Maria do Céu mora nas alturas.
Isto dos nomes tem que se lhe diga – Maria do Céu não poderia morar num rés-do-chão ou numa cave. É certo que Maria do Céu não mora no Sheraton, mas está perto dele, pelo menos. E também é verdade que Maria do céu tem mais dois pisos por cima dela e da placa de betão que é o seu tecto, mas, para efeitos da presente narrativa, decreta-se aqui que um quarto andar já não é mau, e que, com um esforço de imaginação considerável, se pode concordar com a narradora e assumir que quatro pisos já são ligeiramente próximos do céu, pelo menos se alguém se der ao trabalho de esticar um braço à janela para tentar apanhar alguma das dengosas nuvens que alcatifam o azul do horizonte.
Maria do Céu faz tanto jus ao seu nome que tem no seu acento de nascimento como uma Anabela que, em tempos, eu via todos os dias, de madrugada, com o passe social L123 na mão, na paragem do 27 na Avenida de Roma – a Anabela era feia como uma osga, e a Maria do Céu, bem, não emana qualquer imagem celestial, aliás, e para provar que eu não sou tão boa pessoa como muitos me julgam, até há umas semanas, eu não sabia que Maria do Céu tinha essa graça, e durante uma década referi-me a ela como a olharapa.
Deus é o melhor argumentista e a realidade bate a ficção. Depois, há uns desgraçados que têm um dom, que sugam realidade pelos poros, ou pela palhinha, que depois a digerem e vomitam algures entre o olho esquerdo e a moleirinha e, com mais uns floreados e umas destrezas técnicas na manga, é a isso se chama ficção. Estou certa que é por causa disso, e porque sei o nome de muitas árvores – há pouco, o Cerejo queria um botânico para descobrir o nome de uma espécie, para um artigo, e eu disse, sem pestanejar, Ficus Macrophylla –, que hei-de ser uma grande escritora.
Maria do Céu passou o Natal no seu bunker, à altura de quarto piso.
O presidente do conselho de admiração (esta é do Goiaoia e é genial) quis demonstrar que era um humanista quando se vangloriou de pulmões bem abertos e peito inchado que não despedira Maria do Céu. É graças a ele que eu sei que Maria do Céu tem esse nome no bilhete de identidade, fico-lhe agradecida, porque, até então, era a olharapa que tinha um Peugeot vermelho, e que fazia lá sabe-se bem o quê neste edifício que não é carne nem é peixe, não é novo nem é velho, e não é alto nem é baixo.
É claro que a sensibilidade social do presidente do conselho de admiração se traduz em números. Na realidade, e tendo em conta a esperança média de vida de Maria do Céu, e o seu tom esverdeado da pele, não faltará muito para que ela vá para onde o seu nome a manda desde o seu primeiro grito. Feitas as contas, 1,5 salários de indemnização sairiam mais caro à empresa do que deixá-la estar quietinha, mas, foi uma boa tentativa, grande tentativa mesmo, essa, de tentar convencer os tontinhos de que os gestores têm coração.
Certo é que Maria do Céu é uma funcionária exemplar: trabalha 365 e, por vezes, 366 dias por ano. Antigamente havia uns acetatos que se chamavam fotolitos, e era Maria do Céu que os entregava em Alcântara no seu Peugeot vermelho. A banda larga matou os fotolitos, da mesma forma que a tv matou as estrelas de rádio, e a Internet anda deprimida porque ainda não matou os jornais e os livros, mas ela que se acalme e dê tempo ao tempo que ainda lá chega com mais um esforcinho.
Mas a banda larga não matou Maria do Céu. Agora, a senhora, que leva 36 anos em cada perna arqueada, controla a impressão do pasquim, nuns barracões da Mirandela, noite a dentro, inundando as narinas de um cheirete de tinta lançada sobre papel de má qualidade. Depois, ainda os galos preguiçam aninhados com as galinhas, já a Maria do Céu ata a jornalada toda, para que quando os preguiçosos dos escribas chegam, perto da hora do almoço, não lhes falte a leitura no Lacinho ou no Fax.
Maria do Céu tem um bunker no quarto piso. E, dentro desse cubículo, há quadros pregados nas paredes, há vasos com plantas, jarras com flores, há um iMac dos velhotes, porque Maria do Céu se recusa a converter aos PC’s, há um divã que se faz cama de solteiro num instante, prateleiras com livros e bibelots, uma televisão com um naperon de renda de nylon comprada na loja chinesa da Tomás Ribeiro, é lá que ela vive, a Maria do Céu, sozinha, foi lá que ela passou a Consoada, em paz, porque não será despedida em 2007 porque há gestores com coração de manteiga, é lá, de certeza, que o seu grande amigo, o estafeta engatatão, a vai encontrar uma bela manhã, inanimada.
Este é um post sobre os trágicos e sobre as coisas que continuo a testemunhar num metro quadrado ao meu lado, como o homem de aspecto duvidoso que, às 20h30 do dia 24 de Dezembro, em frente ao portão do Colégio Militar, se aproximou do Idea, levantou o pára-brisas, e deixou um folheto mal amanhado de venda de cosmética Oriflame em esquema de pirâmide (podia ganhar 250 euros se arranjasse dez assessores para a Oriflame). Ou da alma que, nesse mesmo dia, e neste mesmo blogue onde pairam agora, pelo menos, um par de olhos, enfiado no edifício da Direcção Nacional da PSP de Lisboa, esperava encontrar raparigas feias fotografadas pelos namorados.