De certeza, a qualquer momento, vou-me esquecer – estou nisto há dois dias –, talvez não seja ainda hoje, mas de amanhã não passa, com certeza, vou-me esquecer, é tão certo como o remoinho da minha franja arrebitar o monte de cabelo sobre a minha testa, e vou levar à boca o copo de água que antes de mim matou a sede à gerbera oferecida pelo Spa das tias, na véspera do dia da Mulher.
Mas, inexplicavelmente, deixo-o ficar, aqui, do lado esquerdo.
Certamente, talvez aguente até amanhã – ando nisto há quantos dias? –, sou capaz de jurar que não vai demorar muito, semanas no máximo, vou tirar as conchas que me aquecem as orelhas com decibéis acima do que as autoridades comunitárias aconselham, e esqueço os máximos do petróleo, deixo de plantar dezenas de notícias sobre o preço do alumínio, peço desculpa ao meu adorado banqueiro, e agarro no pinheirinho que enquadrei entre as escadas de incêndio e o rio Tejo, saio pela porta sem mais explicações, sento-me num degrau frio da escada que ninguém sobe, que ninguém desce, e começo a cantar.
Qualquer coisa, o que me vier à cabeça – quantos gigas tem o lado direito do meu cérebro, eu acho que é do lado direito que guardo todas as músicas, mesmo em cima do olho -, às vezes, só vou lá acima para murmurar baixinho qualquer coisa pelas escadas, pego num cigarro, e vou lá acima, perguntam-me, não vais de elevador, não, não vou, não dou mais explicações, subo pelas escadas porque quero ver o Marquês e para murmurar baixinho qualquer coisa pela escada acima; só por isso é que vou lá acima.
Como é que era? Passávamos os intervalos escondidas, no breu, escondidas pelo caracol da escada, eu tinha a voz límpida, e a tua voz por vezes cheirava a mofo, tinha buracos como uma qualquer avenida de Lisboa, e a minha era constante e cristalina, nunca saía de tom, nunca hesitava, parecia tudo uma incrível magia, por vezes, espantava-me a beleza das nossas vozes juntas, tínhamos 14 anos, eu descobri a minha voz às escuras, contigo, a cada intervalo, e lá fora jogava-se à bola, e fumavam-se cigarros junto às casas-de-banho, mas nós fugíamos, não dizíamos nada a ninguém - aquilo era o segredo mais bem guardado, era melhor do que qualquer droga -, nós dávamos as mãos e íamos cantar para as escadas que já ninguém se lembrava.
Gostava de voltar àquelas escadas. Provavelmente, ao cimo do caracol, trancados a sete-chaves, ainda estão os xilofones que me faziam rir com a minha própria descoordenação motora, decerto, coberto de pó ainda está o piano desafinado, gostava mesmo de lá voltar contigo para cantarmos músicas de quando ainda não tínhamos nascido.
De certeza, eu sinto-me prestes a ceder, não vou aguentar muito mais – estou assim desde que encontrei aquela foto dentro do CD da Elis, eu de cabelo muito ralinho, o maior tesouro da minha herança é aquela foto dentro do CD da Elis, o meu pai guardava-me dentro do CD da Elis, e desde que eu encontrei aquele retrato a preto-e-branco, cabelo em desalinho, a minha boca tão bem desenhada, assim a olhar para cima, todos os sonhos enterrados na covinha da bochecha direita –, já não sei quantas vezes cantei a “Saudosa Maloca”, ou as “Folhas Secas” e o “Cais” desde que encontrei aquela foto; por ora, eu só precisava de umas escadas, umas de mármore, no penúltimo andar de um prédio alto, não preciso de audiência, enquanto uns fumavam charros, enquanto outras descobriam o corpo, eu passava as tardes numa escada a cantar.
Sei bem que a Natalina, do sétimo andar, abria a porta devagarinho, e ficava a escutar, sei muito bem. Na altura eu não ria alto, eu não dava nas vistas, eu era invisível – dava tudo para ser outra vez assim –, naquele tempo eu não queria escrever, eu não gostava de canetas, e nunca tinha batido os dedos sobre nenhum teclado, e eu tinha esta certeza, eu trazia esta certeza agarrada à garganta, que o que mais me fazia feliz era cantar.
Na escada, sem audiência, sobretudo sem audiência, eu queria ver até onde é que eu podia chegar; eu levava o meu maço de SG Ventil e passava as tardes a cantar, matava as beatas com o sapato que também ainda não era de salto alto, eu matava as horas a cantar músicas que mais ninguém conhece, a cantar dores que ainda desconhecia, mas que adivinhava estarem à porta, eu sei que sou quem sou por causa dessas músicas que foram escritas e cantadas muito antes de eu nascer, sobretudo por elas, eu sou esta pessoa, não há palavras aqui, aqui ou noutro lugar, que me convençam do contrário, e não há nada que me faça tão feliz como quando cantava naquelas escadas.
Qualquer dia, a qualquer instante, eu tinha 14 anos, eu apaixonei-me pela minha voz há mais de 14 anos, e depois fechei a boca, como se faz a um amante traidor, eu fingi que esqueci o grande amor da minha vida, não tarda, sem mais demoras – eu sinto isto desde que encontrei a foto a preto-e-branco, fechada no tesouro mais precioso da herança do meu pai -, fecho a tampa do portátil, deixo a cadeira a girar sozinha, levo o maço na mão, saio porta fora e ponho-me a cantar.
Por enquanto, enquanto isso, fico por aqui, a adivinhar quando vou beber ao engano o copo de água choca que matou a sede à gerbera oferecida pelo Spa das tias, na véspera do dia da Mulher.