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quinta-feira, fevereiro 25, 2010

O fiscalista (Capítulo I)

Com os olhos esbugalhados, parados na manete das mudanças, quem sabe se tentando hipnotizá-la, o fiscalista, espalmado de perfil como um egípcio, pele enrugada e borrifada de manchas castanhas, longos pelos cinzentos escuros encaracolados, espetados em riste para fora do nariz e das orelhas, declarou não gostar de pessoas que olham para o chão enquanto andam.

Porque é que o fiscalista estava dentro do carro, quente da viagem, no lugar do condutor, olhos presos na manete das mudanças, não vem ao caso. E o que esta declaração de interesses tinha a ver com a entrega do IRS do defunto, com a habilitação de herdeiros, eu não sei, não consigo explicar.

Aliás, deixei de tentar arranjar explicações, cansei-me, estou mesmo muito cansada. Perdi noites a fio a tentar tecê-las por entre metros de renda, agulha dois presa entre o polegar e o indicador, aprendi a fazer renda sozinha aos 30 anos, num momento de maior aflição, e compreendi nessa altura porque passa a minha mãe todas as noites a tricotar explicações, a exigir à agulha e à lã que façam aquilo que têm a fazer, a ordenar o caos de todas as linhas que se emaranham aos nossos pés ao longo da vida, um labirinto diabólico muitas vezes sem saída.

A minha mãe que quando eu era pequenina me pedia para eu segurar as meadas de lã com os pulsos, e que gingasse à vontade as minhas longas tranças para que da meada se fizesse novelo, a minha mãe que sempre me chamou de lolita, que sempre disse à boca cheia que eu tinha nascido com o cu virado para a lua, a minha mãe que sofre por tudo o que já me aconteceu, quisera ela que Deus não tivesse tão grandes planos para mim, que a vida passasse serena como uma meada de lã sem nós cegos.

E eu acreditei que uma torrente de pontos altos, pontos altos duplos, correntinhas - e para fechar um ponto baixíssimo -, achei mesmo que o meu pulso haveria de puxar tantas laçadas, tecer tantos pontos altos, pontos altos duplos, correntinhas, fechando tudo com ponto baixíssimo - pega-se na agulha como se pega numa caneta e se começa a escrever, fazer renda é apenas outra forma de ordenar o mundo, de o pôr a rodar direitinho sobre o seu eixo -, eu à espera de uma epifania, de uma reconstrução perfeita de todos os eventos que me trouxeram até aqui, a este momento preciso, e nada: nenhuma explicação a sair-me dos dedos, o pulso dorido, os dedos em sangue e nada, só mesmo renda ao meu colo.

Permaneci nas viagens de metro, paralisada, a fixar o meu reflexo e o reflexo dos outros no vidro da carruagem, à espera que o mundo, visto ao contrário dentro de um túnel escuro, me devolvesse todas as respostas aos porquês que esvoaçam esganiçados por cima de mim. Mas em vão.

Tudo em vão.

Não há livro nenhum da biblioteca que herdei que me possa ajudar, de nada me valem os arquivos poeirentos, as gavetas invioladas há mais décadas do que aquelas que eu levo.

Eu entrei na casa que culpo por tudo o que aconteceu, passei o sensor pendurado no porta-chaves e desarmei o alarme, mas todas as sinetas tocavam estridentes dentro de mim, diziam-me para fugir dali, rápido e a bom passo, para nunca mais olhar para trás. Esquecer a mata dos medos, esquecer que ela existe, nunca mais trilhar a estrada de terra batida, apagar todas as memórias, o ford cortina, o citroen visa, esquecer os duelos de espada em noites de luar, as lanternas de pirilampos, os nenúfares e as carpas coloridas, a ponte e o lago, as azedas, os malmequeres azuis e as roseiras bravas, esquecer a Santa que falhou em proteger-nos a todos.

Uma casa são só paredes feitas de tijolos, cimento, estuque, mas ela disse-me bem alto para eu ouvir: vai-te embora e não voltes. Ela disse-me isso em tom amigo, mas eu entrei ali, eu tinha que entrar ali, na casa onde ninguém foi feliz, e disse-lhe: tu agora és minha e, por isso, eu estou à espera que me contes tudo o que se passou, rebobina e põe no play, não é um pedido, é uma ordem, é o mínimo que me podes fazer. E, sem respostas - eu que até sei tão bem falar com as casas -, passei ao ataque, e cheia de medo, mas decidida, abri todas as portas, escancarei todas as janelas, remexi todas as gavetas; eu pensei, eu acreditei que a casa me daria todas as respostas se eu perdesse um pouco do meu tempo a ouvir o que ela tinha para nos dizer.

Mas ela respondeu com silêncio, ela leva 41 anos de silêncio e teve que assistir, muda, a tudo o que aconteceu, nunca poderia contar-me o segredo, não sabe como, e eu não sei o que me passou pela cabeça de pensar que a casa me poderia ajudar, que seria a única a poder ajudar-me.

Tudo permanecerá, para sempre, em silêncio.

Engulo espinhos, mastigo pedras que me ajudem a aceitar resignada o que se passou, não sei o que se passou, não consigo desemaranhar esta meada, tudo o que se passou: o mundo gira e gira e não se cansa de rodopiar apenas porque sim, e no meio de tantas voltas sem tino, há demasiadas coisas a caírem e a estilhaçarem-se no chão, no mesmo chão para o qual as pessoas de bem não devem olhar enquanto andam, porque o fiscalista não gosta.

Mas quer ele goste, quer não, eu ando de olhos cravados no chão porque, por vezes, ele falta-me por debaixo dos pés, porque há tapetes invisíveis que alguém puxa às escondidas para eu cair sem amparo. Há alguém que gosta de me ver ferida de morte, e há outro alguém que sabe que eu me hei-de levantar outra vez, e outra vez. Por vezes, há um campo minado no chão e eu sigo descalça, olhos cravados no chão, à espera que as pedras me ensinem por onde devo ir.

As folhas são verdes porque sim, e começam a pespontar no tímido anúncio da primavera mesmo que por dentro corra um dilúvio de lágrimas que não consegui chorar, e cresça um pântano de dúvidas a caminho dos meus pés, que tornam o meu andar mais pesado.

As unhas dos meus pés encravam porque sim, nasceram assim e hão-de crescer ainda um pouco no meu caixão, porque não aprenderam a fazê-lo de outra forma. Ranjo os dentes porque sim, porque a ponta da língua descansa no cantinho do incisivo lateral direito desde há muito tempo e diverte-se a fazer um pequeno estalido que me alivia as dores que sobem até à porta da minha boca.

As orquídeas não floriram este ano. O primeiro sinal que tudo seria como foi, porque sim, só porque sim, sem nenhuma explicação, sem nenhum aviso, sem que ninguém o pudesse evitar.

No último mês, o mundo como eu sempre o conhecera deixou de existir. Porque sim.

Ao terceiro dia do ano, a casa onde ninguém foi feliz acordou pela última vez.

Porque sim.

terça-feira, janeiro 29, 2008

O portageiro feliz

A Teresa diz que não conhece mais ninguém assim, que se dê ao trabalho, para quê, que bem há-de vir ao mundo, nenhum, nenhum mesmo, muitas vezes é assim é tão raro, só que há mais gente como eu, a Magui vê trevos de quadro folhas do parapeito da janela do seu segundo andar, e eu vejo histórias que me atropelam porque precisam de ser contadas, cada um com o seu fardo, cada qual com a sua sina.

Mas se nada se ganha, também não se perde coisa alguma, não custa muito, um minuto basta para que o mundo dê um soluço (e geralmente alguém tropeça nesse instante). E eu aprendi, eu sei lá bem com quem é que aprendi isto, que devo parar, para recuperar o fôlego, para esticar as pernas e imediatamente a seguir ouvir o estalido do meu joelho doente, devo impor-me uma pausa e pedir ao coração que não me saia da boca para fora, eu devo parar. E às vezes, sou travada, não sou eu que decido parar – às vezes paro para memorizar as janelas do 120 da Duque de Loulé e sou abalroada por gente com pressa de apanhar o 22 –, mas consigo congelar o curso natural das coisas, nesse instante não se ouve senão o ruído fininho do silêncio, apesar de os escapes, esses, continuam a emitir mais CO2 do que o estilete de papel que levo à boca, e que me queima os lábios, e nisto vem um ganido do violino desafinado à saída do túnel da República, e o mais incrível de tudo é o sorriso dourado, doce, eu revejo-me naquele sorriso, do homem que pede esmola à chuva por entre a fila de para-choques sujos.

O melhor dos meus dias não tem a ver com os sapatos caros que compro quando estou triste, esvaziada, e que depois me torturam o calcanhar, mas que me fazem a coxa e a barriga da perna perfeitas, deliciosas, por vezes, não é mais do que isto, por acaso, às vezes estou atenta no instante em que coisas raras acontecem (e a minha mãe coloca mais um trevo de quatro dentro da página de algum livro da biblioteca, ao lado dos olhos atentos de vidro das bonecas com pele de porcelana), e raios me partam, às vezes até me passa pela cabeça tirar o estilete de papel, e ter lábios perfeitos, sem quimaduras.

A Teresa diz que não conhece mais ninguém assim. Que fale com os portageiros. Mas quem é que se vai dar ao trabalho (e eu sempre com esta – é a pior profissão do mundo), até o motor do vidro eléctrico resmunga a cada área concessionada, desce a contragosto, e o Multijet ronrona lá à frente, dou-lhe uns segundos de descanso, e é por estas e por outras, que, por mais jeito que dê, que mais jeito que viesse a dar, eu nunca vou ter colada uma caixa da Via Verde atrás do espelho retrovisor, eu estico o braço e sai pela borda fora o cartão da águia azul, entre o polegar e o indicador, isto é maquinal, não dura mais que uns segundos, mas o que é que custa – às vezes custa, quando a alma dói –, um sorriso, olá boa tarde, passou bem? (e por vezes sinto-me um operador de call center, mas nunca me sai forçado, e sorrio à espera do que está para vir).

Há dias, raros, rarefeitos, incríveis, em que o portageiro sorri também. E diz mais do que um murmúrio inaudível que deveria soar qualquer coisa como boa viagem. E quando isto acontece, continuamos a viagem, e ela é mesmo mais prazeirosa, e pisamos o tabuleiro metálico da ponte sem que nos importe o zumbido do vento que vem dos segredos do Tejo; quando assim é, seguimos um pouco mais felizes porque o portageiro também o é.

No tabuleiro da Ponte sobre o Tejo, na cabine 14, tem que se pisar o Bus, seguir sempre pelo Bus, o portageiro feliz ganha a sua vida, fechado num aquário de um metro quadrado, e é mais feliz do que os escravos que me abalroam quando algo me obriga a parar, é mais feliz porque sim, sem dinheiro amealhado em horas e pestanas incineradas em frente a um monitor, sem casas espaçosas, postos de trabalho ergonómicos, sem qualquer motor de alta cilindrada estacionado na rua onde de certeza brotam trevos de quatro folhas.

Olá, boa noite, como está? (os olhos ainda marejados pelas árvores arrancadas ao solo para passar o metro da margem sul do Tejo, se calhar um suspiro por ele ser a primeira visão depois da lenha cortada para cima dos carris).

Há tanto tempo que não passava por aqui, está tudo bem consigo? (espreita para o banco de trás, a Carolina dorme). A menina está tão crescida. É linda…

Ele não sabe que eu me encostei à faixa da direita de propósito, que arrisquei, um tiro no escuro (a minha mãe encontrou mais um trevo, à noite), pisei a palavra Bus durante mil metros, porque a história do portageiro feliz tinha que ser contada.

Ele não sabe que eu acredito que ele saiba perfeitamente quem sou eu, apesar de só lhe ter esticado o cartão da águia azul três vezes na cabine 14 da Ponte sobre o Tejo.

quinta-feira, janeiro 10, 2008

Deusdado


Si Deus Nobiscum quis contra nos, se Deus está comigo quem está contra mim,

[Tenho quase a certeza, descambou, até pode ser que não, mas tenho quase a certeza, descambou]

debaixo da Ginkgo, porquê debaixo Ginkgo, logo a Ginkgo, na cama, depois do fim, sem perceber porque é que Deus nos abandonou, porque é que perdi o nosso filho debaixo da Ginkgo, porquê debaixo da Ginkgo, aquela do nosso jardim, justamente quando ela dourava o chão de Lisboa, e eu à cata da folha mais pequena sem sequer perceber que o estava a perder debaixo da copa da árvore sagrada que fazia sombra aos dinossauros à milhões de anos atrás, à procura da folha da sorte para ganharmos o Euromilhões e podermos ter a sala grande com três janelas duplas do projecto da Teresa, se ganhássemos o Euromilhões eu continuava a querer viver na Almirante Reis, com vista para o Castelo e para o Intendente,

[Depois de levantar os olhos do relatório da urgência, viu-me de olhos raiados, narinas muito abertas, jugular a querer rebentar no pescoço, quero deixar de respirar também, se eu pudesse ter dito alguma era quero deixar de respirar, faz barulho demais se eu respirar, 30 segundos sem respirar, deixar ribombar que já descambou e enquanto isso não respiro, maxilares cerrados, pescoço esticado, nariz empinado, pose de Estado, punho cerrado e unhas cravadas na carne dentro do bolso do casaco que tem o forro descosido, depois de me ver assim, voltou ao relatório, não para escrever que tinha descambado, só para ler, e pela primeira soube que o meu nome era Diana, Diana, repetiu Diana vezes de mais, só se lembrou que era importante saber que o meu nome era Diana antes de me dizer que o meu filho tinha descambado]

eu que gosto tanto das Ginkgos, e agora como vai ser a vida sem as Ginkgos douradas no Inverno, na Almirante Reis não há Ginkgos, só tílias, e lódãos, melhor assim, antes disto, um silêncio absoluto, horas, instantes, preces, todas as promessas foram feitas, a todos os Santos, foram invocados todos os Orixás, se Deus está comigo não me vai fazer isto, porque é que ele nos havia de abandonar,

[ela está muito nervosa, pelo amor de Deus tenha cuidado a tirar-lhe o sangue, porque ela está muito nervosa, e eu muda, sem respirar, de cabeça encostada à anca da enfermeira que chorou pelo meu silêncio, pelos meus olhos raiados, pelo meu pescoço esticado, a enfermeira que prendeu no quadro de cortiça da urgência, com pionaises dourados, o desenho que a Carolina fez na sala de espera da urgência]

só um ganido de dor por nunca mais poder contar com as Ginkgos para nada, nunca mais vou poder gostar das Ginkgos, lamento, não é possível, e se Deus está connosco quem é que tem a ousadia de estar contra nós, fico-me pelos eucaliptos, eu sempre gostei mais de eucaliptos, e de pombos, eu estava a perder o nosso filho debaixo da Ginkgo e as pombas do nosso jardim não me vieram à mão, Deus está comigo, deu-me todos os sinais, não, sinais não, são prenúncios, quando é um aviso de perigo é prenúncio, as pombas que não vieram ter comigo, e o nevoeiro gelado que caiu sobre nós, e logo a seguir a febre da Carolina, e lá em casa, sem eu saber ainda, a rosa de Inverno que perdeu todas as pétalas sem qualquer explicação,

[mas o título do post era Esperança, e Deus está sempre comigo de mãos dadas, não há plafond de milagres por ano, pois não, há milagres sempre que é preciso, eu troco o meu cabelo por este filho, ela está muito nervosa, tirem o sangue com cuidado, não a magoem, e se ele ainda cá estiver eu troco o meu cabelo por este filho, chamo-lhe Deusdado ou Teófilo, a seringa espetada no meu braço, o torniquete de borracha e o meu braço a parecer uma perna gorda de recém-nascido, cabeça encostada à anca da enfermeira que chorava baixinho, e de repente, a Deodata, e aí sim era um sinal – estás aí, Deus? –, um sinal e não um prenúncio, a Deodata, de cabelos vermelhos até ao rabo, vermelhos sangue e a raiz do cabelo muito branca, a Deodata que fez nascer a minha primeira filha, que quando ela sufocava enredada no cordão umbilical e fazia disparar todos os alarmes da maquinaria a que eu estava ligada, colocou aqueles cabelos vermelhos ao lado da minha almofada, enquanto corria para o elevador, e cantava para mim, a Deodata a garantir-me que estava tudo bem, ia ficar tudo bem – estás aí, Deus, consegues ouvir-me?]

na pala do sol do Idea, onde todos os dias confirmo se trago remelas coladas às pestanas, se o rímel não borrou a pálpebra, e a folha da sorte, amarela fluorescente, minúscula, em forma de borboleta, de leque, não sei, espalmada, não sei porque a trouxe, porque andava à procura dela sem perceber que estava a perder o meu filho, as Ginkgos este ano ficaram douradas fora da hora, tarde demais, tanto melhor, e no Outono os Jacarandás voltaram a florir só para mim, Deus não me abandonou, em Novembro os Jacarandás floriam de novo e eu certa que só o faziam para mim, eu a ver sinais de Deus no lilás da cinzenta 5 de Outubro, os Jacarandás a dizerem-me que só por mim me davam a esperança de um novo começo, de um recomeço.

[todos os sinais, todos os prenúncios, todas as promessas, todos os santos com cera derretida ao seus pés, eu a falar com o meu pai na casa-de-banho do Hospital, eu a sangrar e a pedir-lhe para não me deixar mal, que ele sempre foi bruxo, a pedir-lhe para me deixar ficar com este filho dentro de mim, o Santo António da mãe do Stucky preso dentro da minha mão em jeito de protecção, o mundo soluçou naquela tarde, o abraço da Teresa depois do fim, os cigarros da Hermínia à porta da Maternidade, os bebés do ano a nascerem, a adolescente a chorar de dor na sala de espera, contracções de seis em seis minutos, o Leonardo ao telefone a garantir-me que a culpa não era minha, e uma lágrima a cair no linóleo, depois as lentilhas do Stucky antes das doze badaladas, a Ginkgo não podia ter feito nada, debaixo da Ginkgo, daquela, não podia ter sido debaixo daquela, se Deus está comigo, não há quem tenha a coragem de estar contra mim, porque é que ele me abandonou, deu-me todos os sinais, mas descambou.]

quinta-feira, dezembro 27, 2007

Esperança

Na casa de banho houve sempre, desde sempre, concílios familiares, epifanias, lágrimas e gargalhadas, brushings e borbulhas rebentadas no meio de conversas sérias, decisões para a vida, entre dúvidas metafísicas e mensagens codificadas nos desenhos a bolor do tecto por cima da banheira, nem sempre houve um espelho, mas nunca faltavam fitas de cetim guardadas no armário para as minhas tranças, outrora os azulejos eram brancos, depois começaram a cair e a Magui colou papel autocolante foleiro com gaivotas, a nossa vida, a nossa família, eu, o Leonardo, a Magui, e dúzias de gatos, encontrávamo-nos ali, pela manhã, parecíamos muitos nas manhãs de domingo – um na sanita, um na banheira, a outra a pentear as melenas ou a desenhar um risco de eyeliner por cima das pestanas, foi lá que o meu irmão Leonardo me queimou a bochecha esquerda com o secador de cabelo sem que nunca tenha sido castigado pelo acto vil, também foi ali que me trancaram com a gata Melissa quando a casa estava assombrada e os gatos bufavam ferozmente a seres que nenhum de nós conseguia ver, foi por cima do balde da roupa suja que eu chorei a maior parte das lágrimas da adolescência, era lá, até há muito pouco tempo que a minha mãe me secava o cabelo, cotovelo esquerdo apoiado no lavatório, rabo em cima do banco amarelo de plástico que o senhor Victor nos vendeu a preço de ruptura de stock quando fechou definitivamente as portas da sua loja de acessórios de casa de banho na João XXI, foi lá que, num Natal distante, linóleo cor-de-laranja com pequeno padrão de colmeia por debaixo dos nossos pés, olhos pregados ao janelo de vidro fosco junto à sanita, eu e o Leonardo jurámos ter visto a sombra do Pai Natal a colocar presentes por debaixo do pinheiro feito de escovilhões de plástico verde-garrafa.


Já não dá para ler o futuro no bolor do tecto por cima da banheira, até porque já não há banheira, não há linóleo com colmeias por baixo dos nossos pés, algures no subúrbio, a Magui tão cansada de escolher pavimentos, sanitários, sancas, fornos e placas, mármores e granitos, olhou para aquela e disse – quero uma igual –, e eu nem ousei dizer-lhe que tinha escolhido uma casa de banho amarela, por acaso é bem gira, apesar de amarela, lavatório à moda antiga, como em Viseu, sem papel autocolante com gaivotas a segurar os azulejos, não me espanta mesmo nada que a magia tenha acontecido ali, junto à sanita, junto ao janelo de vidro fosco onde outrora eu e o Leonardo vimos a sombra do Pai Natal a deixar presentes debaixo da árvore de Natal feita de escovilhões de plástico verde-garrafa.

Não tenho um presente para ti, João.

Não faz mal. Não tenho um presente para ti, Diana. Desculpa.

Se o Pai Natal existisse mesmo, João, agora descíamos no elevador, aproveitávamos que a Farmácia está aberta a noite toda, arriscávamos, se calhar o Pai Natal, com sorte, até nos portámos bem, João, o Pai Natal ainda nos traz um bebé.

Não descemos à Farmácia. Com medo de mais um teste negativo em cima da mesa, da minha cara de sofrimento contido, mandíbula superior a morder o lábio e a desvendar a covinha da bochecha direita, não descemos à Farmácia, sobretudo, por vergonha, por termos uma venda suspensa há mais de quinze dias.

Com um dia de atraso, o Pai Natal chegou.

Este blogue está grávido de seis semanas.


(Naquele dia, tinha que ser naquele dia, em que toda a gente tem esperança, começou a bater em mim mais um coração)

sexta-feira, maio 11, 2007

Imagens como esta (escrito muito antes da passagem do furacão)

São imagens como esta (sem ponto final, sem reticências, sem exclamação)

Dito isto, houve silêncio num carro encarnado, o qual, se a inquirissem, não seria capaz de identificar qual o construtor sul-coreano ou nipónico que tinha aberto rasgado o papel de embrulho, aberto a embalagem, seguido cuidadosamente as instruções com o dedo indicador, e montado peça a peça aquele carrito Lego de brincar para gigantes.
São imagens como esta que o quê?
Pois, daí o silêncio, não sabia porque tinha dito aquilo e as palavras ficaram em suspenso, baloiçando-se ao sabor de uma curva de cotovelo à sua direita.
Já fizera menção de o dizer antes, pelas estradas ladeadas por plátanos muito antigos, cujos troncos só podiam ser abraçados por três adultos de braços bem esticados (o que mais me custa é ficar com fama de assassina de plátanos em Lisboa) e nas curvas e contra-curvas muito escuras alumiadas pelos faróis do carro encarnado, que ficaram sobressaltadas pelo rugir do motor junto às três mil e quinhentas rotações (ou assim fazia crer o ponteiro). Ou quando, ao telefone para Lisboa, confirmara que estava à beira do desemprego, e para seu consolo, única e exclusivamente para seu consolo, um milhafre se pavoneou muito perto, entre a linha do horizonte e o telhado da casa vizinha, onde gatos siameses contemplam o oceano atlântico.
São imagens como esta, que raio de desabafo, mas o que querem, esta mereceu mais um suspiro, nesta última semana, deu-lhe para os coleccionar, e esta imagem, pelo espelho retrovisor, invertida – e isto lembra-lhe um episódio longínquo em que o professor Palma Borges, num barracão pré-fabricado na preparatória Gago Coutinho, perguntou aos alunos da turma B, do oitavo ano, porque é que as ambulâncias tinham escrito ambulância ao contrário no capô, e alma nenhuma, incluindo ela, que se acha tão intelectualmente superior, soube dar a resposta certa, está ao contrário, setor, para se ler ambulância pelo espelho retrovisor, estas coisas ainda a perseguem, mais ninguém, decerto, se lembra disto, mais ninguém decerto, ficou envergonhada para a vida por não se ter lembrado da óbvia solução à adivinha, e, provavelmente, mais ninguém se lembra que havia uma Paula qualquer coisa, que lia os manuais em voz alta nas aulas com dicção de pivot televisivo –, enquadrada num espelhinho rectangular onde já descobrira alguns cabelos brancos que ficaram por tingir, era quase sobrenatural, um enorme sol laranja a deitar-se até à manhã seguinte nas águas do mar.

Nesta ilha, até as cuecas da Carolina, estendidas no quintal, me aquecem o coração.

domingo, abril 29, 2007

Fez uma noiva linda (e um noivo penteado)


Nas próximas três semanas, a meio do Oceano Atlântico, tudo sobre o casamento no Jardim da Estrela, desde o bouquet biodegradável, às lágrimas da Esquizo no hall de entrada de Santa Marta, à viagem no eléctrico 28, com os espanhóis a tirarem fotografias paa mais tarde recordar, e também a descida vertiginosa pelas escadinhas de Alfama abaixo (e eu a treinar para presidente da Junta, a distribuir beijinhos nos pátios, entre promessas de regressar em noite de Santo António para comer uma sardinha) e tantos, tantos outros momentos de uma história improvável e que eu quero interminável.

Três semanas, em frente à praia deserta, eu, o João, o diabrete loiro, e este computador.

Este blogue vai voltar a ser o que era.

PS - Muito feliz. Tão feliz que até estraguei as fotos, porque quando estou assim, radiante, rio muito e vinco o duplo queixo.

segunda-feira, abril 23, 2007

Leiria-Ralha

A noiva foi até Leiria, e Leiria pareceu-lhe menos feia, aliás, mais ou menos a meio da praça do centro histórico, onde procurava sem muita convicção uma caixa de brisas do Lis para trazer ao seu novo patrão – graxa danada, bem sei, mas o que fazer, a noiva tem destas coisas –, deliciou-se com o escafandro poisado no chão, à venda por 3500 euros numa feira de antiguidades ao ar livre, bateu no peito agradecida por mais uma imagem bizarra absorvida pelas suas retinas, e pediu até desculpa a Leiria por lhe ter chamado, há seis meses atrás, a mais feia de todas as cidades de Portugal.
É certo que o raio do vestido da noiva estava largo pelos nove quilos que a balança perdeu sem rasto nos últimos quatro meses (afinal não era assim tão chanfrada dos cornos por começar a dieta nas vésperas do Natal), é certo que não estava como esperado, como sonhado, com a magnólia e as tirinhas cor de vinho a caírem sobre a saia rodada – as madrinhas não disseram uau, o colar decidiu que não estava para ali virado e caiu sem graça sobre o regaço, apenas o véu, antigo, comprado no Ebay, deu um ar da sua graça naquele provador de um subúrbio de Leiria, onde há seis meses atrás um arco-íris rompeu pelo céu, junto à entrada para a A1.
A noiva foi até Leiria, e Leiria irá ficar no seu sobrenome, antes do Ralha, e só visto, nem dá para escrever o ar de espanto da funcionária da conservatória, em transe, quando o noivo lhe disse e voltou a dizer, não houvesse confusões, que ele é que ficava com o Ralha em último lugar. Leiria era uma cidade feia, não havia escafandro à venda no centro histórico que lhe valesse, nem mesmo o facto de o Leonardo, alegadamente, ter sido concebido algures em Leiria num hotel cujo colchão estava cravado de percevejos. Mas há apelidos averbados na certidão de nascimento que puseram Leiria no mapa de encruzilhadas que é a minha vida.

sexta-feira, abril 13, 2007

A Maldição do Alto Minho

Quando a noite cai, o silêncio desce as escadas desenhadas pelo Ventura Terra em pezinhos de lã, e desprendem-se das paredes luminescências que me fazem pensar sobre a maldição do Alto Minho.
As sapatas da porta 86 B da Rua de Santa Marta estão amaldiçoadas. Foram escavadas por cima das sepulturas de um cemitério índio. É tão simples quanto isto. Não pode, não arranjo outra explicação.
Nem sempre foi assim. Oiço relatos dos vizinhos que falam de uma taberna afamada, de uma cozinheira minhota de formas roliças, de um rodopio de febras e pipis, paredes pintadas com gordura e enxurradas de copos três e finos, que fariam transbordar o desolador chafariz do Largo de Andaluz.
O Alto Minho é um restaurante. É um restaurante simpático, irresistível pelo painel de azulejos monumental com vaquinhas e bois a puxarem uma carroça em Paredes de Coura.
O Alto Minho está amaldiçoado, só lá vai com água benta e crucifixo. Até lá, está condenado a este fado: abre, fecha, trespassa-se, arrenda-se. O Alto Minho não aguenta mais do que um mês com o letreiro da porta a dizer “Aberto”, mesmo com a imperial a 50 cêntimos. 50 cêntimos. Nem no boteco da D. Beatriz se bebe um café com 50 cêntimos.
É profundamente desolador. A mim entristece-me a maldição do Alto Minho.
Os vizinhos do restaurante Andaluz, na porta 84 B, têm a casa sempre cheia. Uma refeição ronda, em média os 15 euros por pessoa, e não há quem diga aos vizinhos que o raio das azeitonas não são lá grande coisa, e que, já agora, mudavam o fornecedor do queijo que não sabe rigorosamente a nada. Mas é vê-los todas as semanas com o mesma ementa afixada na porta, é vê-los todas as semanas a abarrotar. À hora do almoço e à hora do jantar.
Na porta ao lado, nem uma mosca se atreve a zumbir dentro das quatro paredes amaldiçoadas do Alto Minho.
Por vezes vamos lá. Não tememos.
Os olhares dos empregados já não têm uma réstia de esperança – devem já ter ouvido falar da maldição do Alto Minho. A lenda espalha-se de ouvido em ouvido, toda a gente a conhece de cor, como uma lenga-lenga.
A rapariga que nos serve o jantar está, sempre, sem excepção, à beira de um ataque de nervos, deita faísca pela ponta dos dedos e aquilo enternece-me, derreto-me com o nervoso miudinho e um misto de ansiedade infantil de quem acabou de desembrulhar um presente, quando chegamos e, apesar de todas as mesas estarem vazias, pedimos para nos sentar na zona de fumadores.
Depois, desdobra-se em atenções dignas de restaurante de primeira categoria: serve as bebidas, por vezes não lhe corre lá muito bem, entorna um bocadinho para fora do copo, mas nós não dizemos nada, nem nos atrevemos, mesmo quando ela não entende o pedido, ou se engana, nós temos medo que ela desate a chorar de desalento, desfazemo-nos em elogios à comida, ao serviço, em jeito de consolo, em jeito de a culpa não é vossa, a culpa é da Maldição do Alto Minho, e ela lá atura a Carolina com a maior das paciências, dá-lhe todas as palhinhas que o seu capricho de diabrete loiro entende pedir.
O Alto Minho tem os melhores secretos de porco preto de Lisboa. Sopa, azeitonas, pão, manteiga, prato, bebida, sobremesa (salva de palmas para a mousse de chocolate – caseira, com raspas de chocolate branco) custa 7,5 euros.
O Alto Minho deve estar quase a fechar as suas portas. E assim vai ficar, com o placard da agência imobiliária na porta, até que algum empresário do ramo da restauração que não tenha lido a newsletter da ARESP, o reabra.

Pelo sim, pelo não, sem medo da maldição, hoje vou lá jantar.

quarta-feira, abril 04, 2007

Nasceu uma criança com as mãos coladas*

Por estes dias, encontro-me profundamente encantada pela total ausência de expressões faciais da empregada de mesa Irina.

Subo até ao terceiro andar, de elevador, depois, passo pelo chão ladrilhado a preto-e-branco e treino algumas jogadas de mestre do xadrês da minha vida,

[encurralo o rei, como um cavalo, esquivo-me da torre e preparo-me para um eminente xeque-mate, isto tudo num pulinho e a caminho dá acesso à escada estreitinha por onde trepo para a mansarda]

cheguei, e tranco-me no quarto de banho desenhado pelo arquitecto Ventura Terra,

[também ando hipnotizada com a planta deste edifício, às vezes perco-me pelos tectos altos do meu gabinete e imagino-o – vou agora ver na wikipedia a cara dele –, sentado em frente ao estirador, regra e esquadro, tês, aparos vários espalhados, frascos de vidro soprado a transbordarem manchas de tinta-da-china que poderiam inspirar testes psiquiátricos acaso alguém se desse ao trabalho de reparar nelas, o Ventura Terra a desenhar estas salas, os jardins-de-inverno, os motivos florais da fachada, o desenho arte nova do corrimão da escada, e até a casa-de-banho, penso que é um privilégio fazer xixi num prémio Valmor e fico agradecida, eternamente agradecida pela experiência]

e tento, tento muito, tento não devolver ao espelho uma careta, tento, porque me dava jeito dos diabos ter cara de autómato, gostava de saber mentir com cara de guarda nacional republicano, dava um bocadinho do meu cabelo para não ser tão transparente, cara cuspida e escarrada do que se passa cá dentro nas entranhas, tinha piada e até fazia bem à pele ser como a Irina, porque tenho 28 anos e esta cara bolachuda já está riscada a x-acto, porque me rio muito, porque me preocupo muito, porque, em tempos, chorei muito.

[há meia dúzia de anos, eu a chegar à redacção do Lambert que tinha os tectos radioactivos, a chegar para fazer as bolsas com traje escuro a preceito, muito arranjadinha, nessa noite, eu não sabia, eu apenas julgava que ia à inauguração de mais uma exposição do Zé Ralha, mas nessa noite, com aquela blusa de seda verde-seco, eu conheci a Amália e os seus dentes bamboleantes, e a Sílvia Oliveira dispara esta para o ar, que me persegue sempre que me cruzo com um bocadinho de areia que se transformou em espelho, Ela tem cara de bebé; não tem uma única ruga.]


Mas por mais que treine nas instalações sanitárias protegidas pelo Ippar não consigo, e acabo sempre por constatar que tenho um pelo da sobrancelha muito mais comprido que os outros e arruivado.

Os dias passam-se assim. Num gabinete desenhado pelo Ventura Terra. Num imóvel classificado, onde todos, ou praticamente todos, lêem as entranhas deste blogue (e eu com vontade de picotar os pulsos a cada revelação dos leitores do Tralha).

Os dias passam e eu na expectativa de ver uma expressão qualquer estampada na cara da empregada de mesa Irina.

*Nasceu, ou talvez não, algures no Brasil, numa terra chamada Itaguaí, uma criança com as mãos coladas, como se tivesse passado nove meses quietinha, a rezar no ventre materno. Esse nascimento – que não consigo confirmar porque tenho muito que fazer – vale cem visitas diárias ao Tralha, reencaminhadas pelo Google brasileiro. Diz o mito que quando os médicos cortaram a fina membrana que unia as mãos do nascituro aconteceu um milagre. De facto, o Tralha só não morreu por causa disso. Mas não sei se é obra de Deus.

** Lamento, caro leitor do Google brasileiro: Não faço ideia como se monta uma fábrica de sabões no quintal...

terça-feira, dezembro 26, 2006

Maria do Céu

Maria do Céu mora nas alturas.
Isto dos nomes tem que se lhe diga – Maria do Céu não poderia morar num rés-do-chão ou numa cave. É certo que Maria do Céu não mora no Sheraton, mas está perto dele, pelo menos. E também é verdade que Maria do céu tem mais dois pisos por cima dela e da placa de betão que é o seu tecto, mas, para efeitos da presente narrativa, decreta-se aqui que um quarto andar já não é mau, e que, com um esforço de imaginação considerável, se pode concordar com a narradora e assumir que quatro pisos já são ligeiramente próximos do céu, pelo menos se alguém se der ao trabalho de esticar um braço à janela para tentar apanhar alguma das dengosas nuvens que alcatifam o azul do horizonte.
Maria do Céu faz tanto jus ao seu nome que tem no seu acento de nascimento como uma Anabela que, em tempos, eu via todos os dias, de madrugada, com o passe social L123 na mão, na paragem do 27 na Avenida de Roma – a Anabela era feia como uma osga, e a Maria do Céu, bem, não emana qualquer imagem celestial, aliás, e para provar que eu não sou tão boa pessoa como muitos me julgam, até há umas semanas, eu não sabia que Maria do Céu tinha essa graça, e durante uma década referi-me a ela como a olharapa.
Deus é o melhor argumentista e a realidade bate a ficção. Depois, há uns desgraçados que têm um dom, que sugam realidade pelos poros, ou pela palhinha, que depois a digerem e vomitam algures entre o olho esquerdo e a moleirinha e, com mais uns floreados e umas destrezas técnicas na manga, é a isso se chama ficção. Estou certa que é por causa disso, e porque sei o nome de muitas árvores – há pouco, o Cerejo queria um botânico para descobrir o nome de uma espécie, para um artigo, e eu disse, sem pestanejar, Ficus Macrophylla –, que hei-de ser uma grande escritora.
Maria do Céu passou o Natal no seu bunker, à altura de quarto piso.
O presidente do conselho de admiração (esta é do Goiaoia e é genial) quis demonstrar que era um humanista quando se vangloriou de pulmões bem abertos e peito inchado que não despedira Maria do Céu. É graças a ele que eu sei que Maria do Céu tem esse nome no bilhete de identidade, fico-lhe agradecida, porque, até então, era a olharapa que tinha um Peugeot vermelho, e que fazia lá sabe-se bem o quê neste edifício que não é carne nem é peixe, não é novo nem é velho, e não é alto nem é baixo.
É claro que a sensibilidade social do presidente do conselho de admiração se traduz em números. Na realidade, e tendo em conta a esperança média de vida de Maria do Céu, e o seu tom esverdeado da pele, não faltará muito para que ela vá para onde o seu nome a manda desde o seu primeiro grito. Feitas as contas, 1,5 salários de indemnização sairiam mais caro à empresa do que deixá-la estar quietinha, mas, foi uma boa tentativa, grande tentativa mesmo, essa, de tentar convencer os tontinhos de que os gestores têm coração.
Certo é que Maria do Céu é uma funcionária exemplar: trabalha 365 e, por vezes, 366 dias por ano. Antigamente havia uns acetatos que se chamavam fotolitos, e era Maria do Céu que os entregava em Alcântara no seu Peugeot vermelho. A banda larga matou os fotolitos, da mesma forma que a tv matou as estrelas de rádio, e a Internet anda deprimida porque ainda não matou os jornais e os livros, mas ela que se acalme e dê tempo ao tempo que ainda lá chega com mais um esforcinho.
Mas a banda larga não matou Maria do Céu. Agora, a senhora, que leva 36 anos em cada perna arqueada, controla a impressão do pasquim, nuns barracões da Mirandela, noite a dentro, inundando as narinas de um cheirete de tinta lançada sobre papel de má qualidade. Depois, ainda os galos preguiçam aninhados com as galinhas, já a Maria do Céu ata a jornalada toda, para que quando os preguiçosos dos escribas chegam, perto da hora do almoço, não lhes falte a leitura no Lacinho ou no Fax.
Maria do Céu tem um bunker no quarto piso. E, dentro desse cubículo, há quadros pregados nas paredes, há vasos com plantas, jarras com flores, há um iMac dos velhotes, porque Maria do Céu se recusa a converter aos PC’s, há um divã que se faz cama de solteiro num instante, prateleiras com livros e bibelots, uma televisão com um naperon de renda de nylon comprada na loja chinesa da Tomás Ribeiro, é lá que ela vive, a Maria do Céu, sozinha, foi lá que ela passou a Consoada, em paz, porque não será despedida em 2007 porque há gestores com coração de manteiga, é lá, de certeza, que o seu grande amigo, o estafeta engatatão, a vai encontrar uma bela manhã, inanimada.
Este é um post sobre os trágicos e sobre as coisas que continuo a testemunhar num metro quadrado ao meu lado, como o homem de aspecto duvidoso que, às 20h30 do dia 24 de Dezembro, em frente ao portão do Colégio Militar, se aproximou do Idea, levantou o pára-brisas, e deixou um folheto mal amanhado de venda de cosmética Oriflame em esquema de pirâmide (podia ganhar 250 euros se arranjasse dez assessores para a Oriflame). Ou da alma que, nesse mesmo dia, e neste mesmo blogue onde pairam agora, pelo menos, um par de olhos, enfiado no edifício da Direcção Nacional da PSP de Lisboa, esperava encontrar raparigas feias fotografadas pelos namorados.

segunda-feira, novembro 27, 2006

Alcagoitas

Parece que isto aconteceu na divisão criminal da Polícia de Segurança Pública, num barracão junto ao Tejo, onde vagueiam ainda milhares de almas de bacalhaus que ali foram salgados há décadas atrás.
Ela lembra-se da cena algures na Praça de Londres, mas esse cenário é absolutamente impossível, porque eles não estiveram na Praça de Londres, nem nesse dia, nem em dia nenhum.
Isto foi coisa mágica, e fiquemos, então, com a versão do barracão da PSP, e não nos banquinhos do jardim da Praça de Londres, com vista para a Igreja.
Ela devia estar a ler o já muito ultrapassado romance de Elsa Raposo com o professor de surf - a revista já tinha uma semana e a Elsa Raposo já estava a decorar o apartamento no Parque das Nações de um amigo de longa data que se tornou amante de um dia para o outro (ainda nem o laser tinha pagado o nome do professor de surf das suas costas) -, à espera de prestar declarações a propósito de uma notícia que escrevera sobre Óbidos.

A sua metade

pareciam gémeos siameses, onde estava um encontravam o outro, ela gostava de o ter sempre por perto, e à noite, em noites difíceis, já havia poucas noites dessas, mas de vez em quando voltavam a assombrá-la, isto foi um momento muito bonito, ela nem devia estar aqui a reproduzi-lo para a multidão silenciosa e para os brasucas ávidos de saber em que dia é que se monta a árvore de Natal (eu cá acho que é no dia 1 de Dezembro; este ano antecipei-me, mas sempre montámos a árvore no primeiro dia do último mês), ela estava com a cara enterrada na almofada, a chorar baixinho, e murmurou, dá-me a tua mão, não me largues a mão, e dormiram assim a noite toda, sim, tal e qual como siameses

matava a espera, brincando com os sinónimos e com as letras das palavras cruzadas, e perguntou, achou que, obviamente, ela não saberia, lançou: regionalismo algarvio ara amendoins.

Ela respondeu não sei (tinha a mente presa no Tallon, que apesar de ter três filhos com a Catarina Fortunato de Almeida, conseguiu anular o seu casamento), e na fracção de segundo a seguir disse alcagoitas.
Pôs a mão à boca, bateu-lhe, na boca, não ao gémeo siamês, e ele nem podia acreditar que ela tinha encontrado a solução, sem sequer lhe ter dado uma ajuda, que era uma palavra grande que tinha um t e um g.
A questão é que ela nunca ouviu falar em alcagoitas, até hoje, nunca tinha escrito a palavra alcagoita.
Isto saiu-lhe da boca para fora e ela tem quase a certeza que tudo se passou na Praça de Londres.

terça-feira, novembro 14, 2006

A Viriato irisada

Cada um descomprime como bem entende e lhe apetece, quem gosta não olha e se acham que eu tenho um pirolito a menos, pois bem, isso afecta-me tanto como um stiletto de biqueira afiada pelo Blahnik, ou seja, nada, mesmo nada, é que a gente já sabe que faz parte do pacote, a dor e os bichanados dos outros a dizerem que devia morar na avenida do Brasil – e eu aí tenho que dar a mão à palmatória e à menina dos sete olhos, ameaças comuns da avó Tóia na minha primeira infância, e concordar com essa teoria: a Magui tem na avenida do Brasil um apartamento devoluto de seis assoalhadas, uma casa onde a mãe da Cristina se penteou durante décadas pelas mãos de um cabeleireiro chamado Florindo, e a casa tem um belo logradouro onde eu podia encaixar todos os meus amigos à volta de uma mesa rasca de plástico comprada nalguma sucursal de hipermercados do patrão, e a Carolina podia rir com todos os seus dentes de mentirosa à mostra, para a fotografia, num vaivém frenético de um baloiço, ou na vertigem da descida de um escorrega; a felicidade cabia toda naquele quintal da Avenida do Brasil -, e é claro que a Isabel soube, quando saía do táxi da Retalis, à porta do número 13, que só havia uma pessoa capaz de estar a soprar bolas de sabão da janela. Eu.
Há quem faça de escriba o dia todo sem pensar na coitada do terceiro piso a quem tiraram o computador e o posto de trabalho. Nada disto me espanta já. Penso, repenso nos últimos dois meses, geralmente, não chego a nenhuma conclusão, e então, estendo a palma da minha mão direita amiúde para ver se adivinho quando é que me oferecem 1,5 salários para que eu deixe de me queixar na Internet, para quem quiser ler, que ganho 4,54 euros à hora e que chega ao dia 15 e eu tenho dez euros para me governar. E perco-me, também, em labirintos psicadélicos com espelhos mágicos que me emagrecem num segundo os quinze quilos que devia perder, a magicar qual será o requinte de malvadez com que me hão-de dar a notícia e dizer-me que a porta da rua é serventia da casa – adianto desde já que arrancar as unhas já não vale a pena porque, deve ser castigo divino por algum dos meus imperdoáveis pecados, e esta semana parti a três unhas praticamente a meio do sabugo (adoro esta palavra). Eu gostava que amestrassem dois grand danois arlequins com problemas de identidade, que se julgassem São Bernardos, e que me trouxessem ao pescoço um cantil proposta lá dentro enroladita. Ou mudando a conversa da água para o vinho, ou neste caso, dos cães para os gatos, gostava que contratassem os felinos que se dizem fedorentos para fazerem um stunt só para mim, à entrada do primeiro piso, que envolvesse a máquina do café, já agora, electroméstico laboral que eu tão bem domino. Nesse dia, se calhar nem regateio 1,7 salários por cada ano de vida, e crio o blogue (T)ralho.
Cada um descomprime como pode.
E quando a hora de fecho se antecipa duas horas, como se de uma directiva comunitária se tratasse para acertar todos os fusos horários dos 25, tenta-se de tudo: vasculha-se o ebay à procura de santas Martas kitsch, recortam-se imagens naifs dos lenços de namorados minhotos para parir um original convite de casamento, mas a mala de uma mãe é como um ovo kinder, uma surpresa, e um brinquedo (ainda não é um chocolate, mas lá havemos de chegar um dia), e acabou por salvar a tarde: quando pus a mão lá dentro e tacteei, sem medo que esta fosse engolida por um monsro, à procura de um maço de cigarros finos, acabei por encontrar um frasquinho de plástico com água e sabão, corri logo para a janela – é a dois passos, não foi grande o exercício, mas vá lá, dêem-me o esconto -, o cenário era o mesmo de todos os inícios de tarde, uma fila interminável de carros e de luzes encarnadas do pé que não sai do pedal do travão, e com um sorriso tolo na cara, que hoje me dei ao trabalho de ensopar com base e blush, soprei. Soprei com requintes de mestre vidreiro as mais belas bolas irisadas que a Viriato já viu.
O Afonso, que nos arruma os carros e que tem mau vinho logo ao início da tarde, lançou lá debaixo os braços aos céus e gritou com a voz já muito arrastada pelos vapores etílicos: A minha rua está tão lindaaaaa. E com os olhos erguidos ao céu encoberto, abençoou os criativos; abençoou-me a mim. O Zé, que estava na janela de cima, a dar de comer ao seu cancro de pulmão com um Ventil original, dos que vêm em maços molinhos e não em caixas de cartão, pediu-me em casamento. A Isabel estava bonita, mesmo muito, e só olhou para a varanda para confirmar que era eu a doida.
Cada um faz o que pode, pelo menos enquanto não se deixa alhear pela realidade. A Viriato parou de sangrar naquele instante e todas as tristezas voaram para longe e rebentaram no chão, como as bolas de sabão.

quinta-feira, outubro 26, 2006

Arco-íris

Talvez eu devesse contar-vos, à boleia do segundo episódio seguido de Noddy que passa na televisão bordeux, e que traz à metade loira de mim a história do arco-íris mágico do país dos brinquedos e do tesouro escondido algures atrás de uma colina onde ele nasce, sobre o céu de milagre que se decidiu abater sobre nós, sobrepondo-se ao cinzento carregado dos céus chuvosos de Leiria, quando decidimos arredar o pé da cidade que tem um estádio encarnado encostado a um castelo, com todos os sentidos embriagados e quase enternecidos pela docura e mau gosto indescritível do casal de idosos proprietário do café Sem Niveau.

Sinais de Deus é o que é.
Que me dizem que a escolha de um vestido de linhas simples, sem bordados, rendas ou mariquices à revelia e sem a opinião das três madrinhas, a 110 quilómetros de Lisboa, não foi um erro, uma compra por impulso, e que talvez o véu com as rendas de guipure cor de sangue sejam apenas o que falta para compor a imagem da virgem que eu gostaria de ter sido - o amor, repito, nunca é tarde demais para me auto-plagiar, até porque o joão Pedro George não é meu leitor e dificilmente me irá dissecar o blogue, o amor é directamente proporcional às golfadas de sangue que se está disposto a derramar, e era isso que o véu debruado a sangue poderia querer significar no dia em que passo de SOL para CAS no bilhete de identidade - o dia em que a minha filha voltar a ter o nome com que nasceu será igualmente solene, talvez dos melhores da minha vida, mas isso é daqui a muitos anos, quando eu já tiver o cabelo todo grisalho e, provavelmente, a tapar-me o rabo, numa espécie de promessa.
E que o noivo, ah, que coisa tão pirosa de se escrever, melhor que isto só a minha manicure que tem uma série de unhas partidas e descuidadas - em casa de ferreiro espeto de pau, já diz a preciosa ajuda dos ditames populares -, que em 15 minutos de manicure fast food que transformam as minhas mãos, e mesmo antes de eu desembolsar 4,5 euros pelo serviço ultra-rápido e milagroso, é capaz de dizer uma média de 55 "o meu esposo", que o homem tímido de cabelos dourados e revoltos que, contra todas as superstições viu o vestido da noiva, é o homem da minha vida.
Mas, francamente, para sabê-lo, para ter essa certeza, não precisava de um arco-íris sobre uma rotunda de acesso à autoestrada, à saída de Leiria.

segunda-feira, outubro 23, 2006

Pequenos apontamentos de beleza

E no meio de tudo isto há apontamentos de uma beleza simples, da que dói, e que são da mesma matéria que o suicídio premeditado da octogenária que se chamava Maria Teresa de Jesus.

(foi mesmo assim. tirou os anéis dos dedos, o fio de ouro do pescoço e em último lugar a aliança, e alinhou-os na bancada da cozinha. subiu à banqueta, tirou os pés dos chinelitos de fazenda, fez questão de os colocar perfeitos na perpendicular e só depois fez aquilo que tinha a fazer, aos primeiros pingos de chuva que lhe caíram na cara)

Um telefonema ao início da manhã, a valsa de Amélie em toque monofónico a sair da mala Todds que viajou dos Emirados Árabes Unidos para o meu ombro direito há mais de três anos e nunca mais de lá saiu, tudo isto no Lidl de Alvalade, que é um Lidl mais ou menos decente, com um rácio equilibrado de gente feia por metro quadrado, o meu outro ombro, o esquerdo, eriçado, com frio, junto à arca e às salsichas alemãs refrigeradas, para ser exacta, a minha mãe a chorar, eu a pensar que tinha morrido algum gato, e ela diz

a Dona Teresa mandou-se da janela,

e nesse momento, a força é-me arrancada das pernas como num roubo por esticão, num micro-segundo vejo à minha frente o sorriso precioso da minha vizinha em frente aos iogurtes de aromas a 1,49 euros, as doze unidades, e noutro, logo a seguir, transporto-me para o futuro, para o dia em que a Magui há-de partir, muito curvadinha e velhinha, e sei que, nesse instante, as pernas não vão só ficar trémulas, vou ficar tetraplégica por alguns minutos, talvez horas, e cair estatelada no chão sem conseguir chorar ou dizer uma palavra.

Chorar no corredor dos congelados.

Mas porque é que ela faria isso, mamã?
E o João a abraçar-me, e eu a tirar os packs de quatro leites de chocolate radioactivos que deixam manchas que não saem nem à força da lixívia, eu sem acreditar, a chorar com soluços, e os fregueses de Alvalade a passarem com os seus cestos do Lidl sem sequer olharem para trás, como se fosse perfeitamente curriqueiro, ordinário, comum, que alguém irrompesse em lágrimas junto à pimenta e à mostarda. E o João a chorar também, parece-me, e isto é coisa de amor gigante.

Depois, as lágrimas de crocodilo, as lágrimas de crocodilo são também belas, quem me disser o contrário não sabe do que fala, eu estive hipnotizada no lencinho de mão da carpideira réptil que sempre quis mal à minha querida vizinha, que me contou a Magui, era enfermeira. A vizinha. Não a carpideira. E as capelas da Servilusa, na Igreja hedionda de Santa Joana Princesa, onde, outrora, durante muitos, muitos anos, havia um canavial pegado à Quinta dos Lagares d’El Rei, as capelas com tapetes de arraiolos no chão e serviço de cafetaria na mezanine, e o sermão despropositado do padre a quem não terão, certamente, dito que a defunta era uma velhinha voadora desesperada, que ninguém decide quando é a hora de morrer, belíssimo, estaria bêbedo, e a minha boca aberta de espanto, tudo perfeito, a começar na racha na parede ao meu lado, como se naquele instante tivesse havido um pequeno terramoto, e o filho da dona Teresa, no fim, a dar-me uma palmadinha no ombro e a pedir,

não chore,

e depois, logo a seguir a mim, a ir socorrer depressa a empregada, a mulata escultural de traseiro que não obedece às regras básicas da gravidade, que trouxe um enorme ramo de orquídeas com um laçarote roxo.

(a dona Teresa gostou muito delas)

E o pai da Isabel, a quem chamavam cachalote fora d’água na quarta classe, a Isabel que, agora sim, está disforme e parece ser minha mãe, que numa aula de olaria respondeu à pergunta
o que é a lambugem?, com a simplesmente genial reposta, A lambugem é para lambujar o barro.
Toma lá, que a miúda nem era nada parva e não se sintam diminuídos se não souberem o que é lambugem, eu também não vou dizer porque não sou nenhum dicionário, só que a Isabel teve um filho do mecânico da rua em idade imprópria, mas o seu pai, que surpresa incrível, é cangalheiro e eu conhecia-lhe apenas os dotes de mago com os mais pequenos, mas, afinal, até faz bastante sentido - mortos, bebés, são todos anjos, e o senhor de baixa estatura e de armações dos anos 70 tem esse fado nesta vida.
E há um vestido de noiva, o mais simples e o mais barato de uma loja nos arredores da feia Leiria, que o Leonardo insiste que é bonita apenas porque aquele pedaço de terra onde seria bem-vindo um tsunami é teimosamente conservador. E há uma demanda pelo véu perfeito, com renda de guipure, ou veneziana. E um café de fino mau gosto, obra de autor, inenarrável, coisa para foto-reportagem detalhada, os estuques nos tectos, as pedras nas paredes, a escolha cromática, os tecidos, os bibelots, as plantas de plástico, um espaço que é um vórtice, uma outra dimensão, e que, num toque de fairplay incrível, colocou no letreiro comercial o seguinte nome de baptismo: Sem Niveau.

sexta-feira, outubro 20, 2006

Simples

Foi tão simples quanto isto, levantou-se, chovia, e era um dia bom para morrer. Chovia que Deus a dava, alguém choraria por ela assim, os céus vestir-se-iam de cinzento muito escuro e chorariam por ela durante dois dias e duas noites. Soube, na noite anterior, no boletim meteorológico, que também os ventos se levantariam por ela, rodopiando e arrancando telhados de zinco e chassis de auto-caravanas, foi tão simples que dói: olhou-se ao espelho, cabelo branco em desalinho, sobrancelhas cinzentas escuras, um buço que teimou em grudar-se debaixo do nariz e por cima da boca depois da menopausa, lavou a cara e sorriu, o dourado dos caninos de metal precioso onde fixava a esquelética reluziu como se fizesse sol junto à banheira, despediu-se da empregada, deu-lhe a folga merecida, adeus e até amanhã, fechou a porta à chave, sentou-se no sofá, ao seu lado estava o fantasma do seu companheiro de olhos azuis turquesa, e na alcatifa, o arfar do espectro do cãozito schauwzer anão que os acompanhou na entrada da terceira idade, levantou-se, tocou ao de leve, um roçagar, nas paredes que o seu marido construiu a pulso, foi à cozinha, bebeu um copo de água, deixou a porta do armário aberta, espreitou, do alto de um nono andar, o jardim enlameado e as arvorezitas que daqui a cinquenta anos serão finalmente gente e sombra, abriu a janela, não pensou em nada, não chorava, subiu à banqueta, fechou os olhos e decidiu que a vida acabava num voo rápido.

Este blogue está de luto carregado. Porque foi assim. Simples.

sábado, outubro 14, 2006

Salmoura

Os amigos riram-se bem alto quando ela disse que a vida lhe era madrasta e que, agora, todos os dias pareciam sextas-feiras treze, que os azares se sucediam em catadupa um atrás do outro, tanta má sorte apenas porque o patrão fechou o armário do economato à chave e ela, assim, já não podia ser feliz às custas de roubar material de escritório.
Crise, ditaram eles, e agora já não mais podia armazenar caixas de clips na gaveta da secretária, nem levar pilhas para o comando do televisor lá de casa (infelizmente, não havia no armário pilhas para o vibrador, era à sua custa e à de pilhas alcalinas das lojas chinesas que se perdia em prazeres solitários).
Estavam racionados, os clips, as canetas e os blocos de folhas muito finas, e ela não sabia se havia de rir ou de chorar quando o guardião do economato lhe ordenou para estender a sua mão direita em concha e lhe depositou meia dúzia de exemplares de design ordinário, muito brilhantes, contabilizados sem margem para desperdícios.
Esta era mais uma das suas estapafúrdias interpretações da realidade e do destino, mas a melhor de todas as histórias mirabolantes, pelo menos dos últimos tempos, era a perturbação que lhe causou um episódio que aconteceu numa tasca onde a cozinheira abusava do sal e em que todos os petiscos eram servidos em salmoura.
Naquele dia, sugerira ao senhor Zé para colocar um aviso na porta da tasca a proibir a entrada de hipertensos, mas o senhor Zé não era dado a ironias, na verdade, nem sequer ouviu o que ela disse, presumiu que fossem duas doses de febras, uma Coca-Cola e uma água do Caramulo (no final, uma das bicas seria com adoçante). É que nesse dia era dia de cozido, e em salmoura ou não, a casa estava a abarrotar, e o senhor Zé achava-se telepata, ou isso, ou leitor de lábios, como um surdo.
Aquele casal gosta mesmo de febras, dizia o pessoal da tasca na paz do rescaldo dos almoços servidos à base de sal marinho, mas o que eles não sabiam é que nem importava se a carne era tenra, ou sola de sapato, se era saborosa ou sensaborona, o que interessava mesmo era a dose diária de cloreto de sódio que tinha que ser ingerida, sob pena de uns tremeliques e dores de cabeça durante a tarde.
Numa mesa próxima da nossa heroína, num destes dias, em dia de cozido, um casal almoçava com o seu par de filhos. Já estavam bem aviados, pensou ela, olhando para a mais velha, uma miúda doce, agarrada ao calor do regaço da mãe, e um terrorista que teimava em fazer que faz com o hambúrguer que jazia no prato, sentado ao lado do pai. Uma mãe de cabelo curto preto e feições finas desenhadas numa pele branca e um homem com físico de segurança de discoteca, mas vestindo calções de malha. Os opostos atraem-se, lembra-se ela de pensar, sorrindo para o loiro chupado com quem decidira casar.
E como a criança que comeu todas as batatas fritas, mas não tocou na carne picada, implorou por um arroz doce, ela reparou no casal. Arroz doce era a droga, era o melhor da vida, e injustamente a balança laranja e o metabolismo lento como um caracol proibiam-na de se deleitar com o petisco. Por isso, e só por isso, memorizou o casal com o casal de filhos, e depois não se queixe, é que assim não há espaço suficiente para armazenar datas dos aniversários dos seus amigos, mas voltando ao que interessa, todos eles, o casal e o casal de petizes, falavam francês, se bem que o homem de porte de gigante também verbalizava num português sem sotaque.
E isto seria apenas mais uma informação irrelevante, não tivesse o casal francês bisado na tasca da salmoura, desta vez sem o casal de filhos, e não tivesse o destino feito das suas e sentado o casal dos heróis desta história lado a lado com o casal francês.
Nesse dia, 13, por sinal, dia de aparições de Fátima, já se adivinhava algo estranho: não pediram febras e o senhor Zé sorriu com malícia ao gritar o pedido para a copa da cozinha. Infelizmente, a escolha do cardápio, rolos de porco à Mexicana, vinham com pouco sal, mas realmente assustador nessa curtíssima hora de almoço foi que o casal falava francês desta vez expressava-se em castelhano perfeito.
O barulho da sala era estridente, rais'parta mais o cozido que lhe enchia a tasca pacata, era demais para um ouvido direito com uma otite aguda, e de repente, a heroína zangou-se com o seu amor, porque ele foi mau, analisado a frio, até foi bondoso como só ele sabe ser, apenas quis que ela não sofresse se o mundo não fosse o lugar menos mau que ela estava a defender que era, amuou, e conseguiu estar dez minutos sem abrir a boca, ou a abri-la apenas para entrar a carne insonsa.
E nisto, ouviu castelhano ao seu lado direito, da boca do casal que há uma semana falava fluentemente francês. Perdeu o equilíbrio, não sabe se foi da otite, mas ouviu o zumbido que a costuma avisar que está eminente a perda de sentidos, e distintamente, no fundo de uma sinfonia desafinada que pairava naquela tasca, lá da última mesa do restaurante, como se tivesse audição suprasónica, ouviu uma jornalista a falar do cavalo Mister Ed.
Não desmaiou e, das duas uma, ou tantas vezes se abeirou da loucura que algum dia a asa da cantarinha tinha que se partir, ou tem mesmo que se obrigar a comer comida salgada, muito salgada.

segunda-feira, outubro 02, 2006

Banda sonora

Já disse isto ao chefe, numa manhã em que quando ele chegou já ia eu no meu terceiro café grátis (por enquanto, aproveite-se o café enquanto ele dura, enquanto ele não tem questões de redundância para resolver no quarto piso) e quarto Davidoff fumado despudoradamente a um canto de uma redacção deserta.
A vida devia vir com banda sonora.

Ele chegou e perguntou-me pela performance do Ipod 30 Gygas que os malucos dos meus amigos decidiram oferecer-me no dia 22 de Julho, e eu respondi-lhe:

– Chefe, eu nunca tinha sentido a Fontes Pereira de Melo como senti esta manhã.

E depois percebi que ele não estava a seguir o meu raciocínio e expliquei-me melhor: – É a cidade, T, a cidade dói-me menos com a banda sonora certa.

Nesse dia, era Tiersen, pianinho do Good Bye Lenine e tudo pareceu perfeito: a bófia na esquina da António Augusto de Aguiar a guardar os operários que estavam armados em toupeiras dentro dos esgotos, as casas-fantasmas que só eu miro e admiro, até o Hotel Sana com a sua loja que vende galos de Barcelos e nossas senhoras de Fátima cujo manto é meteorológico (e vocês não podem imaginar o quão perfeita é a banda sonora sob a qual escrevo estas palavras, e por cima do som de anjos, e de espantas-espíritos feitos de pedacinhos de vidro, eu oiço os meus dedos a martelar, e parece mesmo que esta percussão doida faz parte da música) pareceram-me sublimes, e sou capaz de jurar que se pôs um céu de milagre quando atravessei a rua por um amaranhado de carros parados à espera, pacientes, de cehgar a sua vez de entrar na rotunda que está guardada por um leão.

O Ipod estava na mala quando, pela primeira vez e descaradamente, infringi a lei, não esquecerei, já tive um termo de identidade e residência por um crime grave que não cometi, queixa do outro que me fode o juízo de três em três semanas (quem mais poderia, não é?), e tudo me diz que sou capaz de me viciar nisto como em qualquer outra droga (não me deixem entrar no casino, por favor, é um pedido).

Ele viu-me as mãos a tremer, e até tirou uma foto das minhas bochechas rosadas, prestes a explodir, e o peito muito para fora, parecia três quilos mais magra, quase não respirava, e sussurava, os olhos nem pestanejavam e a voz saía com um tom que nunca se tinha ouvido. Na rua de baixo, o João pensava que eu já tinha ido presa. Quatro avenidas a seguir, a minha mãe de alerta máximo, prevenida de que, se calhar, teria que ir à esquadra, pagar a caução.

O Ipod ficou na mala, não era preciso: a vida decorre em película, às vezes com uns planos e argumentos muito maus, mas desta vez, os heróis da trama estavam bem iluminados, e os diálogos, ou a falta deles, prendeu os olhos de todos à tela, naquela tarde, as vacas foram a leilão na pala do Siza e dois seres descobriram um propósito na ausência. Esta era a banda sonora.

quinta-feira, setembro 28, 2006

A casa de onde não chegaram a sair dragões*, nem a entrar pombos pela janela


A questão é apenas esta, e à qual não vou responder, nem vou contar esta incrível história, pelo menos, enquanto o Da. não a for ver como só ele sabe ver, enquanto não ma trouxer em formato digital, para eu a poder guardar para sempre. A questão é tão somente esta: pode uma casa, uma casa, sim, é isso mesmo, são quatro paredes, e estas são de tabique, são telhas lá em cima, para que o mundo não nos caia em cima da cabela, são azulejos, portas, estuque, falo apenas de uma casa, pode uma casa pedir socorro? E, pior, pode uma casa pedir socorro em sonhos, e abrir todas as suas portas para que eu já a conhecesse, para que eu, já acordada, a acudisse?
E só pela Lyra, eu mostro os tesouros que uma casa, sim, que uma casa, me deu. A obra de Francisco Rodrigues Madeira saiu do lixo. O senhor António deu-me uma cadeira de baloiço e duas paletas de aguarelas. Mas eu resgatei quem as usou há cem anos atrás, quem foi deixado para trás. Eu já estou habituada a ter os mortos de ninguém a fazerem-me companhia. Esta casa já pode morrer em paz.

Eu não falo mais, espero as photos do Da. Para elas falarem também. Vamos fazer magia neste blogue.





*Alguém há-de entender o título, se acabar por sair um obituário que escrevi para o pasquim onde continuo até à data a não ser dispensável, apesar de me estar sempre a queixar que só me pagam 4,54 euros à hora.

** o Beta Blogger não me deixa postar mais fotos, querida Lyra.

segunda-feira, setembro 25, 2006

Este blogue não morreu,

parece que está na moda, deixá-los ao abandono, até que as estatísticas confirmem e atestem o seu óbito (o querido FTA emudeceu (eu linko-o hoje, porque isto pode funcionar na blogoesfera e no Sitemeter como o choque eléctrico de um fibrilhador automático externo no peito de uma pessoa em paragem cardiorespiratória) e eu ainda choramingo, já sem falar do mano Trafuncas por quem ainda solto um pouco de baba e ranho na voltinha matinal pela blogoesfera - foram todos para o Sol? Agora é lá que se fazem os blogues???).
Mas não, não morreu, está bom de saudinha, roliço e com rosto trigueiro, apesar de se vestir sempre de preto - é porque emagrece. e porque a cidade está cheia de pequenas mortes - e eu quero-vos contar mesmo isso: uma história de abandono. A cidade está cheia de pequenas mortes, repito o que escreveu um blogger que não ouso citar, ou então que se lixe, mais cem visitantes, menos cem visitantes, ele nem vai reparar, e é mesmo verdade, assisti hoje a uma morte anunciada e, por isso, tenho uma cadeira de baloiço de madeira no quarto e uma paleta de aguarelas dos anos 50 na chaminé da cozinha encarnada. E não é que não tenha os dedos cheios de vontade, de raiva, e de um tremelique ansioso que já não sentia há muito tempo, mas o Apple Ibook de onde escrevinhei, em tempos, sem parar, até as mais altas e pouco saudáveis horas da madrugada, está ocupado por alguém que coloca o jantar nesta casa, nos quinze dias do mês em que a minha fralência técnica me faz ganhar uma média de 0,33 cabelos brancos por dia.
Por isso, calminha que eu já volto. (São quase onze da noite, ainda não se jantou, a pequena toma banho na assoalhada laranja, trabalhei onze horas, o fantasma do despedimento é mesmo assim, e eu já posto, não tarda, uma foto das aguarelas e da cadeira que um morto me deu.)