quinta-feira, abril 03, 2008

E nada de extraordinário acontece (uma e outra vez)

A frase está trocada - eu quero dizer uma coisa, mas digo o seu contrário, não sei bem se é de propósito, mas faço isto a toda a hora, eu desdenho, eu provoco, e eu queixo-me à toa, trago os bolsos cheios de histórias de um cancioneiro que faz cair os queixos e esbugalhar os olhos, eu digo (como é que eu tenha a lata de dizê-lo?):

eu só quero uma vida simples, sem sobressaltos.

E sento o rabo no sofá da casinha de bonecas da rua do Monopólio (eu vou morar para a avenida maldita, mas ela também está no tabuleiro do jogo da minha infância, sentados em cima do tapete sobre o qual o meu pai morreu, as pernas da mesa enterradas em tacinhas de água por causa das formigas pretas, e eu decido morar na avenida maldita, porque sempre tive queda para acolher as maldições de todo o mundo) – eu sento-me e não posso deixar de pensar que o meu rabo está enorme, que isso não é de hoje, mas que agora já não sei, já não reconheço que corpo é este que arrasto.

(e quando o telefone tocou – foi quase há um ano, como é que já passou quase um ano -, junto ao recreio da escola de São Miguel, em frente ao prédio da segurança social, e o meu irmão disse, o Zé Ralha morreu, eu pensei imediatamente que ficaria com os seus olhos; lembro-me de baixar a pála do pára-sol e espreitar a medo se os meus olhos já tinham ficado grandes como bolas de cristal, e se já não eram os meus, umas amêndoas perfeitas, que viam tudo a andar à roda; e isto, todo este medo, porque há muito, muito tempo ele disse-me, na única sombra do terraço de tijoleira escaldante - a glicínia ainda estava em flor-, quando a tua avó morreu - és tão parecida com a minha mãe -, ela deu-me os seus olhos, nesse dia, eu sonhei com uma tangerineira, e acordei com os olhos da minha mãe).

Mas eu sento o rabo no sofá - e naquela casa há sonhos novos dentro do estafe de cada parede velha repintada -, e eu digo às minhas vizinhas (querendo acreditar nisto com todo o meu ser):

Eu não preciso de mais nada. Acreditem no que vos digo, não quero glória, não posso ousar pedir seja o que for, e mereço todas as agruras; é que não posso mesmo, se ninguém me põe no meu lugar eu mesma me ponho na ordem, eu sei ser humilde, eu sei agradecer de papo cheio ou mesmo quando tudo é deserto, porque quem tudo quer, tudo perde, e porque mais vale um pássaro na mão do que dois a voar; eu tenho tudo o que pedi.


Ousei pedir o impossível que se fez possível, eu tenho mais do que poderia ter sequer sonhado,

(e tenho só quase trinta anos)

eu tenho-o a ele, o meu grande, grande amor, aquele que arrastei para o incrível mundo do nada de extraordinário acontece.

Bem, sei, tens toda a razão, a frase devia ser ao contrário - e tudo o que é extraordinário acontece -, eu não sei bem porque é que não escrevo tanto como antes, se é porque tenho medo de ser pobre e mal agradecida, eu não queria mais nada, não preciso de mais nada, só uma vida simples, nas vidas simples os blogues não servem para nada,

(escrevo isto e tenho Álvaro de Campos a sair-me da boca para fora, se eu casasse com a filha da minha lavadeira talvez fosse feliz),

e visto isto, percebo que não há um pingo de humildade em mim, que digo isto da boca para fora, para ver se de tanto repetir consigo decorar, mas eu quero mais, sempre mais um pouco; há meses, uma boa meia dúzia deles, eu gravei no telemóvel o número de telefone do comendador – porque raio, queres tu o número do comendador, sabe-se lá, e nada de extraordinário acontece, e agora da janela do museu que lhe é homónimo, eu tenho Picasso e Magritte ao meu dispor (e quem haveria de dizer que os Litchensteins são tão grandes), ainda agora, há tão poucas semanas, eu embrulhava os quadros da herança do meu pai, um Bual, não sei quantos Limas de Freitas, e os quadros do meu pai, e o número do Comendador guardado no meu telefone rasca.

E zango-me, arrelio-me (Miguel, arreliar é uma das minhas palavras favoritas; e bem-haja também – era o meu avô Oliveira que as dizia sempre, Diana, não me arrelies, e Diana, bem-haja), tenho a Santa Filomena, de setas coladas ao peito a olhar para mim, e quantas vezes pensei – afinal, o meu pai não era bruxo; afinal, o meu pai nem sequer me deu os seus olhos, afinal, tudo o que me resta são prédios no Barreiro e centenas de telas embrulhadas em papel de cenário,

Mas o meu pai faz-me das suas, porque eu insisto, porque eu digo, à laia de ladainha em tom menor, e nada de extraordinário acontece, e um, dois, três, dias depois de eu perder o filho que não nasceu, aparece, sei lá vindo de onde, um fantasma monocromático ofendido com as palavras deste blogue, que abalroa a minha mãe na rua, que diz que eu sou uma galdéria, que não presto para nada, um fantasma se sumiu da vista há mais de dez anos, raios, raios, e tudo o que é extraordinário acontece, e virgem ofendida, devolve um quadro de um anjo que o meu pai em tempos pintou. E o imbecil ofendido nem percebe que me trouxe um presente do meu pai, nem percebe que foi joguete de um plano maior, que só serviu para isso, e espero que fique bem, e que tenha muitos filhinhos pela barriga da perna.

Mas não fica por aí - comovo o haitiano octogenário com o meu francês macarrónico – tu parles le francais comme une vache holandaise, diria o meu avô Oliveira – e convoco toda a imprensa para o seu trabalho, peço ao David o email da última voz da rádio, e digo quem sou, o que fiz (não sou nada, não posso querer ser nada, Álvaro de Campos está-me nas pontas dos dedos), que preciso da sua voz emprestada, e do outro lado do oceano, onde o ditador veste fatos-de-treino da Adidas – ele responde que me conhece muito bem, que muito estima o meu trabalho, e eu sem saber a que trabalho ele se refere.

E se tal já não bastasse – já era demais até ao final do ano, pelo menos -, pela manhã sorrio por dentro, porque a mulher com quem falo, desde o início da semana, de orquídeas, azáleas e hibiscos, diz em francês, ao telefone, que o recém nomeado director-geral das artes, é da terra do São Francisco Xavier, que lhe deve ter herdado o apelido

(Eu sorrio, porque o João acha que eu sou Xavier, porque a minha família goesa descende do santo)

E, de repente, ela desliga o telefone e em tom grave, pergunta:

Filha, qual é mesmo o teu apelido?

E eu respondo, a sorrir, Xavier Ralha, isso mesmo, o apelido dos monhés, e julgavas que era só isto, nã, nã, nã, faltam as palavras mágicas, essas mesmo, as que eu digo em jeito de feitiço dos contrários – e nada de extraordinário acontece -, e já temos as duas os pelos dos braços eriçados à espera do que está para vir, quando ela me deita ao chão (preciso de fumar, preciso de fumar 3 cigarros de seguida) e revela um dos segredos mais bem guardados da família:

O teu pai não tinha um gato chamado Leonardo?

E, de repente, eu percebo porque, afinal, guardei o telemóvel do comendador.