer bem vozes de desenho animado, sim, crio rotinas, a partir de Setembro, mudo as rotinas, vou ter que passar a funcionar de manhã, entregar a menina dos cabelos dourados à quinta de Santa Teresinha antes das nove da manhã, e sair às seis em ponto, passo a ter horário, a ter vida, vou poder dar banho à minha filha, e o jantar também (cúmulo dos cúmulos da felicidade: fazer o jantar, com as batatas que arranjei coragem para comprar no senhor Joaquim), e de qualquer forma nunca me avaliam além dos 90 por cento, nada se perde por cometer suicídio premeditado à minha carreira, e no meio do meu horário de funcionária pública, se calhar, à hora do almoço, escrevo contos de princesas de três mil caracteres para a metade loira de mim - a Magui, quando trabalhava na Matinha, horas demais, fazia-me desenhos e pintava-me caixinhas de madeira de produtos dietéticos que comercializava para o celeiro com Snooppys, e lá na Martinha, descobri-a ontem, dentro de outra caixa, está uma que tem o Beagle do Schulz em cima da casota e na outra face do cubo de balsa um enorme coração “da Mamã para a Diana”. E a grande dúvida, neste momento, mais do que se me vou conseguir levantar os ossos do colchão às sete e meia da manhã, é se eu conseguirei escrever coisas bonitas e mágicas para a minha filha, neste mesmo teclado onde me fartei de sangrar.
Mas é uma espécie de alívio de não saber vender a banha da cobra como ele, de partilhar consigo apenas as mesmas feições, as mesmas pernas e joelhos, o mesmo nome e, sim, a dor de ter tido o mundo todo na mão, não ter tido a coragem, bastava um bocadinho de coragem, para que ele fosse nosso. E o condão de transformar em magia a rotina das 24 horas que passam pelos ponteiros em silêncio. Basta.
Contou-me histórias magníficas. Do dia em que o Paulo nasceu e do sonho que teve (e eu já não me lembro, mas sei que ele se chama Luciano graças a esse sonho). De magos, feiticeiros e poções mágicas feitas com raízes de mandrágora. De um Natal no meio dos loucos, no Hospital Militar, onde esteve internado com ataques de asma que o livraram de ir bater com os costados ao Ultramar. A história da praga dos escaravelhos egípcios no Robalo. Da génese do mundo, à roda de uma fogueira no jardim empedrado da EUA, que improvisou com uns galhos e uma garrafa de álcool etílico. Explicou-me o conceito de alma-grupo. Que todas as coisas do mundo têm uma alma-grupo. Que, por isso, sempre que se arranca uma rosa da roseira, se deve pedir licença à alma-grupo das rosas, explicando que aquela flor vai fazer alguém feliz; que, quando se tem que partir para a “solução final”, exterminando com Bio Kill um formigueiro teimoso de Santa Marta, se deve pedir perdão à mesma entidade superior e colectiva que representa as formigas no Conselho do Universo.
Uma noite, no meio de cigarros de mentol e balões de Baileys, como só ele conseguia fazer, disse-me que os Deuses castigaram o Embondeiro, porque aquela árvore os afrontou. Era tão bonita e tão grande que enfiou na cabeça que iria chegar aos céus e tornar-se divina. E não houve contemplações (e duvido que os Deuses se tenham desculpado à alma-grupo dos Embondeiros pelo que fizeram): irados, castigaram a rainha das árvores, e viraram-na para todo o sempre de pernas para o ar – ergueram-lhe as raízes para os céus, e esconderam a copa frondosa debaixo da terra.
E depois dessa história, veio outra, ficava acordada até às tantas a ouvi-lo, a das almas-gémeas. E havia sempre uma moral nas histórias do Zé. E castigos dos Deuses e feitiços (e havia noites em que púnhamos espadas no cinto e íamos passear para a arriba fóssil como cavaleiros medievais). Que os Deuses nos cortaram ao meio, já não sei o que fizemos, mas deve ter sido qualquer coisa imperdoável, cortaram-nos ao meio, e como num jogo de cartas, batoteiros dos Deuses, baralharam tudo e voltaram a dar, espalharam as nossas metades por aí, algures, e andamos nisto, incompletos, e às vezes a peça do puzzle quase encaixa, mas só à força, e depois volta tudo à estaca zero, porque quando é a metade amputada de nós é como um íman, não é preciso martelo; temos um carro e uma casa, mas falta-nos um braço, um pulmão, e esta é outra vez para ti, mais uma vez para ti, e para mim, também, porque nós, os dois podemos ter uma vida menos bonita do que parece, mas estamos completos.

terça-feira, maio 23, 2006

Com coragem para comprar batatas

Passaram vinte e dois dias. Ele é bom na contabilidade dos dias e eu espanto-me. Porque traz a roupa pingona por passar e porque tem apenas três pares de calças, deve ser coisa do ofício da caça à gralha, o que parece às vezes não é, ou se calhar, é outro que está preso à realidade, como eu, pode ser isso, deve ser isso, mas eu é que costumava ser ultra-picuinhas, de me lembrar das insignificâncias que o tempo leva para o arquivo morto muito rapidamente, e ele diz que aceita casar comigo, algures no Jardim da Estrela, sabe-se lá quando, algures entre amanhã e os próximos sete anos, e eu abro a boca de espanto, não por ele ter aceite, nem ponho em causa o acto meio tresloucado de o ter pedido em casamento, apenas o 22 me surpreende - o número em que decidi nascer; o número onde decidi viver até há muito, muito pouco tempo -, me faz franzir a sobrancelha e enfiar a unha mal pintada de cor "uva", do polegar direito, entre as duas mandíbulas alinhadas pela titânio.
22. Não é possível.
E eu estou no primeiro casamento do meu grupo de amigas, numa quintarola que tem uma vista de perder de vista (assim mesmo, com redundância) e conhecemo-nos há quase dez anos, é pouco tempo para uma amizade e, no entanto, é tanto tempo, é o mesmo que eu já dei à entidade patronal que me paga o salário que não chega ao dia 22, e ele diz que passaram 22 dias e eu olho para o céu, e o São Pedro mandou a chuva para abençoar a boda, e pergunto à chuva miúda que me encaracola o cabelo: andam a mexer no tempo, não é? Não são 22 dias, não podem ser 22 dias.
E o casamento acaba - o inominável que tem um blogue de referência em tons de laranja com duas meninas da concorrência directa apoderou-se, há uns dois meses, de um desabafo meu no seu blogue, andava meia triste com esta coisa dos casórios, e todas nós já temos rugas, não sou só eu, eu até sou, por dois ou três meses, a mais nova apesar de ser a que já tem a filha de dois anos e meio, e ele também é mais velho seis meses mas, ainda assim, eu pareço uma trintona que anda a desviar meninos acabados de completar a maioridade -, e eu só não me perco na serra de Sintra porque o Telescópio viveu ali a uns metros numa casinha altaneira, e vou a correr para Lisboa, para a porta número 56 que encontrei com a ajuda preciosa da madrinha Thê, e já estamos deitados, e já só dizemos tolices desconexadas que só se ousam proferir quando a madrugada vai alta, e digo-lhe, e esta é a declaração de amor mais sincera que algum dia fiz: contigo ao meu lado, estou com coragem para comprar batatas pela primeira vez na vida. Estou com coragem, com ele aqui à frente, quase a acabar a segunda revisão do livro que tem cerca de 140 páginas às 3 e 12 da manhã, de fazer a primeira sopa para a minha filha e, no entanto, só passaram (agora) 23 dias.

[Não se pode guardar muito tempo os posts na cabeça porque eles cansam-se, vão dormir e não acordam mais; foi o caso. Este post não era assim, na segunda-feira à tarde]

segunda-feira, maio 22, 2006

Tenho um post na cabeça

... mas o meu chefe não me dá nem cinco minutos para eu ir fazer xixi, quanto mais o tempinho suficiente para estender um lençol de caracteres ao sol que, subitamente, se instalou neste layout escuro.

Fica para a noite, quem quiser que aguente mais um bocadinho, e a quem interessar (mas isto interessa a alguém?) continuo limpa, sem consumir estatísticas, terapia de grupo recuso-me, mas estou cheia de força de vontade e sem fazer ideia de quantos leitores perdi ou ganhei: o amigo doutor de Cambridge acaba de dizer pelo Talk que esteve a ler aqui o quintalinho e eu fiquei triste por não ter sabido de antemão (levará hífen? eu acho que não), via software pidesco, mas larguei mesmo a droga - como é que era a notícia de hoje? aumentam as dependências patológicas que nada têm a ver com drogas ou álcool? Chats? Playstation? Cyber-sexo? Pleaseeee: Blogger e Statcounter são as mais poderosas drogas da rede -, estou no bom caminho, em franca recuperação, mas fiquei à rasca, tenho a certeza que corei de vergonha, tremi com a perna, enfiei o pai-de-todos na boca, perco qualidades, estou a perder qualidades, e tenho tudo e mais alguma coisa na mala da marca dos sapatos que o Papa gosta, mas não tenho um espelhinho para verificar o enrubescimento do par de bochechas que a genética me deu - nem lenços de papel, e ando a pensar nisso há muito tempo, que uma mãe tem sempre que ter lenços na mala -, mas fica para mais tarde, o post na cabeça (já não escrevo posts na cabeça como antigamente, e ainda bem, porque às vezes não reparava e travava em cima dos semáforos encarnados) vai nascer lá depois da meia noite, e vai ser um parto na mesa da cozinha, com a primeira caneca de café de saco saído da fabulosa máquina Electric Co, que custou 10 euros, do meu lado direito, e o revisor há-de estar à minha frente, a folhear pela segunda vez as últimas cem páginas de um livro que há-de estar nos tops da Fnac dentro de algumas semanas - mas a maior revisão, a minha vida inteira (ele disse que revia a minha vida inteira) é uma empreitada que só ouso submeter à ponta da caneta encarnada com que ele assinala gralhas e outras más-formações congénitas dos textos, quando acabar a extensa lista de livros, que, brevemente - talvez tão rapidamente como o livro desta noite atingir o Top da Fnac -, hão-de estar à cabeceira de Santa Marta, do lado direito da cama da primeira assoalhada à direita de quem entra.

quinta-feira, maio 18, 2006

Alguma coisa a declarar?

Fecho a porta ao dia – agora, os dias fecham-se apenas no trinco, não os quero fechados a sete chaves, numa caixa forte e, antigamente, eu fechava os dias, não por serem tesouros preciosos, mas por serem dias que não queria mais lembrar, dias insuportáveis de dor sem medida, trancava-os com combinações numéricas formadas apenas por números ímpares, e eram sempre capicuas: eu sempre gostei de simetrias, mal de família, e a culpa é da minha mãe, que cedo me pegou o bichinho pela caça às matrículas que se podem ler de trás para a frente e da frente para trás –, e somos o inverso e não o oposto, chega-me essa certeza quando estamos reflectidos no espelho de papier maché que comprei na amada Barcelona, e o dragão, igual ao que está estacionado no Parque Güell, e a deliciosa criatura colorida mostra-me umas costas muito brancas e muito magras, cruzadas por dois braços muito escuros e rechonchudos, eu espreito só de soslaio e vejo um cabelo loiro em desalinho (e há as sardas, eu queria cartografar-lhe as sardas, mas elas não aparecem no reflexo invertido do espelho) e o meu, escuro e longo; encosto a porta ao dia e só sei que cada curva do meu corpo foi esculpida para ele encaixar, ao milímetro, e cada depressão do dele foi desenhada a partir do meu molde; somos o inverso e não oposto, e, às vezes, já dormitei um pouco antes de vir a pergunta sagrada – já não é uma, nem duas, que dormito a pensar se vai ser amanhã que a orquídea branca vai florir; a rosa, a que amuou durante três anos ainda vai demorar; a última vez que a vi estava louca e grávida e não tarda, duas semanas, talvez, vou vê-la de novo, fui mais teimosa, não desisti, aquela orquídea salvou-me uma vez, quando eu estava louca e grávida –, eu sabia que ia conseguir dormir de novo, como dantes, com muitos sonhos e pesadelos também, eu só não sabia que era preciso que ele chegasse e tomasse a metade direita da minha cama, e digo “o nosso quarto”, e arranjo-lhe espaço no armário, e peço-lhe que traga roupa e, não tarda, que empilhe livros à cabeceira da cama que eu queria trocar, porque a tomo por amaldiçoada, e ele não deixa – “é a nossa cama” –, e fiz as pazes com os pronomes possessivos, e não tenho mais medo do número dois, pondero até trocar de operador de telemóvel, e a história das vírgulas antes dos “e” faz todo o sentido, é para os leitores conseguirem respirar, porque, reparem, salvo erro, ainda não fiz um único ponto final, e será que o revisor ficará com urticária?
Pelo sim, pelo não, deixa-me fazer uma pausa forçada, com direito a parágrafo e tudo. Mas antes, lembra-te sempre disso, e deixa-te de tretas e escreve como sempre escreveste: ele gostava de ti pelo que tu escrevias, era só pelo que escrevias, sabia lá quem tu eras – eras a jornalista do diário de referência “montes de esquizofrénica” –, ele lia-te a horas impróprias, usava o Kinja, depois o Bloglines, nunca acedia directamente pelo URL “empantanas.blogspot.com”; outras vezes acedia através de um link no desktop e tu caçava-lo sempre, a que horas fosse, e sabias que o seu “user name”, daquele computador, ISP Telepac, era “Zé”. E se lhe desse urticária – as vírgulas todas encavalitadas e a escassez de pontos –, não lia todas as madrugadas, pensa bem nisso. Devorava tudo mas nunca comentava e tu estranhavas, e já o André diz que o único comentário que plantou, na madrugada de dia 21 de Março – um mero ponto de exclamação –, foi “o ponto de exclamação mais eficaz da história”. E ele admite, deitado na metade direita da cama que salvou de um destino incerto no armazém dos Emmaüs (segundos tremas neste texto; feito notável), que tu não és igual à que escreve; e podes parar de escrever, é um amor literário, sim, entre a que tem a mania que é escritora e o revisor tipográfico, mas ele gosta de ti com todas as rugas no meio da testa, covinhas na bochecha direita, mares de estrias na barriga e nas costas, junto à tatuagem; não é só pelo que escreves, é uma história limpa e das mais bonitas que já se viu – é o amor no terceiro milénio, na era de Aquário, como apregoa Santo André aos engatados.
Mas todas as noites, era isso que eu queria dizer antes de me perder, fecho os dias e, antes de colar as pestanas de cima às de baixo, já os Pestanas estão em pezinhos de lã no hall – é a primeira porta à direita, segredou-lhes ele, foi isso de certeza –, a consciência paira algures num limbo, mas eu lembro-me: “tens alguma coisa a declarar?”
“Ainda bem que chegaste”, responde ele.

terça-feira, maio 16, 2006

636

É um bom número, para começar um novo ciclo (e para aprender a enrolar decentemente cigarros à mão).
É o primeiro post escrito na cozinha, e aqui (esta vírgula, antes do "e" só acontece por causa dele, porque ele gosta de as semear nestas situações), mesmo à minha frente, com caneta e tee-shirt encarnada, a segunda metade loira de mim revê um livro que, brevemente, vai estar à venda nas livrarias (e com o original na mão, páginas marcadas com uma mola da roupa de plástico, também da cor do fogo, ri de vez em quando com as traduções selvagens de quem passou a prosa - página 401, vai na página 401 - de inglês para português; o prontuário ortográfico guardado na mala que repousa no chão xadrês, a mala oferecida por uma irmã de cabelos da cor do perigo - hoje, o encarnado persegue-nos, a mim, a ele e ao post -, e a mala fica muito bem no chão da cozinha de Santa Marta, junto a dois pares de pés descalços, fica bem porque é de uma das cores fétiche desta casa, o laranja - sofá, parede e azulejos desta cor, injustamente, conotada com um partido político, e apetecia-me aqui escrever uma coisa, mas não escrevo, demasiada informação magoa os olhos e, não, não era a confessar que já tinha votado nesse partido, não é que me orgulhe, mas, de facto, já votei e não faço segredo disso).
Mas estes são dias da cor dos Jacarandás que timidamente soltam um tom algures entre o azul, lilás e anil lá no alto (hoje, discussão acesa com o editor de fecho, o camarada que me ensinou que colegas são as putas, foi uma amena troca de impresões quanto à mania de eu teimar em escrever o nome das árvores em caixa alta; eu insisto que se escreve sempre com maiúscula e ele, a voz do grande jornalismo de investigação, diz-me que não. Explico-lhe: os Jacarandás merecem, naturalmente, são árvores maiores, mas nem é por aí, vendo bem, pensando um pouco, merecem todas, vêm-me à cabeça os Pinheiros, Araucárias, Magnólias, Plátanos, Choupos, Belas Sombras e os mal-amados Eucaliptos, todos eles, e as flores também, merecem maiúscula, e maiúscula, para ser um vocábulo coerente também devia levar caixa alta (há duas palavras, começadas pela mesma letra, a minha letra, que eu acho muito coerentes: "delicado/a" é uma palavra que devia vir embrulhada em bolinhas de plástico, e sempre que leio "delicioso/a" dá-me vontade de trincar a folha). Não levo a minha avante, na edição de amanhã, terça-feira, Jacarandá sai com minúscula, não convenci, nunca convenço, mas reitero: as árvores têm mais direito á caixa alta do que muito Manéis, Antónios, Marias e Vanessas que andam por aí a consumir desalmadamente e sem grande utilidade, o oxigénio que as minhas amigas que morrem de pé (a excepção é quando a câmara as manda serrar sem explicação - continuo à espera da replantação dos Plátanos da Viriato, os Plátanos que me matam de rinite alérgica durante esta época do ano, mas que, ainda assim, por uma questão de justiça, têm direito a maiúscula) produzem e oferecem, de mão beijada, todos os dias, por este mundo fora.
Dois dias consecutivos nisto: ele a rever os livros e eu a dar uma de fada-do-lar - estendi e tirei a roupa das cordas, lavei a loiça, passei a ferro. Agora, porque já estou à rasca das costas e da ciática, sentei-me aqui, à mesa da cozinha, ao meu lado estão os mortos da Teresa, e ainda me belisco, e olho pelo canto do olho, tento gravar todos os instantes no meu chip carregadíssimo, e ele é da mesma matéria: guarda a minha anca baiana empinada no estendal, as minhas costas cobertas de cabelo espetado, pela manhã, a preparem o biberon de leitinho cor-de-rosa da Carolina.
E agora perdoem. Mas os Amores-Perfeitos, as Heras, as Sardinheiras, Jasmineiros, Orquídeas, as Buganvílias, os Antúrios, os Bambús e a Hortelã Pimenta (hoje estou mãos largas, a dar maiúsculas a tudo o que se mexa) precisam de ser regados e, em Santa Marta começa uma nova era com o post 636.

domingo, maio 14, 2006

Espaços de incompreensível

Espaços de incompreensível *.
Este blogue está cheio deles, buracos negros, poços de ar, soluços como aqueles que eu dava no ventre da minha mãe, quando era anfíbia, quando a vida era tão simples e tranquila quanto nadar num mar quente e doce, sem vagas, e só às vezes acordava em sobressalto, de um sonho recorrente: o playback do dia em que escolhi nascer dentro daquela mãe loira e dura, era um sonho de um mergulho a pique, de cabeça, era uma espécie de dor – toda a vida começa com dor, é um aviso para o devir –, e eu despertava com muita sede e, nesses amanheceres, lembro-me bem, tinha a certeza de que seria sempre uma sobrevivente, e fazia-se um redemoinho nas águas paradas e eu tropeçava no lago onde vivi mais protegida, e engolia água, pela boca e pelo nariz, e vinham os soluços, ao som de um tum-tum do tambor do coração da Magui (e este blogue é como um queijo suíço, também, cheio de buracos, a avó Zá dizia-me que era assim porque a vaca estava com soluços quando lhe tinham tirado o leite; e alinhava em todas as minhas explicações estapafúrdias e primitivas do mundo e do Universo; fazia-me crer que era especial, e claro que a lua estava pendurada nos céus por uns cordelinhos).
E vem aí mais um. Um que só fará sentido para mim, que baralha e dá e torna a dar três mil quinhentos e cinquenta e três assuntos num só naco de prosa mal cozido. Nem percebo como cá continuam a vir – arruíno a média de 1,3 posts diários, devia publicar o post em “draft” escrito na madrugada de 25 do 4, cortar o cordão, dar a tão desejada carta de alforria a este blogue, conceder-lhe uma morte bonita, pelo fogo, talvez, imagino uma chama anilada e um fumo amarelado e hinos celestiais, cantados por meninas de dois anos e cinco meses. E abri há pouco o Statcounter, a primeira vez desde segunda-feira, e vejo, sem me importar, sem ficar triste ou contente, que continuam a cá vir todos os dias. Duas centenas e meia de pessoas. Duas centenas e meia de gente é assustador, mesmo para mim, que não tenho pânico a multidões, imagino-as todas aqui, no primeiro piso de um andar “open-space” da Rua Viriato, um quarto de milhar enchia isto, e a máquina do café e o garrafão de água “Selda” da Nestlé não daria vazão à sede de 250 criaturas (e, certamente, há muita gente, como o João, que não me conhece de lado nenhum, apenas daqui, e eu não sou esta, metam na cabeça que eu não sou esta. Esta é o melhor e, também, o pior da Diana]
Nem percebo o que lêem nas entrelinhas. O João diz-me que o escritor que tire os cavalinhos da chuva, que é a falácia não sei do quê – a memória está cada vez pior, conto, cada vez mais, com as hereditárias doenças degenerativas do sistema nervoso central, esqueço-me, esqueço-me, tenho que parar, tenho que deleitar os meus sete sentidos com montanhas de hortenses azuis, plantar-me ao sol, tenho que destilar os meus medos e distúrbios numa atmosfera sufocante com 100 por cento de humidade relativa, passar os dias a contar sardas e sinais, para ver se me recomponho, se volto à condição de extraordinário reservatório de conhecimentos inúteis –, que é um erro, uma perda de tempo, tentar ler condicionado pela intenção do autor (é a falácia da “intenção, diz-me ele da janelinha do Talk, na árdua tarefa de rever 180 páginas de enfiada). O autor, portanto, que se cure da síndrome centro do mundo. Cada um lê o que quer, cada um vê o que quer, tudo bem, ainda bem que é assim, teriam pesadelos se percebessem tudo, é como diz um leitor atento, muitas pontas soltas, grande poder de síntese, ou grande desassossego, diria eu, seria essa a minha interpretação dos textos em arquivo, a ganharem mofo.
Fiz o impensável. A vida está dura, apercebo-me, e os loucos – tenho um L na testa – perseguem-me. Bem, sou como pão para malucos, e a frase não é minha, tenho pena, não sou assim tão genial, a frase é mesmo de um louco com quem privei há uma hora atrás, antes de bater à “máquina” (ao computador, mas não fica tão bem) uma carta de uma leitora indignada com as quotas de produção de leite impostas pela União Europeia (os fins-de-semana de “piquete” são do melhor…). Sento-me nas mesas deprimentes do Pingo Doce da Tomás Ribeiro - e isso é o impensável: em vez de ir lanchar ao Storia D’el Caffé, não, fui ao supermercado comprar uma sanduíche e um pacote de leite com chocolate Pingo Doce e sentei-me na esplanada improvisada, junto ao vasilhame, com a provedora da Jerónimo Martins impressa, em tamanho real, ao meu lado, e o brasileiro da Selecção, como se chama?, eu vivo num mundo à parte, enfim, aquele que tem bigode e vende relógios do Euro2004 no canal 18 da TV Cabo, a apelar à solidariedade, e nada de extraordinário acontece. Isso é que era bom. Não um, nem dois, mas sim três loucos merendam no refeitório da Jerónimo Martins (e não estou a contar comigo; ainda bem que chegaste, João, ainda bem que chegaste à 50.000ª visita – como é que isto se diz quinquagésima milésima visita? – porque eu estava por um fio, porque os bonsais da sala morreram por mim, e o jasmim de Madagáscar também, foram saco de pancada de tudo de mal que tem acontecido, aguentaram o impacto, protegeram-me e ainda bem que chegaste porque isto acontece todos os dias, mais do que as pessoas acham, passa-se a fronteira com a mesma facilidade que se paga 60 cêntimos por uma bica sem se refilar e sem se dar conta que são 120 paus e que se podia comprar três pacotes de leite com chocolate no Pingo Doce e ainda receber três cêntimos de troco), um que chega já estou eu a acabar o pacotinho de leite com chocolate, traz um saco de pequenas baguettes, chamam-se brasileiros e sabem a plástico, e diz-me: vou dar pão aos malucos. E sim, confirma-se: abre o saco de plástico e distribui pães entre o homem de pouco mais de 40 anos que fala sozinho – desatenta, assumi que estava a falar ao telefone, através de um auricular bluetooth –, o velhinho de casaco azul-escuro pintalgado de caspa (devíamos poder adoptar palavras de outras línguas; caspa é feio e “dandruff” é delicioso) e ele próprio. E eu retirei-me, devagarinho, sem fazer barulho, sem os incomodar.
O piquete chega ao fim, passa das oito da noite, e o fim-de-semana resume-se à carta da leitora que acha que o leite em excesso devia ir para os países onde a fome grassa, e já dei de comer aos leitores, também, tenho saudades, imensas, da metade loira de mim, que passou o fim-de-semana fora de casa, sem não antes se despedir, no sábado de manhã, com um trágico e teatral: “Ohhhh nãooo, mamã…. Ohhhh Deussssss…”. É especial esta minha filha que também soluçava dentro da minha barriga, que canta missas de Mozart e Sérgio Godinho no percurso automóvel Santa Marta- Estados Unidos da América.

* espaços de incompreensível é uma expressão do João. Do meu João.

quinta-feira, maio 11, 2006

Nem tudo são rosas

Nem tudo são rosas, senhores. E isto acontece todos os dias.

Acaso alguém se lembra de eu ter escrito isto?
Foi no Verão, no final do Verão, parece-me, o louco da Viriato estava em paradeiro incerto, certamente estava morto, pensámos todos nós, havia ainda quem o recordasse, quem sentisse a sua falta. Alguns, como eu, ou o Agostinho, do Lacinho, e o segurança da Organização Internacional de Trabalho, temíamos já pela nossa segurança, ligávamos para o centro de adopção de loucos e diziam-nos de lá que havia uma enorme lista de espera – é que os loucos estão mais perto de Deus, mais ainda do que as crianças, e têm o “cofre aberto”, são filtros da maldade; é sempre bom ter um louco por perto e um espanta-espíritos à janela. E nesse texto decidi lembrar todos os loucos que passaram pela minha vida e é, na minha opinião, um dos melhores desabafos deste blogue escuro, daqueles que saem de rajada, daqueles que reli em voz alta.

E eu releio sempre em voz alta, quando o assunto é sério, e a voz que traduz a mímica que faz dançar a ponta dos meus dedos nos dois teclados da minha vida – um branco e outro preto –, a voz que oiço do lado esquerdo da testa, é muito diferente da minha voz falada, e esta são muitas, também: há a voz dengosa do telefone, que derrete as "fontes" e as faz falar de mais, essa é a voz quente que lhes põe na boca tudo aquilo que quero e que preciso de escrever em papel de péssima qualidade, que sai da gráfica Mirandela para as bancas, todas as manhãs – imagino sempre moças rosadas, de cabelos secos pelo sol, descalças, com cantarinhas na mão, junto a fontes de pedra, com água fresca, quando chamo de “fontes” às minhas “gargantas fundas”; são as “fontes” e “tenho um serviço”. O Leonardo entrou nisto, nas notícias, dois anos antes de mim e chegava a casa, ao quarto onde apenas entrava quem tivesse carteira profissional de equilibrismo, que lhe conferisse aptidões para saltar entre pilhas de jornais e revistas e sacos do C&A cheios de camisas de viscose brilhantes (isto foi no tempo em que eu e o Leonardo íamos juntos ao cabeleireiro no Carrefour de Telheiras e pintávamos as melenas do mesmo encarnado fogo, e as meninas do salão derretiam-se e tomavam-nos como um casal de namorados excêntricos), e dizia que tinha feito “dois serviços” e eu ficava a pensar na expressão, pensei nela quase tanto como no “céu-da-boca” (quando era pequena, muito pequena, imaginava estrelas no palato, escondidas pelo marfim dos meus dentes encavalitados, eu já vos tinha contado que comecei a brincar com as palavras desde muito cedo, ou não?), e “fazer um serviço” soa a máfia, a assassinato por encomenda, cheira-me a Beretta, mas todos os dias faço “serviços” e não tenho Padrinho, nem ninguém me chama por “Mama Raglia”, e querem maior sinal da minha insignificância? Nem sequer apareço no livro do Carrilho...
Depois, há a voz cantada, que andou perto dos anjos antes de eu enferrujar as cordas vocais com o fumo dos cigarros que me fazem sobreviver a algumas noites difíceis e intermináveis; há a voz de cama, que é doce, há a voz de mãe, que é de cartoon do canal Panda, há a voz embargada, dos dias tristes, há a voz gaga quando alguém me tira o tapete por debaixo dos saltos altos; há a voz que fica registada nas fitas magnéticas dos gravadores quando faço entrevistas, que me irrita porque é sibilante.
E hoje, de noite, a voz que leu o anoit’ser. Não a conhecia, esta voz não estava identificada. Não era minha, era a dele, só a pele de galinha era minha e as mãos a esconderem os olhos, cegos, depois de terminar o suspiro da última frase.

Isto acontece todos os dias. Mesmo aqui ao lado.

Até o Leonardo comentou esse post, e o Leonardo lê tudo mas é parco em comentários – e quando a Thê montar o (T)ralha em livro (podes pedir ao 50.000 para o rever; ou peço eu), eu quero dá-lo à minha mãe; a Magui nunca me leu, provavelmente vai detestar: ela telefonou-me a dizer que ele estava internado e eu tremi, vinquei mais um sulco na ruga da testa, a meio das sobrancelhas, porque ele me tinha telefonado e chorado muito, estava desesperado, e eu disse-lhe que ia ter com ele logo que acabasse de desgravar a entrevista do Carmona e não fui, esqueci-me, e nem fazia diferença, claro que não fazia, e eu disse à Magui que carregamos um peso muito grande, todos, de honrarmos os nossos avós, de sermos tão notáveis quanto eles, e eu disse-lhe e o João, que estava ao meu lado - estava ao meu lado há 18 horas -, ouviu: “mamã, eu não vou ser ninguém”, e ela zangou-se, resmungou, mandou-me estar calada se só me saem disparates pela boca fora, argumentou que também não era ninguém e eu sei que ela ia desatinar com a forma como eu escrevo, só que isto acontece todos os dias, até a quem é do meu sangue.

quarta-feira, maio 10, 2006

Adorm'ser


[eu hoje vou adorm'ser assim]

Comenta lá esta se és homem, Goiaoia

terça-feira, maio 09, 2006

segunda-feira, maio 08, 2006

Madrinha

As rosinhas de Santa Teresinha, do Jardim da Estrela, vistas pelo da.

Metro

Tenho os músculos – todos eles, mesmo os que desconhecia, os que passados quase 28 anos, mal-educados, nunca se apresentaram –, em sentido, congelados, e o queixo ainda está arranhado de uma barba muito mal semeada.
Mas o queixo não se queixa, e os joelhos doem, mas aguentam estoicamente, e mesmo os músculos só vieram dizer que estavam vivos, que saíram de coma. E devo ser a pessoa mais bonita e bem vestida do átrio da estação de metropolitano de Entrecampos, há quatro dezenas de olhos por cima de mim e, se calhar, é do sorriso, se calhar, é do fluorescente do branco dos meus olhos [comprei uma nossa senhora de Fátima fluorescente na Servilusa da tua rua e não a devia ter oferecido, devia ter ficado na mala-de-cabeceira, mas o que eu queria mesmo era uma nossa senhora meteorológica, que ficasse com o manto roxo quando fosse fazer chuva e com ele em tons de rosa, quando o amor estivesse para nascer junto com o sol – e deixa-me olhar para os meus joelhos, que doem e rangem como se pedissem uma gota de óleo: estão rosados e a moinha nas rótulas avisa-me que o sol está a prazo, que é de pouca dura neste Maio de todas flores]
Triste. No meio de tantos sorrisos, consigo estar triste. Pelas flores. De Leica a tira-colo, mudo o itinerário só para passar em frente ao portão da casa cor-de-rosa dos meus sonhos. Na calçada, dezenas de papoilas que ninguém ousou pisar, erguiam-se, a coroar os amores desta Primavera. Não mais. Deixam a casa a cair aos pedaços, com o pedido de licenciamento pendurado numa janela de madeira que já não tem vidro ou tinta, mas cortam as papoilas e os jardins de Deus, plantados e cuidados apenas pela sua mão verde.
Não se deve escrever na carruagem do metro; agora são mais de cem olhos a espreitar o que eu faço e sorrio, e sorrio e procuro os óculos na mala que não largo há três anos, da marcado sapatos que o Papa adora, e os óculos decidiram aparecer hoje de manhã, depois de ausência prolongada, de meses de paradeiro desconhecido, aterraram na gaveta das cuecas, e já estou de óculos apoiados na cana do nariz que é torta como a do Zé Ralha, – mas ele partiu o nariz em criança e eu não, e a avó Zá espetou um espinho de rosa na vista direita e tinha uma pinta encarnada no olho e eu não andei às turras com as rosas, apenas depositei cartas de amor debaixo de uma singela rosa de santa Teresinha, que não tem espinhos, mas também tenho uma cicatriz igual à da minha avó –, e com óculos já não escrevo em cima da folha do caderno comprado pelo engenheiro das OPA’s meu patrão, e continuo a sorrir e paro, paro e espreito pelo canto dos olhos – dos olhos que já viste colados com ramelas pela manhã, e inchados de madrugada, e negros do acumulado de noites perdidas a chorar – e tento imaginar o que eles pensam de mim, leio-lhes o pensamentos e em quatro estações da linha amarela, não é preciso mais, aprendo que os transportes públicos são bons para a escrita, que este é um post sôfrego como os de antigamente, dos que têm o ritmo da boca dos meus dedos (e neste post, até os mindinhos trabalharam; os mindinhos são muito tímidos, geralmente não têm nada a dizer, fazem suas as palavras do pai-de-todos e, às vezes, do indicador, mas neste post, disseram de sua justiça).

domingo, maio 07, 2006

Longuíssima pausa no desencanto (um pouco louca)

Escutem com muita atenção, vejam se percebem isto que eu vou agora dizer: as noites já não são todas iguais, de pernas cruzadas no sofá laranja, a embalar um computador pequeno e branco da Apple no regaço, a destilar desamores, desencontros, histórias retorcidas, coincidências, a escravizar dez dedos sem dó ou piedade, não lhes permitindo, nem sequer aos mais pequenos - os mindinhos -, tirar cinco minutos para fumar um cigarro, comer uma bucha ou ir fazer um xixizinho, obrigando-os a trabalhar mesmo quando ardem em febre e alucinam (a Magui vê ratazanas por todo o lado a partir dos 39 graus).
Já não as avalio pela quantidade de semáforos verdes que consigo passar em excesso de velocidade do início ao fim da avenida da República, nem prevejo uma melhor ou pior noite pelo advento de ter à minha espera um lugar de estacionamento à porta de casa, reservado com carinho e com afecto pelo demónio em vias-de-ser-anjo do estacionamento (e hoje não tinha e não fiquei zangada, estranhei mas não fiquei zangada, está certo que o demónio em vias de santificação tenha ido fazer das suas para outra freguesia; no Coração de Jesus, freguesia do centro de Lisboa com meio milhar de eleitores, as noites já não se ganham pela sua intervenção como arrumador de carros).
Diferentes, mas as noites até têm sido iguais, há rotinas de prazer que se repetem: a campainha tocar breves minutos antes das doze badaladas e os pingos de cera de velas a chorarem pela cómoda abaixo, as velas que aguardavam há tantos anos como o número de dedos da mão que vos escreve (a direita, a esquerda segura um cigarro) por uma oportunidade para alumiarem um amor com probabilidade negativa - daqueles que eu gosto, daqueles que eu persegui, colocando armadilhas, escondidas em caixas de comentários, pela blogoesfera a dentro.
Agora as noites são os dias, e em Santa Marta eu reviro os bolsos das calças e das saias e os forros das carteiras e tiro de lá os pacotinhos de festa instantânea que andaram sempre comigo este tempo todo, prontos a ser preparados no shaker. Basta juntar água e levar ao microondas e já está: foguetes, confetis e bolinhas de sabão irisadas. Risadas, algodão doce e carrinhos de choque.
Esta vai ser uma noite muito grande, o sol não vai nascer daqui a três minutos, e eu vou ganhar raízes em frente ao Blogger, e só não vou fumar desalmadamente porque não comprei tabaco, e não comprei tabaco porque, neste momento, há um vício maior, um vício que afugentou as noites em que não conseguia dormir por causa do desencanto.
Ontem à noite, ou seja, ontem de dia, às primeiras horas do dia (os pássaros ainda não apanharam o jeito, nem vale a pena ameaçar com o "ponto", eles estão com o jet lag deste vórtice temporal), nem podia acreditar no que os meus olhos viam, abri-os muito e a boca também, em sinal de espanto: duas escovas de dentes namoravam no lavatório, à sombra do recipiente de cerâmica que guarda o sabonete líquido das mãos, e o sabonete líquido é laranja, como as paredes, e o WC Pato da sanita, que se queixa que tem pior emprego que o portageiro, também é laranja, e isto só pode dizer que eu sou uma fashion victim e que a Renova tem que passar a comercializar papel higiénico laranja - há um salmão alaranjado, mas não é a mesma coisa, não gosto de cores pastel, gosto de afirmações cromáticas e não incertezas pastéis.
Separaram as escovas, cada macaco em seu galho, uma em cada casa-de-banho, uma na Estrela, outra em Santa Marta, ambas a ressacar, a suspirar, mas no armário de casa-de-banho da cadeia sueca de mobiliário e decoração, está um blister com uma escova Colgate pronta a estrear e só se passou uma semana e eu devo ser um pouco louca, e ele só pode ser da mesma matéria que me enforma.
Continuo a escrever posts na cabeça, sobre a longuíssima pausa no desencanto que me chegou à 50.000ª visita deste blogue, mas destilar amor é uma alquimia muito mais complexa do que destilar dias negros. Não sai tão rápido, não sai tão bem, mas é só por enquanto, enquanto não me habituo. Hei-de conseguir, quero engarrafar licor de encantamento, directamente dos alambiques que fumegam com este amor perto do ponto de ebulição, passado o ponto de rebuçado.
E nisto olho para o maço de chaves e decido que tenho que ir ao serralheiro fazer uma cópia, uma cópia para quem diz que as escadas da Martinha têm o seu encanto decadente, uma cópia para quem, cego de amor, até diz que a porta de alumínio da entrada nem é das piores que já viu. E só posso mesmo ser um pouco louca.

sexta-feira, maio 05, 2006

Revê a minha vida toda

Revê a minha vida toda.
Suprime parágrafos inteiros se for preciso, elimina delírios que não acrescentam nada à história, semeia pontos finais que eu não tenho nenhuns em stock já não sei há quanto tempo, passa o cortador de vírgulas pelos campos floridos da minha história, põe-me os pontos nos ii, assinala a caneta encarnada, com pontos de exclamação, a mania inexplicável e analfabeta que tenho de escrever “trancinhas” com cedilha (e eu sei que gostas de reticências: na última página, na última frase, colado à última palavra, tens autorização da escritora para fazer uma orgia de três pontos colados uns aos outros e não vou queixar-me à editora da desvirtuação do original, agrada-me a ideia de a história ficar em suspenso, de não acabar nunca.)
Dorme com este livro à cabeceira, não o revejas com pressas, não aguarda publicação, não vai nunca descansar a lombada nos escaparates das livrarias, nem será autografado numa qualquer edição da Feira do Livro – revê bem, porque só há uma edição, de autor, e tem capa de couro, como tu gostas, centenas e centenas de folhas cosidas umas às outras com linha branca, foi impresso em papel de 75 gramas por metro quadrado numa tipografia velhinha e farrusca da Mouraria, foi um homem sábio de olhos azuis, cabelos crespos muito brancos, gengivas cor-de-rosa e bata cinzenta pintalgada de negro, quem montou as letras de chumbo, com amor, num tabuleiro, e depois as forçou a abraçarem-se às folhas num beijo quente, e fez isso porque eu o mandei, porque eu quero que este livro possa ser lido com os olhos, quando há luz das lâmpadas ou do sol, ou pelo tacto, com as cabeças dos dedos, quando a noite cai e os dias começam.

quinta-feira, maio 04, 2006

Montado num texto branco num dia de nevoeiro

33.333 says:
sabes, estou muito feliz
33.333 says:
a sério
33.333 says:
foi bom apanhar a tua história
33.333 says:
até porque eu sentia uma certa responsabilidade por não ser o tal que aparecia montado num texto branco num dia de novoeiro
33.333 says:
estou contente
33.333 says:
porque acho que precisavas de acordar
33.333 says:
acordar a sério
33.333 says:
e pelos visto isso aconteceu

[Este blogue, como eu já disse, tinha grandes expectativas em relação a dois leitores - o 33.333 e o 50.000. Ambos me chegaram por causa da Ana Sá Lopes]

quarta-feira, maio 03, 2006

Nossa senhora dos Posts

A todos os que não desistiram de ler a (T)ralha, nestes dias de balda

[mas são faltas justificadas: preenchi o requerimento da baixa, anexei a declaração, sob compromisso de honra, do simpático doutor do centro de saúde, como estive inapta para bloggar, e a caixa de previdência e abono de família dos bloggers caiu que nem um patinho e deferiu o pedido e vai-me pagar os dias a 300 por cento; é que eu não sou uma blogger qualquer, sou a “melhor escritora” – Ana, tu és a responsável por tudo isto, com essa da “melhor escritora”, tu nem imaginas como és responsável -, escrevi de sol a sol durante um ano e cinco meses, esqueci a matemática e a contabilidade aprendidas na faculdade (o professor, não me lembro do apelido, mas era peculiar como o meu, tinha um Alfa Romeo antigo descapotável e uma foto do bólide no seu gabinete, era menina dos seus olhos, e era um borracho e tinha um sorriso Pepsodent que o Miguel Ângelo imitava na perfeição e que era o antídoto para as minhas depressões constantes: “faz a cara do professor de OC [Orçamentação e Custeio], pedia eu, e ele fazia, e eu, imediatamente, ria a bandeiras despegadas estivesse triste ou não); estoirei em mais de dobro as 40 horas semanais previstas no meu contrato colectivo de trabalho com a blogoesfera, não gozei as férias retribuídas que estão consagradas na Constituição da República do Blogger, alimentei a tendinite nos feriados e fins-de-semana, e, por isso, como homenagem, apareceu-me um amor na caixa dos comentários, à visita 50.000 como eu pedi à nossa senhora dos posts, e andam para aí uns zunzuns na máquina do café (todos os zunzuns passam sempre pela máquina do café, mesmo aqui do meu lado esquerdo) que, à parte das coisas extraordinárias que germinaram dentro de uma caixa de comentários deste blog e que depois saíram para o Universo Gmail e de lá para o Jardim da Estrela, o meu nome anda a ser falado para a atribuição da mais alta condecoração da blogoesfera, a cruz da ordem das Postas de Pescada por altos serviços prestados à Nação]

,um grande bem haja.

E eu sei que o assunto é sério, quando risco mais um dia na agenda e reparo que passou mais um conjunto de 24 horas (nem um minuto a mais, nem um minuto a menos) e eu nem me dei ao trabalho de abrir o programa espião das estatísticas para contabilizar a debandada geral do meu silêncio na audiência esquizofrénica deste blogue – abro a (t)ralha, porém, para matar saudades do seu fundo preto e para ouvir o Coma do Tiersen, é que estou numa espécie de coma induzido, mas de olhos bem abertos, não me vá escapar nada, agora não durmo, agora não quero mesmo dormir, mas tenho saudades de escrever, de tropeçar nas palavras, e há demasiadas frases encavalitadas, este texto está caótico, mas o dia está mesmo agora a começar, e eu tenho que ir, porque os dias, agora, começam à noite, acabam de manhã, quando é hora de escrever notícias.