Rua dos Anjos
Eu sou uma boa pessoa.
Não tenho medo, nem vergonha de o dizer. Porque razão haveria de ter – não me vou transformar em pó, nem a terra há-de tremer se eu admitir aqui, onde apenas me visita quem procura por uma criança que nasceu com as mãos coladas, que sou uma boa pessoa, escrito mesmo assim, desta forma precisa, muito diferente de escrever até sou uma boa pessoa, sem falsas modéstias, deixando cair o até, que não estaria lá a fazer nada, com toda a presunção, sem nenhuma hesitação, de peito aberto e olhos fixados, algures entre a linha do horizonte e o início do céu - eu sou uma boa pessoa.
Não sei de que me vale isto.
De que me vale ser uma boa pessoa, de agarrar na mão fria da velha que vê no António as bochechas do seu menino que já morreu. Lembro-me de estar no Parque de Viseu, ainda sem saber quase nada, a não saber nada a não ser a arte de dar às pernas com toda a força, inclinando ao mesmo tempo o corpo para trás e para a frente, e o segredo de fechar os olhos e sentir a música do vento na cara com a trança a voar para os lados quando o baloiço quase chegava ao céu, lembro-me da minha cabeça no colo da minha mãe, saia crepe de seda branca, ela maquinal a fazer cortinas de crochet, e eu horas nisto, a examinar as mãos da minha mãe, e depois a olhar para as minhas, que não conheciam mais do que os lápis caran d’ache da minha avó, quase hipnotizada pelo movimento da mão direita, do fio que saía do saco de plástico e se transformava em renda, e eu a dizer-lhe, junto ao lago, mamã, as minhas mãos não têm estrelas como as tuas, e as estrelas eram o craquilhado junto dos nós dos dedos, e eu pego na mão gelada da velha, agora molhada de lágrimas, e vejo que ela já não tem estrelas nas mãos.
Perco tempo, demoro-me, oiço todos, a chaga da perna do homem sujo que me guarda todos os dias o melhor lugar da rua, porque a senhora fala com a gente como se fôssemos gente e não bichos. E percorro as memórias de tanta gente que nem sei o nome, analiso fotos a preto-e-branco, de papel já amarelecido, cantos dobrados, memórias guardadas em sacos de plástico, aproprio-me de tudo o que posso, sou um saco sem fim, uma manta de retalhos de um pequeno resumo da vida dos outros.
Apenas esta certeza, que de nada me vale, que se, por um momento, o mundo fosse governado pelas empregadas de limpeza curvadas e pelos porteiros anafados, pelas putas esqueléticas e arrumadores imundos, pelas caixas de supermercado demasiado maquilhadas e pelas tendinites das empregadas de mesa, pelas velhas de luto, com as saias a cheirarem discretamente a urina, se o mundo fosse do elo mais fraco, eu seria grande, intocável.
Eu sou uma boa pessoa e temo a Deus, imagino a sua ira em jeito de maremoto, nem tanto quando falho, acima de tudo quando nem tento.
A minha puta favorita chama-me um anjo. A minha puta favorita chama-me um anjo nos Anjos e isso tem que pesar.
Eu vivo nos Anjos. Vivo há um ano nos Anjos, na avenida do Almirante que deu um tiro nos cornos ao pensar que falhara, e eu não o censuro, penso que faria o mesmo, não para ganhar nome de rua maldita, mas faria o mesmo ao pensar que falhara em tudo, por isso nem tento, melhor assim, mas a ira de Deus sempre aqui ao meu lado, em crescendo, e eu digo a mim própria, eu sou uma boa pessoa, eu pelo menos tento ser uma boa pessoa, isso tem que contar, e fico quietinha no meu canto, que ninguém me bula, porque eu trago em mim os filhos das mães que já morreram, as dores ciáticas, eu trago em mim a fome da minha puta favorita que me chama um anjo apenas porque lhe dou comida de quando em quando, sempre que a encontro – menina, obrigada, muito obrigada, mas de certeza que não lhe vai fazer falta para o bebé; e ela é tão magra, tão magra e o António sorri para um rosto cadavérico que toda a avenida maldita ignora, e ela diz-me que o dia se iluminou porque somos os dois anjos estacionados na Rua dos Anjos.
E depois disto, demoro outra meia-hora a chegar a casa, porque me demoro, paro, escuto e olho, não porque venha um comboio a caminho mas porque há demasiadas almas que me escolhem, e me detêm, e eu deixo-me ficar, entretanto, o senhor Hussein há-de rezar a Alá por todos nós, há-de oeferecer-me um quilo de borrego que eu não sei nem vou cozinhar, mas sou tão boa pessoa, falo com doutores e com mendigos, falo com os velhos e as crianças vêem ter todas comigo, falo com todos os credos, com todas as raças, domino uma qualquer linguagem universal, ou isso ou tenho um tê na testa, e sou tão engraçada, falo de uma forma tão diferente das outras pessoas, mas chego a casa e desligo o telefone ou deixo-o a tocar em surdina, passo o dia todo em silêncio sem pensar nas questões maiores da vida, não posso, não consigo, respiro, como e bebo, dou de comer, dou de beber e basta; mas mesmo assim, assombrada por todos os demónios, enterneço-me com a nossa determinação em vivermos nos Anjos, como se isso nos bastasse, como se ali soubéssemos, de certeza, que nenhum mal nos pode acontecer.