Madrugada
Provavelmente nem te lembras disto; foi há muito tempo, pode nem ter significado nada para ti.
Aquela miúda eu quase já não sei quem ela era, lembro-me dela com um amor infinito, com o mesmo carinho de uma mãe que murmura uma canção de embalar a um filho acabado de nascer, porque aquela sou eu antes de nascer, aquela sou eu antes de começar verdadeiramente a viver, imediatamente antes de tudo de bom e de tudo de mal que se seguiu.
Tu foste, vistas bem as coisas e a esta distância, o primeiro sinal que algo de muito importante estava para acontecer.
Chegaste-me como a justa indemnização que o destino dá de esmola a todos os desventurados. Bem sei que eu tinha a porta escancarada para que quem quisesse entrar entrasse, para que quem quisesse abancar abancasse, é verdade. Eu já não sei bem como eram todos os pormenores da minha vida naquele tempo, podia ler estes caracteres todos que aqui estão, enterrados, ao abandono, ler concentrada como quem estuda a lição para o teste, tentar vestir-lhe de novo a pele, senti-la na ponta dos dedos, mas não releio nunca o que escrevo, e é cobardia pura: tenho medo de me assustar, de não me reconhecer em toda ou qualquer palavra que juntei caoticamente num quebra-cabeças sem nexo.
Mas lembro-me bem desse despudor com que me expunha, o despojamento, toda a minha fragilidade, as minhas fraquezas, os meus defeitos, tudo à mostra, uma sensibilidade brutal, e sei também como era bonita de se ver aquela urgência electrizante que me fazia escrever sem parar até doerem as mãos, até ter o mundo todo aos meus pés. Seduzi sem pensar, joguei todas as minhas cartas, às brancas, porque não sei fazer bluff. Felizmente saiu-me a taluda, tive sorte.
E tu vieste de mansinho, mas de surpresa, foi assim que apareceste, se é que isso faz sentido e se me percebes, porque ninguém vem devagarinho causando surpresa ou espanto. Mas tu foi assim que chegaste. Em vez de me desarrumares ainda mais a casa, que já estava em pantanas, tu entraste em pezinhos de lã, sentaste-te na minha sala, enquadrado pela solitária parede laranja onde não chegava a luz da pequenina janela da assoalhada do lado, depois deste-me o colo que eu precisava, quiseste saber quem realmente eu era, à tua maneira tão peculiar, tu foste o único que tentou verdadeiramente que eu parasse de me boicotar.
É assim que eu me lembro sempre de ti: o homem que me pediu para eu parar com isso. Nunca ninguém o tinha feito até então, acho que ninguém mais o fez, sequer aqueles que me amam, sabem bem que é um caso perdido, já não se insiste, nem vale a pena o desconforto, é o que é. Mas tu tiveste a coragem de o pedir, de me fazer ver, pela primeira vez, como eu o fazia tão deliberadamente, escavava grandes covas ao meu redor, depois cobria-as muito direitinhas e dedicava os meus dias a cair em buracos. Os meus buracos.
Não saberás nunca a importância daquele tempo que me dedicaste, do amor que subtilmente deixaste transbordar à distância de uma secretária partilhada e de uma janela, onde queimámos cigarros proibidos sem fim, que fizeram disparar os alarmes e os ânimos de quem estava ao nosso lado, em piloto automático, a ver a vida a passar.
Rebobino tudo para trás. A vida passou rápido demais, parece-me a esta distância que foi há muito tempo, mas a alta velocidade. Já devia ter escrito há muito mais tempo. Agora provavelmente nem te lembras.
Os contornos podem até já estar esbatidos, desbotados, mas há coisas que não se esquecem, não se esquecem nunca, levamo-los connosco para todo o lado, como bagagem de uma viagem iminente que pode chegar a qualquer momento; é o que nos resta dos dias estapafúrdios que vivemos a achar que eram os mais importantes da nossa vida.
Eu lembro-me assim, diz lá que não era assim: eu mostrava muito as mamas, em decotes profundos, chagas abertas no coração, e ninguém reparava mais do que o contorno do seio, nada mau, vá, podia até ser pior.
E à noite eu não dormia porque também levava tudo demasiado a peito. Sempre o peito. A metáfora perfeita, vejo agora, tarde demais, certo é que eu serei sempre a tipa que andava com as mamas de fora (olhei para baixo, de certeza apareceu o duplo queixo que odeio, e elas aqui estão, meio à mostra, esplendorosas e a servir pela terceira vez na vida o seu propósito e o destino de todos os mamíferos).
Naquela noite eu dormia, era raro, mas eu dormia.
O quarto era espartano para o frenesim de coisinhas feéricas que andam sempre atreladas a mim: uma almofada a boiar em toda uma enorme superfície de colchão, um cadeirão, junto à janela, onde a minha carapaça arejava um pouco todos os dias, meia dúzia de vasos de orquídeas hibernadas à espera da chegada da primavera, estáticas e desoladoras em cima de uma cómoda nórdica de três gavetas.
Naquele dia eu dormia, caira na cama, o corpo ali desmaiado, entre a perpendicular e a diagonal, em cima do colchão e da coberta, adormecera bem antes do carro do lixo ter passado com a sua fanfarra pela rua estreitinha abaixo, pelas 4 da manhã (era à hora em que eu forçava o corpo a descansar).
O telefone tocou, o saudoso alerta da Nokia que há muito tempo também se deixou de escutar por aí. Era uma mensagem - a luz do ecrã esverdeada e a seco uma pergunta: ‘Estás acordada?’
Eu estava a dormir, menti, é fácil mentir a escrever: ‘Estou. Está tudo bem?’
Vinhas da ruela onde eu queria ir comer um bife e namoriscar um bocadinho para dar cor à infinita tristeza com que pintava tudo o que me rodeava. Onde não podia ir porque era mãe, agora eu era mãe, ainda custava a acreditar, e estava sozinha, vivia sozinha, numa casa centenária, com todas as dores do mundo como companhia, e com uma bebé a dormir descansada, protegida e alheada a tudo mais.
Chegaste em três tempos à minha porta, devias já vir a caminho quando arriscaste enviar uma mensagem fora de horas, eu recebi-te lá do cimo, da escadaria inclinada pelas fundações afundadas do prédio, o reboco ocre da parede a desfazer-se, certamente apareci às escuras mas de mamas meio à mostra, nada de mais, o de sempre, desgrenhada, e com os olhos inchados de quem chorava sempre um bocadinho todos os dias e todas as noites em treino de alta competição, a trabalhar para o ouro e para a glória de um fado triste.
Ralaste comigo porque eu não tinha whisky em casa (valerá a pena confessar-te que desde então tenho Famous Grouse na prateleira na esperança que um dia o telefone toque de madrugada?). Garantiste-me que não vinhas para dormir comigo e, ao longo da madrugada, sempre que repetias isso, como um juramento solene, bebíamos Martini em shot, para afogar o embaraço que isso nos provocava.
Era óbvio que não vinhas para dormir comigo, ainda bem que isso estava claro. Mas porque te lembraras de mim no meio de uma madrugada qualquer?
Sentámo-nos desconfortáveis com os antebraços pousados na mesa de vidro - eu nunca me sentava ali, mas a mesa era fria e as cadeiras duras; nada ali poderia descambar, até porque tu não vinhas para dormir comigo. E por ali ficámos. Sabe-se lá quanto tempo.
Foste o meu confessor, provavelmente nem vinhas para isso, mas ouviste-me as criancisses, os dramas ridículos, desproporcionados, e no fim, solene, pediste-me para eu me deixar de boicotar e ser a melhor jornalista que pudesse ser, e quase que me ordenaste para eu me afastar do epicentro de todos os meus problemas: a minha disfuncional família, o pai artista falhado, o avô cientista reformado, a tia demente e sua tropa fandanga.
Eles ainda estavam todos vivos, desterrados numa trincheira do outro lado do Tejo, e eu a sofrer pela sua estúpida validação, e tu com aquela clarividência furibunda e devastadora. Tu foste um guia de sobrevivência entre Martinis fora de prazo ao raiar de uma aurora fria.
Depois levantaste-te, míseros dois passos para a esquerda, entraste na assoalhada ao lado daquela saleta onde pernoitávamos quase às escuras. Ali dormia a minha filha, um bebé, como um querubim gorducho e loiro, queda num quarto rosa, muito piroso, com uma faixa de gatinhos a dançar e a tocar bandolim ao longo de toda a parede, sob um dossel anil com libelinhas iluminadas até ao tecto.
Sentaste-te aos pés da cama, afagaste-lhe a cabeça. Ficaste ali em silêncio a olhar para ela. E eu ao teu lado, sem perceber porque te deixara ali entrar, quem raio eras tu para estar ali àquela hora, a querer salvar-me e a pôr-me na linha, e afagares os cabelos loiros da minha filha, quem raio eras tu, o que fazias ali a invadir-me e a ler-me como se eu fosse banal, igual a toda a gente?
Disseste-me, a sussurrar, que a ela era a coisa mais importante de todas. Disseste-me que eu tinha que cuidar bem dela.
Tu deste-me esta lição, uma das maiores lições que levo desta vida.
Trago este momento gravado, a tua sabedoria, o teu amor, tão mais importante porque eu sei que tu não és destas coisas, que partilhas comigo a incapacidade de dizer, de verbalizar: amo-te, és tão importante para mim, tomo as tuas dores como minhas, és parte de mim, lamento tanto, tudo o que te aconteceu, quero dar-te a mão, para a meteres no fogo se quiseres e, se for preciso, leva-me até o braço inteiro: ele é teu para o que for, eu estou aqui todas as madrugadas em que não dormes, eu vou ter contigo onde tu estiveres, e se tu fores ao fundo eu vou lá buscar-te, eu sirvo mais do que para fazer-te do IRS, eu declaro-te os impostos, mas posso perfeitamente declarar guerra a quem quer que seja, a Deus ou ao Diabo, mas é assim, recatada, e meio cobarde, escondida atrás de um ecrã, que eu venho aqui dizer tudo isto ao mundo.
Todas as noites há um rodopio de crianças em pijama lá em casa, e eu lembro-me daquela madrugada em que tu me disseste que ela era a coisa mais importante. Que, acima de tudo, tinha de a proteger de tudo o que não me tinham protegido a mim.
És um bom pai. Cuidas bem dos teus.
Obrigada por teres cuidado de mim.
Lembras-te desta madrugada?