No dia seguinte
E por isso, talvez por isso mas daí talvez não, porque a minha mãe não é do lado da família que apanha moscas qualquer uma das mãos e até de olhos fechados, ela por vezes até me diz que me falta espinha dorsal, e que não me corre sangue nas veias, porque não quero sentir ódio ou amargura porque são sentimentos que me queimam, porque quase sempre ofereço a outra face, porque me vergo, porque não enfrento o touro pelos cornos, porque levo esta vida sem subir montanhas, e o problema, o único problema é que eu penso em tudo, sobre a mais insignificante merda que se me atravessa no caminho.
A toda a hora, e não é pêra doce, não é fácil ser eu a toda a hora, e às vezes lembro-me da Tiju a confidenciar-me na assoalhada que fica imediatamente em baixo da outra onde, em tempos tão mais felizes, fazia biscoitos em forma de estrela com a minha avó - os móveis da cozinha eram laranja mas não consigo refazer a copa, tinha uma predilecção pelo armário dos tupperwares que cheirava a plástico velho, mas não consigo ver nada na copa além do sorriso e dos lábios finos da minha avó; e sei que era lá que batíamos nos tachos à janela, quando o ano velho se despedia, mas não me lembro de que cor era a copa onde fazia biscoitos e bebia copos de água com pastilhas de Cecrisina -, a Tiju a dizer-me que o meu pai em tempos lhe disse isso mesmo: que não era fácil ser ele, que por vezes, nem ele tinha paciência para si próprio. E assim, eu tenho a certeza que sou mesmo filha do meu pai, que quem sai aos seus não é de Genebra, ou como raio é o provérbio.
Mas, descansa, eu não penso mais em ti do que penso em tudo o resto, não mais do que nas mãos da minha mãe, que estão cada vez mais torcidas como um tronco de uma árvore bonsai, não menos que nos resultados do banco de amanhã, ou nas cores dos azulejos da casa-de-banho nova que não sai do papel, e quase o mesmo do que no buço que só eu vejo reflectido do outro lado do espelho, nos olhos azuis costureira mongol que vive aos pés de Santa Marta, ou na peruca loura e despenteada da vizinha que todas as noites desce ao Andaluz para jantar com o marido gigante sempre com chapéus ascottianos enfiados na cabeça.
Mas penso muitas vezes nisto – se ao menos eu tivesse nascido no dia seguinte, naquele que vem depois da capicua 22, talvez fosse mais parecida contigo, talvez nunca reparasse no buço que mais ninguém vê, talvez eu não comesse bolachas de chocolate para esquecer todas as frustrações, muito provavelmente eu não duvidaria que sou mais inteligente do que toda a gente que me rodeia; eu podia reinar, como tu, talvez se eu tivesse nascido no dia seguinte, talvez eu escrevesse o tal livro que toda a gente me pede, se eu tivesse nascido um dia depois era leão como tu; eu penso muitas vezes nisto, que gostava de ser como tu.
E toda a gente me fala mal de ti, leãozinho, que és um predador, um mercenário, que não olhas para trás nunca, que traças o teu destino a tira-linhas todos os dias, e que arrasas quem quer que seja que te faça desviar do plano original; que te gabas do teu sucesso, que em tempos destruíste a minha reputação – como se eu tivesse alguma -, toda a gente me diz tem cuidado, que um dia tu me vais magoar, que não tens nada de santo, que és feito de pau oco, que és incapaz de amar; ninguém percebe porque gosto tanto de ti, e mesmo assim, eu oiço todos os argumentos, entra por um ouvido e sai por outro, e eu continuo a gostar de ti, a admirar-te de muito longe, e penso muito nisto, que, se ao menos eu tivesse nascido no dia 23, talvez fosse um bocadinho mais parecida contigo.
Vejamos se nos entendemos e se eu vou directa ao assunto. Eu nunca serei porra nenhuma, só vou ser dona do meu nariz empinado, eu nunca vou ser nada, não vou escrever o tal livro, já não sei se ninguém me respeita apenas porque tenho um par de mamas, não é fácil ser eu própria, não é mesmo, questiono cada centímetro do meu corpo, cada gesto impensado; pode até não parecer, mas meço todas as palavras, não é nada fácil, por vezes também me canso de mim, porque choro demasiadas vezes atrás do portátil, porque carrego o luto por todas as coisinhas que cirandam na minha cabeça que têm que me abandonar, porque é assim a vida, mas, talvez, nunca se sabe, se eu tivesse nascido no dia seguinte, eu se calhar ia mais longe, e se assim tivesse sido, eu queria ser como tu.
Agora falo menos, falo menos e rio menos, porque é melhor estar calada do que apenas falar sobre mim; no fundo, eu nasci um dia antes e, por isso, estou fechada sobre mim, e eu também penso tanto nisto, nem mais nem menos do que em todas as outras coisas juntas que andam aos saltos dentro da minha cabeça, quantas vezes estivemos juntos, se juntássemos todos os bocadinhos, ao longo de todos estes anos, quantas horas estivemos juntos, nem um dia estivemos juntos, e eu deposito quase tudo no amor que tu também me tens.
A história é esta. Simples. A do dia seguinte.