O dia
Aquele foi o dia da minha vida, de toda a minha vida, disse-me, grave, narinas hirtas e cana do nariz perfeitamente delineada.
Parecia, aliás, que se preparava para debitar um discurso de Estado, com honras de abertura do telejornal das oito: inspirou fundo para ganhar fôlego ou coragem, só que nos olhos azulões já se instalara confortavelmente uma fonte de comoção, os olhos prestes a escorregarem num dilúvio, e tudo isto invertido num pedaço de espelho - olhos molhados, nariz delineado, e pose grave reflectidos no grande retrovisor do táxi, e eu sem conseguir deixar de reparar no desodorizante automóvel de pinheiro, a bambolear numa dança absurda que em nada se adequava ao momento de grande revelação que se seguiria dentro de instantes, ou talvez sim, mas tomara que eu não me tivesse demorado tanto no pequeno pinheiro de cartão embebido em aroma baunilhado, porque, a meu ver, não acrescentou nada à história.
Há um dia, menina, muito provavelmente ainda não teve o dia decisivo de toda a sua vida - talvez esteja enganado, penso, sem abrir a boca, porque o palco agora não é meu -, mas há um dia em que as peças todas do puzzle emaranhado que se foi espalhando por todo o lado - sem esperança de se encontrar a peça que o gato levou para brincar, que o bebé meteu na boca aflito dos dentes, o conjunto todo de peças que aparentemente não encaixavam umas nas outras -, há um dia em que tudo se encadeia, pim, pim, pim, zás e, nesse momento - digo-lhe isto com a mesma certeza de que é impossível manter os olhos abertos quando se espirra -, a mandíbula descai um bocadinho e o olhar eleva-se para o céu, e por breves momentos, penso que nem um segundo chega a passar, rebobinamos tudo para trás, todas as pequenas coisas vêm ao cimo como bolinhas de esferovite numa taça de água, e damos por nós, maquinais, magistrais a arrumar tudo no sítio certo para que possamos seguir em frente, e percebemos tudo, o porquê de tudo, por exemplo, eu percebo já porque é que escolhi há instantes cortar para a Columbano Bordalo Pinheiro, em vez de ter seguido para a Estrada de Benfica.
E tudo isto começou porque o taxista estranhou o meu pedido.
Inclinou os olhos para a direita, espreitou o comprido retrovisor com espelho olho de peixe colado a um canto, para ajudar aos ângulos mortos - mas quem raio é esta gaja?
Saio de um hotel de cinco estrelas da cidade, e peço para me deixar ao Intendente. Mas quem raio é esta gaja?
Explico-lhe que a minha vida é mesmo assim, repleta de donos do mundo e de putas esqueléticas.
Que fui eu que escolhi ser assim, e que todos me vão ensinando, pela estrada fora, coisas preciosas, se bem que as putas me dêem melhores histórias, que pelas putas eu vejo melhor, entendo tudo um pouco melhor. Os donos do mundo são, no fundo, criaturas bem mais tristes que as putas, vejo-os bem, topo-os bem, e talvez seja por isso, talvez seja essa a única razão porque os donos do mundo me importam. No fundo, são tão vítimas do destino, das circunstâncias, tal e qual como as escanzeladas prostitutas do Intendente. Têm mais uns metros quadrados para foder, em lençóis macios e camas que não rangem, cobrem-se com tecidos infinitamente mais quentes e mais frescos consoante as estações do ano, mas apanham a mesma chuva que todos nós, peidam-se tanto quanto todos nós - as trinta e muitas vezes ao dia que o canal de cabo me garante que todos os humanóides descarregam a cada 24 horas -, mas ao fim do dia, acredito que se sintam bem mais vazios que as putas do Intendente. É mesmo por isso que eu amo os donos do mundo, que os estimo como ninguém, e eles gostam tanto de mim como as putas que vou alimentando aos Anjos.
Quem raio é esta gaja?
Uma pessoa também tem os seus dias maus, diz.
Das putas e dos hotéis de cinco estrelas para dias maus e para os dias que mudam uma vida.
O dia da minha vida começou num dia mau, apanho em Entrecampos um mal-encarado que nem bom dia me diz, e quase não se dá ao trabalho de descolar os lábios para me dizer para o largar no Rato. E eu vou, e como estou num dia mau também não quero conversas, mas faço o caminho todo a pensar noutras paragens, não vejo a estrada, vejo a cara do meu menino, vejo a cara da minha mulher a chorar, vejo a minha casa, estreita, escura, num beco de Alfama, ao lusco-fusco das seis e meia da manhã quando bato a porta atrás de mim para pegar num dia de mais 14 horas que haveria de ser o dia da minha vida, mas eu ainda não sei isso, vejo a roupa da vizinha do primeiro andar a secar no estendal, quase a tocar na minha cabeça e consigo cheirar ainda o aroma do Omo nas minhas narinas, em vez da colónia do mal-encarado que transporto no banco de trás, mas não vejo os outros carros, o traço contínuo, definitivamente não vejo o sinal vermelho que passei por estar nesta cegueira repleta de imagens.
E o mal-encarado, então, abre a boca pela primeira vez. E sai-lhe lá de dentro uma voz que eu nem podia supor que tivesse, entrou mudo e estava com esperança que saísse calado, mas não, um homem está num dia mau e é verdade que passa um sinal vermelho, mas não devia levar com aquele estrilho: ele gritou-me, gritou-me, perdigotos a fazerem a chamada para o salto em altura e em comprimento também, chamou-me tudo o que possa imaginar.
E eu calado. Eu gosto de falar mas não em dias maus; eu calado a aguentar tudo, a tentar ver a estrada e não a taberna ainda vazia logo pela manhã, eu ainda com o gosto na boca do garoto que tomei pela madrugada e que é a única coisa que me forra o estômago, eu a fazer o maior esforço da minha vida para o deixar no Rato e prosseguir com a minha vida e continuar a enfrentar mais um dia mau.
Paro o carro no sítio que me ordenara entre dentes, quando quisera o destino que apanhasse o mal-encarado em Entrecampos, desligo o taxímetro e digo-lhe: não é nada, e as minhas desculpas pelo sinal vermelho.
E volta a provar que tem um vozeirão, ó homem não pode ser, eu tenho que pagar, e eu calado - já lhe disse que não falo muito quando estou num dia mau? -, sabe, eu não estava dentro deste carro, eu estava ao lado do meu menino no quarto estreito que não é mais do que um corredor sem janela, eu estava aos pés da cama do meu menino com a minha mulher a chorar baixinho.
Naquele instante, começou o dia da minha vida, não sei o que me deu, comecei a chorar como uma criança, abracei-me ao volante e chorei, chorei ao ritmo dos quatro-piscas, para que o mal-encarado parasse de falar, para que se calasse de vez e saísse do carro para me deixasse seguir o meu caminho. Sabe que deixei de ter vergonha de chorar, uma treta que os homens não choram, se eu não tivesse chorado, o meu filho estaria morto, eu chorei e o puzzle começou todo a encaixar-se.
Passo o dia todo a olhar para a frente e raramente vejo quem me entra para o banco de trás. Por vezes, sinto-me um cavalo, um burro de carga é mais o que eu sou, porque não há nobreza na praça, mas para o caso não interessa essa parte, o que quero dizer-lhe é que nem vejo quem carrego e, de há uns anos para cá, para não dar em doido, passei a reparar nas vozes, concentro-me nelas em vez de me fixar na cor dos cabelos, no feitio das sobrancelhas ou na cor dos olhos. E deixe-me que lhe diga que há pessoas com vozes horrorosas, a menina tem uma bonita voz, um bocadinho sibilante, mas não deixa de ser uma bonita voz. E é incrível como a voz daquele homem foi mudando de Entrecampos até ao Rato: um murmúrio, primeiro, entre dentes, depois da minha infracção, a boca toda aberta expondo, suponho, dois ou três dentes chumbados e a ausência de um molar e, no fim, já era a voz de um salvador.
Guardou então a carteira, percebeu que não conseguiria pagar-me a corrida, pediu-me desculpas, se o podia ajudar. Não, não podia, ninguém podia ajudar, mas já que me tinha esfrangalhado a chorar à frente de um desconhecido mal-encarado, mais valia contar a história toda.
O meu menino está a morrer, está a morrer e não podemos fazer nada, mandaram-nos para casa, sem esperança, um tumor na cabeça, temos seis meses, o meu menino tem seis meses de dor pela frente.
Escondi os olhos à frente das palmas molhadas das minhas mãos, deu-me para a vergonha, e a certa altura e deixei escorregar a mão direita para a manete das mudanças porque me apetecia fugir dali para fora. Lá de trás, o mal-encarado esticou a mão e abanou um rectângulo de cartão. Passe no meu consultório daqui a duas horas. Traga o seu menino e a sua mulher.
Li e reli aquele pedaço de papel. Director de Oncologia.
Toda a gente tem um dia.
O meu foi aquele. Mas não pense que foi assim tão fácil e que a história acaba aqui. Duas horas depois lá estava eu, o meu menino embrulhado num cobertor, a minha mulher com a cara deformada pelo desgosto. Mas ainda conseguíamos sorrir, à frente do meu menino, a gente tentava sorrir. E connosco levámos exames, o processo, ressonâncias e tac's, levámos tudo ao mal-encarado que me berrara duas horas antes, algures entre o Saldanha e o Marquês, pior do que um agente da BT.
Toda a gente tem um dia.
Este foi o dia em que tudo poderia ter mudado. Em que tudo mudou. Mas podia ter mudado para um lado ou para o outro. Há um dia, só há um dia destes em toda a nossa vida. Talvez esteja para breve o seu.
O mal-encarado voltou a falar entre-dentes e eu antecipei o pior. Confirmou a sentença de morte do meu menino.
Eu ando sempre com uma pistola no carro. Aqui do meu lado esquerdo, para não estar tão à mão, para não ser tão fácil puxar do gatilho. Eu saí do consultório, era ali na 5 de Outubro, o chão estava pintalgado de lilás, os jacarandás carregados de florinhas, e o vento a arrancá-las provocando uma chuva de pingos grossos lilases, e eu então uivei bem alto, eu uivei e a minha mulher chorava em silêncio com o meu menino ao colo.
Abri a porta do carro e corri ao lado esquerdo do carro para acabar com tudo mesmo ali, rápido e indolor, mas a pistola não estava lá, eu não sei como é que a pistola não estava lá, e nesse instante recebo um telefonema do mal-encarado, e eu ainda estava a uivar agora por raiva de a pistola não estar no sítio certo - guardara-a esse dia no guarda-luvas -, e ele pede-me para estar pela manhã no Santa Maria. Para me preparar para a maior provação da minha vida.
O meu menino vive, curou-se, está totalmente curado.
E aquele foi o dia da minha vida. De toda a minha vida.
Desligou o taxímetro porque chegámos ao Intendente.
Deixe estar, não é nada, não a posso deixar pagar esta corrida.