sábado, janeiro 29, 2005

Monossílabos

"Hello", "sim", "bai bai" - hoje estamos muito monossilábicos.
Mas também houve muitas reticências: sinal de pontuação que me dá que pensar, que me faz acreditar que ficou muito por escrever nas entrelinhas.
As notícias que tenho hoje em carteira podiam também ser sintetizadas em meia dúzia de palavras. Infelizmente, terão que ser esticadas até ao limite do impossível. Porque é que os jornais insistem em fazer edições ao fim-de-semana?

quarta-feira, janeiro 26, 2005

I do want to be found

INT. KIP'S TENT. NIGHT

Hana lies over Kip in a stable. A naked white body plaited into a brown one.

HANA

If one night I didn't come to see you, what would you do?

KIP

I try not to expect you.

HANA

Yes, but if it got late and I hadn't shown up?

KIP

Then I'd think there must be a reason.

HANA

You wouldn't come to find me?

(Kip shrugs)

That makes me never want to come here.

(Kip still won't respond)

Then I tell myself: he spends all day searching, in the night he wants to be found.

(Then Kip turns, rolling over to face her)

KIP

I do. I do want you to find me. I do want to be found. I do.

Anthony Minghella, The English Patient

Sweet

Sunshine takes me
To a place where I'm living free
Something in your eyes is telling me
This is where I want to be,
But I never thought it would be so sweet

Sweet: the way you make me feel

Funny,
How it just gets sweeter and sweeter
Day by day
It's sweet how you just get funnier to me
In every way
But I never thought it would be so sweet

Sweet: the way you make me feel
Sweet: I can't believe you're real...

It's so rare
To find someone
Who Brings on the sunshine the way you do
You're so sweet

Sweet: the way you make me feel
Sweet: I can't believe you're real...

[Esta é a música que não me sai da cabeça hoje]

terça-feira, janeiro 25, 2005

Um ensinamento perdido do Zé Ralha

Fui injusta! Afinal, o Zé Ralha ensinou-me não duas, mas três coisas. O Zé Ralha se calhar é mesmo bruxo e sabia da minha predilecção pelos números ímpares...
Apercebi-me do lapso, noutro dia, num dia não muito distante - mas os dias têm sido estranhos, passam depressa e devagar, não sei mesmo quando foi -, à conversa com o senhor (Tsunami) Vring.
Googalizei o nome do Zé Ralha e encontrei a agulha no palheiro: o currículo do pintor. "Criou as linhas gráficas de cinco jornais diários, 15 semanários e 10 revistas", lê-se num site de uma qualquer instituição cultural de Celorico da Beira.
Sim, o Zé Ralha foi designer gráfico e publicitário também. Chegou até a ter uma agência de publicidade, a Casa das Ideias, em sociedade com uma lésbica ex-jogadora de andebol do Benfica, que eu aposto que nunca mais entrou no restaurante Isaura, na Avenida de Paris, depois de ter tido um ataque de caganeira de merda extrema (esta expressão é da minha tia Luz, a mulher de farto buço que fazia xixi de pé e falava pior que um carroçeiro) nas instalações sanitárias deste simpático restaurante.
[A propósito do restaurante Isaura, o nome da minha avó Zá, mãe do Zé Ralha, e só para demonstrar que as coincidências existem: a menos de cem metros de sua casa, a avó Zá tinha duas lojas com o seu nome - o restaurante e a florista, na Praça de Londres. Ambos ainda lá estão, parados no tempo. Sempre achei que ela tinha escolhido viver na Praça Pasteur, porque se sentia acompanhada, porque tinha dois estabelecimentos em sua honra]
O terceiro ensinamento do Zé Ralha tem a ver com design gráfico. Um dia, estava ele a gastar o equivalente ao salário mínimo da altura, em revistas estrangeiras, e partilhou comigo o segredo do negócio, qual Darwin instantâneo: "filha, em artes gráficas nada se inventa. Tudo se copia".
Seja feita justiça. Aqui foi reposta a verdade.

quinta-feira, janeiro 20, 2005

A noiva de preto

[este post demorou um pouco mais a parir, sobretudo porque o blogger comeu, de um dia para o outro, mais de metade do texto... Censura, naturalmente...]

A Magui explicou ao Zé Ralha, momentos após o ataque sanguinário, que os dois teriam que casar, corrumpida que estava a honra do seu pescoço.
O Zé Ralha ignorou a Magui e o seu ultimato, mas ela sempre teve um dedinho que adivinha e, pouquíssimo tempo depois, lá estava o Zé Ralha a ser emancipado (a maioridade era aos 21 anos), para poder dar o nó com a Magui, na 5ª Conservatória do Registo Civil de Lisboa - que ficava, até pouco tempo (a minha filha ainda lá foi registada, no final de 2003), na avenida Guerra Junqueiro.

Na véspera do casamento, o meu avô Oliveira deixou uma caçadeira no quarto da Magui. Suponho que se fez isto à própria filha, deve ter arranjado, também, uma maneira de colocar, sorrateiramente, uma cabeça de cavalo por entre dos lençóis da cama do Zé Ralha.
A família Oliveira estava de luto.
A Magui apercebeu-se disso, ficou triste, revoltada e, já sob as más influências do Zé Ralha - tenho a certeza disto -, vingou-se, partindo o coração à minha avó Tóia, cujo sonho sempre foi fazer um bom casamento para a sua filha. Fazer o casamento a que ela não teve direito. Com toda a pompa e circunstância.

O exemplar que arrebatou o coração da Magui era, de facto, invulgar, mas até provinha de boas famílias. Menos mal, portanto. Urgia, por isso, fazer uma festa de arromba, uma festa que camuflasse as excentricidades do Zé Ralha. Impunha-se, então, uma boda no Buçaco Palace, 500 convidados no mínimo, um folclórico vestido branco, cheio de bordados e rendinhas, de preferência, comprado no Tito Noivas, na Baixa.
Mas não foi assim. A Magui bateu o pé, informou que não haveria casamento se não a deixassem ir vestida de preto. Ela costuma dizer que foi premonição, mas eu sei que foi, de certeza, maluqueira directamente regurgitada da cabeçita maquievélica do Zé Ralha. Reza a lenda que a Magui não se recusou a casar pela igreja - apesar do ódio acumulado em doze anos de colégios de freiras em regime de internato -, movida apenas pelo gozo que de se ajoelhar perante Deus vestida de luto.
Logicamente, a união do Zé Ralha com a Magui não foi selada por Deus. Não houve centenas de convidados, apenas uma dezena de presentes, os familiares mais próximos: pais e irmãos. Não houve banquete no Palace do Buçaco, almoçaram na Mexicana e, saídos dali, seguiram com as suas vidinhas.
O Zé Ralha não cortou o cabelo nesse dia de Setembro (julgo que foi o dia 2), mas os pais não se importaram; já estavam habituados a piores excentricidades do seu primogénito. Suponho que o meu avô Ralha terá corado e engolido em seco quando viu o seu varão a casar de fato azul bébé, camisa roxa e flor de antúrio encarnada à lapela, mas isso, são só suposições minhas, porque não existe nenhum registo fotográfico.
Nada. Como se não tivesse acontecido.
Procurei, procurei nos muitos caixotes e caixotes e albuns de fotografias atafulhados de pessoas e sítios que eu não sei quem são, nem onde ficam, vi dezenas de fotos de casórios, gente feia, gente assim assim e gente até bonita, trigueira, mas bonita, mas não encontrei nenhuma foto da Magui vestida de preto e o Zé Ralha de antúrio à lapela.
Eu não perdoo à Magui e ao Zé Ralha de não terem descido a Guerra Junqueiro de mãos dadas, de não terem deslizado aos pulinhos histéricos as escadas do metro da Alameda (já existia, com certeza, a estação, em 1971), de não terem corrido as cortininhas de veludo verde do "photomaton" entre olhares de cumplicidade, de não terem colocado meia dúzia de tostões na ranhura da máquina, de não se terem beijado, iluminados por um fogo-de-artifício de "flashs".

quarta-feira, janeiro 19, 2005

Vampiro

O Zé Ralha e a Magui conheceram-se numa exposição de pintura da Mocidade Portuguesa. O destino fez das suas nesse dia e a Magui foi chamada, à ultima da hora, para substituir uma outra menina de "coro" queia tocar Chopin à exposição.
Existe uma foto desse dia. Uma foto da Magui a tocar piano. É um retrato a preto-e-branco. A Magui está seríssima, com o olhar perdido na pauta. O seu rosto de porcelana está reflectido na cauda preta brilhante do piano.
Tinha vestido um blazer escuro. Emblema da Mocidade Portuguesa cozido ao peito. A indumentária ríspida da organização criada por Salazar contrasta com o seu aspecto frágil.
A Magui tinha 21 anos e era um anjo. Parecia retirada de uma tela da Renascença, uma qualquer virgem Botticeliana, perfeita.
O Zé Ralha não é, nem nunca foi bonito. Tez muito escura, cabelo encarapinhado - quando conheceu a Magui tinha o cabelo ao melhor estilo "capacete", popular nos anos 70. O maior complexo do Zé Ralha (e de toda a sua descendência) sempre foi ser gordinho.
O Zé Ralha, aos 18 anos, tinha um futuro brilhante à sua frente. Tinha como mestres Ernani de Oliveira, Lima de Freitas e Manoel Lapa (de quem chegou a ser assistente, parece-me).
Aquela foi a primeira exposição do Zé Ralha.

O Zé Ralha não se apaixonou pela Magui quando a ouviu tocar Chopin. Bem pelo contrário, e mau como só ele sabe ser, até gozava bastante com a prestação musical da Magui nesse dia. Eu acredito que ela tocou sublimemente bem. Eu acredito que ela deixou de tocar piano por causa do Zé Ralha.
A Magui é que se apaixonou perdidamente pelo Zé Ralha.
Tocou o seu Chopin, ganhou coragem e, protegida pelo uniforme da Mocidade Portuguesa, foi ter com o grupo de jovens "hippies" artistas. Interpelou o Zé Ralha e disse: "Eu quero fazer parte do grupo".
E o Zé Ralha mordeu-lhe o pescoço.
Tudo começou assim.

segunda-feira, janeiro 17, 2005

Os ensinamentos do Zé Ralha

O Zé Ralha é como o 25 de Abril lá em casa.
Sabemos que ambos existiram e sabemos também - apesar de ainda estarmos em fase de negação - que estes dois acontecimentos revolucionaram as nossas vidas, apesar de não falarmos muito sobre o assunto.
O 25 de Abril é conhecido, no seio da minha família fascista, como o 25 do 4. O Zé Ralha é conhecido, no seio da minha família monoparental, como Zé Ralha, ou, ainda mais frequentemente, como o "dador de esperma".
De qualquer forma, o Zé Ralha conseguiu ensinar-nos duas coisas na vida. Na verdade, a mim só me ensinou uma. O Leonardo, que pela condição de primogénito e de génio da família, sempre foi um privilegiado (a mim coube-me a sina de ser a mais protegida - nunca punha nem levantava a mesa porque, alegava a minha avó Tóia, eu não tinha pai e tinha que ser poupada...), teve direito ao primeiro ensinamento do Zé Ralha. Eu apropriei-me dele indevidamente, confesso.
Conta o Leonardo que, num dia (inédito) em que o Zé Ralha o foi buscar à escola, lhe perguntou, assim do nada, e com aquele ar teatral que Deus lhe deu: "Meu filho, quantos amigos tens?". O Leonardo, puto, nem seis anitos teria, começou, então, a enumerar todos os coleguinhas da escola e da pandilha lá do bairro. Então, e eu até consigo imaginar o Zé Ralha a parar no meio da estrada e erguer o olhar para o céu, disse: "Meu filho, esses não são teus amigos, são teus colegas. Amigos terás dois ou três durante toda a tua vida".
Fabuloso. Profundo. De fazer chorar as pedras da calçada. Imperceptível e traumatizante aos olhos de uma criança com menos de seis anos, por mais sobredotada que ela fosse.
O segundo ensinamento do Zé Ralha é a melhor recordação que eu tenho desse senhor.
Era o início de Agosto. Tinham desligado na véspera a máquina que mantinha o meu avô Oliveira "vivo". Ia a enterrar nesse dia. Ia para junto da minha avó Tóia, em São Félix.
Morreu de desgosto, o meu avô Oliveira. Porque não aceitou que a mulher, 25 anos mais nova, fizesse primeiro a travessia. Não estava certo. Por isso, deixou-se morrer. Em pouco mais de seis meses, deixou-se morrer.
O Zé Ralha reapareceu nas nossas vidas nesse dia. Eu não me lembro do Zé Ralha antes disto. Não deixa de ser estranho, porque me lembro da Marta e do André, da casa da Travessa do Noronha, lembro-me e tudo da Manuela, mas não me lembro do Zé Ralha.
Lembro-me da avó Zá me subornar com Sugus de morango para me levar para a casa do Zé Ralha e da Manuela no Bairro Alto, lembro-me de ela falar do Zé Ralha na casa da Praça Pasteur enquanto fazíamos mistelas na cozinha (ela tinha sempre uns biscoitos pré-preparados no forno e só soube disto há pouco tempo; se a Madalena não me tivesse contado continuaria a acreditar que era uma exímia cozinheira aos quatro anos).
Lembro-me de um recorte de jornal que ela mostrava às escondidas da minha mãe (tinha uma foto do Zé Ralha na inauguração da sua exposição), lembro-me de ela me pedir para fazer desenhos bonitos para o Zé Ralha (andava iludida, a avó Zá, também), lembro-me de ela vaticinar, perante o olhar de pânico do meu avô Ralha, que eu desenhava tão bem que, de certeza, me viria a tornar numa grande pintora como o Zé Ralha. Lembro-me de tudo isto, mas até ao dia 3 de agosto de 1985 não me lembro do Zé Ralha.
Eu não sei como é que o Zé Ralha reapareceu nesse dia triste. Apareceu do nada, do céu aos trambolhões.
Levou-nos para a Feira Popular (fomos de Táxi, apesar de vivermos na avenida dos Estados Unidos da América; o Zé Ralha é viciado em Táxis).
Pagou-nos as entradas para todos os divertimentos (menos os póneis, que me faziam chorar, disse-lhe que os póneis estavam tristes e que não queria andar). Joguei dezenas de vezes no Out Run (todos os anos, pedia ao Pai Natal - tenho lá uma carta ainda - um gato persa e um Ferrari Testarossa, e o protagonista do Out Run era um Testarossa) e outras tantas de Tetris (houve uma altura, quando a minha idade ainda não tinha dois dígitos, mas o vício já era tão grande que, para adormecer, em vez de contar carneiros, fechava os olhos e imaginava peças de Tetris a cair lentamente; aconteceu-me na adolescência a mesma coisa com as paciências).
Fomos almoçar numa espelunca. Fartámo-nos de rir.
A recordação é tão boa que até consigo ceder aqui e dizer que o meu pai (e não o Zé Ralha) esteve no seu melhor. E foi nessa poçilga que o Zé Ralha nos passou o segundo ensinamento para a vida. Disse-nos: "Filhos, nunca comam salada em restaurantes como este".
Amen.

sexta-feira, janeiro 14, 2005

Le jour triste

"Já algum dia desejaste, com toda a força, amar alguém que não amas neste momento?", perguntei eu, recentemente, ao senhor que escreve comentários neste blog.
"Eu não mereço ser tão amada", respondi eu, via sms, à senhora que tem o nome de código Moi Moi - "user name" que utiliza quando está no modo "Pandilha"; de noite, ela usa o seu nome de baptismo e é outra pessoa... - e que me apanhou a chorar em frente ao monitor num dia destes...
"Eu não presto", afirmei eu, ainda em 2004, mais uma utilizando o GSM, para comunicar com a pessoa a quem acabo de partir o coração.
Este é apenas mais um dia triste.


quarta-feira, janeiro 12, 2005

Refresh

A perna direita não pára de tremer. Estou constantemente com os polegares na boca; a clicar freneticamente no link "refresh".
À espera...

terça-feira, janeiro 11, 2005

Deus no armário dos sapatos

A nossa casa de Viseu é a casa mais bonita da cidade. Fica no centro da cidade, a um passinho do Rossio.
É uma casa cor-de-rosa, com a fachada repleta de símbolos maçónicos. Tem as janelas mais bonitas que eu já vi: em forma de estrela.
A nossa casa de Viseu tem um pé direito que nos permitia convertê-la num hotel para gigantes. Tem uma escadaria de mármore que parece a selva, povoada pelas "monsteras" gigantes que ali moram há muitas décadas. Cheira sempre a terra molhada naquelas escadas, apesar de as "monsteras" serem regadas apenas uma vez por ano.
A nossa casa de Viseu tem dois pisos e muitas assoalhadas. Tem uma sala, onde cabia todo o meu apartamento de Lisboa, só para o piano - o piano com o qual eu sonho muitas vezes sempre o mesmo sonho.
A nossa casa de Viseu fica no número 54 da rua Alberto Sampaio; em frente fica o Governo Civil. Tem corredores intermináveis, com passadeiras encarnadas, que eu e o Hugo usávamos como circuito de triciclos.
A nossa casa de Viseu tem um sótão poeirento e decorado com teias de aranha, tem uma adega gigante e sombria, tem garagens que guardam clássicos de outros tempos - um Wosley charmoso do início do século XX, dois Austin A40, um Cheverolet da década de 50 que gasta 30 litros de gasolina aos cem, um Volkswagen Carmen Guia descapotável (cujo único defeito é ser encarnado) e um Carocha da segunda Guerra Mundial.
A nossa casa de Viseu tem uma assoalhada à qual eu sempre chamei armário dos sapatos. Um dos corredores da nossa casa de Viseu termina aí, nessa arrecadação, onde tudo se guardava: os sapatos, um aspirador Electrolux da década de 50, bonito, azul metalizado, e uma "sabrina" cor-de-laranja (sabem o que é? é um híbrido entre a vassoura e aspirador...).
Eu sempre tive medo de dobrar essa esquina. Fechava sempre os olhos com força e só os abria quando já estava a meio do outro corredor.
Eu tenho uma foto da última viagem que fizemos até Viseu. Foi o Zé quem a tirou, lembro-me muito bem. Estamos parados na berma de uma estrada, o Simca verde está com a bagageira aberta, atafulhado até mais não - a minha avó levava sempre para Viseu mantimentos suficientes para sobreviver a uma catástrofe natural; ninguém lhe punha na cabeça que na terra do Viriato também havia mercearias e, até, um supermercado (um Pão de Açúcar, logótipo laranja inesquecível também).
Eu e o Leonardo estamos a comer pão com marmelada, eu estou agarrada à minha avó Tóia (Custódia), tenho o cabelo dividido em duas trançinhas enormes e a palhinha de um pacote de leite Mimosa de morango na boca (entretanto, há meia dúzia de anos, voltou a ser comercializado para satisfazer, de vez em quando, a minha memória gustativa; gostava que fizessem o mesmo com o Tódi e com a Carbosidral, lanço aqui este apelo...).

O meu avô Oliveira está, como sempre, impecável, de fato e chapéu. Mas está muito sério, como se previsse que aquela seria a última viagem até Viseu. Que seria a derradeira paragem no Buçaco. Que aquele ia ser o último enjoo do Leonardo (que entrava em simbiose com a cor do carro) nas mais de cinco horas de viagem que separavam Lisboa da nossa casa de Viseu.
Nesse último Verão em Viseu dei comigo a acreditar que Deus falava comigo no armário dos sapatos.

Ia para lá horas ao fio - a casa é tão grande que ninguém dava pela minha falta. Implorava por castigos implacáveis para o Leonardo - que me puxava as tranças e me dava estaladas a torto e a direito -, pedia umas fitinhas novas para o cabelo (era uma miúda muito Lolita, muito pindérica), mas, acima de tudo, reclamava ao Deus do armário dos sapatos que a minha mãe e o Hugo se juntassem a nós o mais rapidamente possível.
Quando chegaram, as minhas expedições ao armário dos sapatos tornaram-se menos frequentes. Era um segredo só meu e com o Hugo por lá eu tinha um amigo verdadeiro para brincar.

A minha mãe saía todas as noites e eu lembro-me de ficar deliciada a vê-la pintar um sinal preto em cima lábio — parecia uma branca de neve loira.
O Verão passou a voar e eu ia, de novo, ficar sozinha, com o Leonardo e com os meus avós na nossa casa de Viseu. A minha mãe tinha que voltar ao trabalho e a megera da minha tia (continua a ser uma megera, vinte anos depois) não deixou que o meu primo lá ficasse em Setembro.
Estava na altura de ir ao armário dos sapatos. Utilizar o número verde para o céu.
Naquela tarde, prometi que me portava bem para o resto da vida se fôssemos todos para Lisboa.

A casa estava vazia naquela tarde. Todos tinham ido a casa de um médico amigo da nossa família, por causa de uma tosse da minha avó.
Chegaram pouco tempo depois, sem grandes conversas.
Enfiaram-nos a nós, miúdos, no quarto do piano e incitaram-nos a tocar os vários instrumentos que lá estavam ao nosso dispôr. Disseram-nos para fazermos o barulho que quiséssemos. Não estranhámos. Nunca nos deixavam tocar a corneta, mas não estranhámos. Apesar da barulheira sinfónica da corneta, do acordeão e das marteladas no teclado de marfim do piano, ouviam-se gritos e choros. Portas a bater.
Naquela noite, a minha mãe não saiu com os amigos. Não a vi a pintar o sinal em cima do lábio com um lápis preto, nem a sair para a rua com cara de boneca de porcelana. Naquela noite ninguém falou ao jantar, a não ser para nos anunciar, a nós crianças, que vínhamos todos para Lisboa.
Não explodi de alegria, mas tive a confirmação de que a minha cabine telefónica funcionava. Vinha para Lisboa, como tinha pedido, e isso só podia ser obra de Deus que me havia ouvido no armário dos sapatos.
A minha avó morreu três meses depois. Viemos para Lisboa porque lhe detectaram, em Viseu, um cancro no pulmão em estado avançado.
Culpei-me, durante muito tempo, do sucedido.

Nunca falei disto a ninguém, mas, mais tarde, apercebi-me de que ninguém fala com Deus num armário onde se guardam sapatos e aspiradores velhos.
Mas nunca aceitei isto muito bem.
Por isso, desde então, quando vou a Viseu, nunca abro o armário dos sapatos.

segunda-feira, janeiro 10, 2005

Tsunami

[Marimbei para a subtileza e para a discrição; tenho esta história para contar]

Na parede do escritório do meu avô Oliveira, em Viseu, está uma plaquinha antiga, escrita em francês, com um tipo de letra arte nova (se é que isso existe; é uma fonte esguia, elegante, sem serifa), que informa os mais distraídos que por ali passem do seguinte: “Aide toi et le ciel t’aidera”.

Este mote – que eu não faço ideia se foi ele que mandou gravar, suponho que sim, morreu cedo demais para me contar esses detalhes – é a vida do meu avô Oliveira resumida em sete palavras.

Este mote persegue-me.

Penso nele amiúde, apesar de não ir a Viseu há muito muito tempo, apesar de o meu avô Oliveira me ter explicado o que é que aquela plaquinha queria realmente dizer quando eu tinha pouco mais de seis anos.

Este é o mote dos resilientes. A palavra resiliente, parece-me, não existe em português (o dicionário do Word acaba de a sublinhar a encarnado). Pelo simples facto de ter perdido três anos a estudar Latim, sei que deriva do verbo resilio, que quer dizer retirar-se sobre si próprio. Na Física e na Engenharia, o termo utiliza-se com frequência. A resiliência de um material mede-se pela capacidade máxima de este absorver energia sem sofrer deformações permanentes.

Trocado por miúdos (e consigo fazer este exercício de síntese depois de me ter dado ao trabalho de ler, ainda que muito por alto, um artigo científico da minha querida tia, professora Doutora Helena Ralha Simões, na obra “Resiliência e educação”), em Psicologia, um indivíduo resiliente é um ser extraordinário que, contra todas as expectativas, contra a vontade dos astros, dos Deuses e das circunstâncias mais adversas, altera o seu fado, o seu destino, supera todas as expectativas e vence, destaca-se.
Não por vontade divina. Os Deuses estão-se nas tintas para quem aceita a sua condição, mas estão disponíveis vinte e quatro horas por dia para apoiar quem se decide rebelar - o povo diz, na sua imensa sabedoria, que estas pessoas nasceram “com o cú virado para a lua”.

É isto que quer dizer a plaquinha na parede do escritório do meu avô Oliveira, em Viseu.

Mas, há vinte anos atrás, ele explicou-me a coisa de uma forma muito mais simples. Disse-me que se eu desejar muito uma coisa, qualquer coisa que seja, se a desejar com todo o meu ser e, se fizer tudo o que estiver ao meu alcance para a conseguir, ainda que pareça que nada vai adiantar, que é escusado, não há que duvidar, não tem que haver receios: está no papo!.

Eu hoje desejei tanto tanto tanto encontrar uma pessoa - uma pessoa que entrou dentro da minha vida como um tsunami, de repente, sem aviso, com uma força quase sobrenatural – que, bastou-me olhar pelo retrovisor do meu Idea para ter a certeza que tinha valido a pena seguir o instinto e feito um caminho para casa muito mais longo e ilógico.

Os Deuses deram um empurrão: fizeram-me ter um micro-acidente de manhã, para ao invés de passar a tarde mascarada de “fada do lar”, ir espantar a neura para junto de um querido amigo.

Os Deuses ajudaram porque eu comecei a ajudar-me.

domingo, janeiro 09, 2005

Deixem de me ler!

É uma ordem!
Deixem... Vá lá...
É que assim dá uma trabalheira do caraças!
Tenho que ser subtil, é uma chatice, não posso escrever com todas as letras aquilo que mais me apetece.

sábado, janeiro 08, 2005

Esquizofrenia

Não tenho amigos imaginários; outra noite, confesso, delirei: a enxaqueca martelava tanto que sou capaz de jurar que o meu colchão e a minha cama se amotinaram e convocaram uma greve geral.
Munidos de cartazes, palavras de ordem e bandeiras encarnadas reclamaram comigo baixinho (porque, ainda assim, apesar de estarem zangados comigo, respeitam as minhas dores de cabeça).
Sentem-se sós, reivindicam um segundo corpo, querem dar guarida a alguém que ocupe a imaculada e virgem metade direita do meu leito (quando mudar para Santa Marta, sou bem capaz de comprar uma cama mais pequena).
Tenho duas vidas. Totalmente estanques. Não comunicam.
Sinto-me esquizofrénica, sem a parte dos amigos imaginários, sem as alucinações. As minhas duas vidas são bem reais. Não sei, de momento, viver sem uma delas.

quinta-feira, janeiro 06, 2005

A pedido de várias famílias...

O Maique - da "Pandilha" - está na outra linha (Gmail) a queixar-se: "é bonito é, mas foi o senhor que escreveu" (escreve tudo isto sem acentos, claro, e com muitos agás há mistura). Tem razão. Tem toda a razão.
Não sei o que se passa.
Vou acender mais um cigarro, rezar para que a Migraspirina faça efeito e que a inspiração bata à porta...
Não é segredo nenhum o que vou escrever a seguir. O Vinicius de Morais dizia que "o poeta só é grande se sofrer" e toda a gente está careca de saber que a palavra escrita sai mais facilmente quando se ama. A combinação das duas, que é o meu caso, não multiplica a qualidade (nem a quantidade; os meus posts são telegráficos...) da prosa...
Às vezes, sou infeliz porque sinto que tenho uma existência vazia. Que se eu morresse, ninguém iria dar pela minha falta. Que as 24 horas do dia passam, deslizam pelos meus dedos sem que nada de excepcional aconteça. Mas, depois, olho para o lado e percebo que estou errada. Que os meus dias são cheios, que estou a passar pela vida de uma maneira que poucos ousam fazer. Tem um preço elevado sentir a vida assim. A aposta é alta.
A minha mãe está-me sempre a dizer "não vibres". Multiplico a felicidade por cem; a tristeza por mil. E, invariavelmente, dou-me mal.
Não me importo.
Posso até vir a ser uma estatística. O meu nome dificilmente ficará gravado numa rua de Lisboa. Basta-me a consolação de continuar a viver assim. Na verdade, contento-me com muito pouco.

As horas (difíceis)

[passo o meu dia inteiro a debitar caracteres, a encher folhas de jornal, e aqui só me sai o que os outros escreveram]

Vivemos as nossas vidas, fazemos seja o que for o que fazemos e depois dormimos: é tão simples e tão normal como isso. Alguns atiram-se de janelas, ou afogam-se, ou tomam comprimidos; um número maior morre por acidente, e a maioria, a imensa maioria, é lentamente devorada por alguma doença ou, com muita sorte, pelo próprio tempo. Há apenas uma consolação: uma hora aqui ou ali em que as nossas vidas parecem, contra todas as probabilidades e expectativas, abrir-se de repente e dar-nos tudo quanto jamais imaginámos, embora todos, excepto as crianças (e talvez até elas), saibamos que a estas horas se seguirão inevitavelmente outras, muito mais negras e difíceis. Mesmo assim, adoramos a cidade, a manhã, mesmo assim desejamos, acima de tudo, mais.
Só Deus sabe porque amamos tanto isso.

Michael Cunningham, As Horas

Em pantanas

O que fazia um elefante
na tua loja de porcelanas?
Sei que não me vais dizer...
Entrou e saiu pela frente
Deixou tudo em pantanas
E tu voltaste a sofrer...

Carlos Tê

Natal fora d'horas

O Pai Natal este ano baralhou-se comigo; chegou-me vinte horas mais cedo do que manda a tradição. Por pouco, nem me apercebia - trancada num carro estacionado no centro de Lisboa, a ouvir uma música triste, já ia muito alta a madrugada.
Não vinha vestido de encarnado, nem tão pouco entrou pela chaminé. Chegou-me, de mansinho, via sms.
Eu já sou crescidinha. Mas ainda acredito no Pai Natal.

Pandilha

Andy, David, Diana(s), Inês e Miguel são (por ordem alfabética, não existe nenhuma preferência pessoal implícita) os membros da Pandilha. Não é nenhuma sociedade secreta: não usamos aventais, chapéus ou medalhinhas. A Pandilha nasceu de geração espontânea - ninguém sabe como, quando, onde, nem porquê. Minto, sabemos onde nasceu a Pandilha. No gmail.
De repente, a Pandilha passou a fazer parte da minha vida. As melhores coisas acontecem sempre quando menos esperamos.


Intro

Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Álvaro de Campos, 15 de Janeiro de 1928