Hábito
É uma questão de hábito.
É como lembrar-me de beber em jejum – e vinte minutos antes do almoço – a ampola laranja que queima gorduras e que sabe a capilé amargujado; é como acordar uns minutos depois das oito da manhã, ao segundo toque do despertador do Nokia azulito da saudosa lanterna (e eu continuo a recusar-me a acordar ao som do Nokia preto, o João faz-me a vontade, faz-me todas as vontades, atura todas as birras, está ao meu lado em todas as guerras, ele acerta o relógio do Nokia para as sete e quarenta e cinco, e ele toca e eu faço menu sete um um e meia cega determino que quero dormir mais quinze minutos e há de ser assim, há de continuar a ser assim, pelo menos enquanto o Nokia azul não se finar, enquanto não for lavado na máquina no bolso das calças como já aconteceu antes na história).
Mas se calhar estes também são uns hábitos idiotas.
Fuma-se menos, não se fuma ainda despudoradamente, e se o cigarro se acender à revelia seguramente aqui ninguém me culpará de um qualquer cancro. Atrás de mim há uma muralha de armários cheios de pastas cobertas por um manto de pó e de cotão, à frente, a ventoinha do Cerejo, na diagonal à direita, o gabinete do chefe supremo, depois há uma sala de reuniões com videoconferência onde perdi a voz no mês de Dezembro enquanto membro eleito da comichão de trabalhadores, a janela, a única janela que vejo, a que está longe demais, mostra-me aparelhos de ar condicionado espetados nas fachadas, não há gaiolas de periquitos como em Alfama, mas há marquises e idosas a estenderem cuecas cor-de-rosa.
Uma nesga de uma Livistona chinensis a sair de um terraço, telhas laranja brilhantes ao lado de betão e alumínio, e não vejo mais os plátanos que estão prestes a matar-me de renite daqui a mês e meio. Para quem não sabe, para quem não tem mesmo que saber, a Lisvistona é uma palmeira leque, e no fim-de-semana passado a cobertura de um prédio em Massamá ardeu, ardeu por completo, e o único ferido grave foi um polícia que se picou na perna com um ramo de palmeira, quem sabe se não seria uma Phoenix dactilifera, má sorte de um raio, nem uma queimadura para amostra, mas um arranhão de palmeira na perna a reportar, quem vai à guerra dá e leva, isto é como um bombeiro morrer afogado na albufeira, caramba, devia mas era ter estado calado, grande gozão que me saiu o médico do INEM, à frente, à minha frente, à frente da ventoinha, há televisores pequenos e uma prateleira cheia de cassetes VHS onde estão gravadas as notícias de ontem.
É uma questão de hábito, tudo é uma questão de hábito, aposto que a jornalista que usa calças pelo tornozelo apenas o continua a fazer por hábito, não pode ser por motivos estéticos, nem pela moda, é o habito, é o monge, e eu bebo litro e meio de água com quatro colheres de sopa medidas a olho de drenante de limão, fumo menos, escrevo menos, e quase que choro quando olho para a primeira página de um jornal que há-de estar nas bancas a 12 de Fevereiro.
É uma questão de hábito.
4 comentários:
Vais ver que é uma questão de hábito. Primeiro é sempre o choque e depois é a habituação. Mas isso já tu sabes.
Bjs
Neste blog as palavras voam ...
dia, minha crida, vou te mandar um mail a ver se achas passível de notícia. mando-te do meu endereço gmail. bjs mil
Pois é... é já uma questão de hábito vir a este seu blogue.
Fartei-me de rir com a história da perna do polícia do incêndio em Massamá.
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