domingo, abril 29, 2007

Fez uma noiva linda (e um noivo penteado)


Nas próximas três semanas, a meio do Oceano Atlântico, tudo sobre o casamento no Jardim da Estrela, desde o bouquet biodegradável, às lágrimas da Esquizo no hall de entrada de Santa Marta, à viagem no eléctrico 28, com os espanhóis a tirarem fotografias paa mais tarde recordar, e também a descida vertiginosa pelas escadinhas de Alfama abaixo (e eu a treinar para presidente da Junta, a distribuir beijinhos nos pátios, entre promessas de regressar em noite de Santo António para comer uma sardinha) e tantos, tantos outros momentos de uma história improvável e que eu quero interminável.

Três semanas, em frente à praia deserta, eu, o João, o diabrete loiro, e este computador.

Este blogue vai voltar a ser o que era.

PS - Muito feliz. Tão feliz que até estraguei as fotos, porque quando estou assim, radiante, rio muito e vinco o duplo queixo.

segunda-feira, abril 23, 2007

Leiria-Ralha

A noiva foi até Leiria, e Leiria pareceu-lhe menos feia, aliás, mais ou menos a meio da praça do centro histórico, onde procurava sem muita convicção uma caixa de brisas do Lis para trazer ao seu novo patrão – graxa danada, bem sei, mas o que fazer, a noiva tem destas coisas –, deliciou-se com o escafandro poisado no chão, à venda por 3500 euros numa feira de antiguidades ao ar livre, bateu no peito agradecida por mais uma imagem bizarra absorvida pelas suas retinas, e pediu até desculpa a Leiria por lhe ter chamado, há seis meses atrás, a mais feia de todas as cidades de Portugal.
É certo que o raio do vestido da noiva estava largo pelos nove quilos que a balança perdeu sem rasto nos últimos quatro meses (afinal não era assim tão chanfrada dos cornos por começar a dieta nas vésperas do Natal), é certo que não estava como esperado, como sonhado, com a magnólia e as tirinhas cor de vinho a caírem sobre a saia rodada – as madrinhas não disseram uau, o colar decidiu que não estava para ali virado e caiu sem graça sobre o regaço, apenas o véu, antigo, comprado no Ebay, deu um ar da sua graça naquele provador de um subúrbio de Leiria, onde há seis meses atrás um arco-íris rompeu pelo céu, junto à entrada para a A1.
A noiva foi até Leiria, e Leiria irá ficar no seu sobrenome, antes do Ralha, e só visto, nem dá para escrever o ar de espanto da funcionária da conservatória, em transe, quando o noivo lhe disse e voltou a dizer, não houvesse confusões, que ele é que ficava com o Ralha em último lugar. Leiria era uma cidade feia, não havia escafandro à venda no centro histórico que lhe valesse, nem mesmo o facto de o Leonardo, alegadamente, ter sido concebido algures em Leiria num hotel cujo colchão estava cravado de percevejos. Mas há apelidos averbados na certidão de nascimento que puseram Leiria no mapa de encruzilhadas que é a minha vida.

sexta-feira, abril 13, 2007

A Maldição do Alto Minho

Quando a noite cai, o silêncio desce as escadas desenhadas pelo Ventura Terra em pezinhos de lã, e desprendem-se das paredes luminescências que me fazem pensar sobre a maldição do Alto Minho.
As sapatas da porta 86 B da Rua de Santa Marta estão amaldiçoadas. Foram escavadas por cima das sepulturas de um cemitério índio. É tão simples quanto isto. Não pode, não arranjo outra explicação.
Nem sempre foi assim. Oiço relatos dos vizinhos que falam de uma taberna afamada, de uma cozinheira minhota de formas roliças, de um rodopio de febras e pipis, paredes pintadas com gordura e enxurradas de copos três e finos, que fariam transbordar o desolador chafariz do Largo de Andaluz.
O Alto Minho é um restaurante. É um restaurante simpático, irresistível pelo painel de azulejos monumental com vaquinhas e bois a puxarem uma carroça em Paredes de Coura.
O Alto Minho está amaldiçoado, só lá vai com água benta e crucifixo. Até lá, está condenado a este fado: abre, fecha, trespassa-se, arrenda-se. O Alto Minho não aguenta mais do que um mês com o letreiro da porta a dizer “Aberto”, mesmo com a imperial a 50 cêntimos. 50 cêntimos. Nem no boteco da D. Beatriz se bebe um café com 50 cêntimos.
É profundamente desolador. A mim entristece-me a maldição do Alto Minho.
Os vizinhos do restaurante Andaluz, na porta 84 B, têm a casa sempre cheia. Uma refeição ronda, em média os 15 euros por pessoa, e não há quem diga aos vizinhos que o raio das azeitonas não são lá grande coisa, e que, já agora, mudavam o fornecedor do queijo que não sabe rigorosamente a nada. Mas é vê-los todas as semanas com o mesma ementa afixada na porta, é vê-los todas as semanas a abarrotar. À hora do almoço e à hora do jantar.
Na porta ao lado, nem uma mosca se atreve a zumbir dentro das quatro paredes amaldiçoadas do Alto Minho.
Por vezes vamos lá. Não tememos.
Os olhares dos empregados já não têm uma réstia de esperança – devem já ter ouvido falar da maldição do Alto Minho. A lenda espalha-se de ouvido em ouvido, toda a gente a conhece de cor, como uma lenga-lenga.
A rapariga que nos serve o jantar está, sempre, sem excepção, à beira de um ataque de nervos, deita faísca pela ponta dos dedos e aquilo enternece-me, derreto-me com o nervoso miudinho e um misto de ansiedade infantil de quem acabou de desembrulhar um presente, quando chegamos e, apesar de todas as mesas estarem vazias, pedimos para nos sentar na zona de fumadores.
Depois, desdobra-se em atenções dignas de restaurante de primeira categoria: serve as bebidas, por vezes não lhe corre lá muito bem, entorna um bocadinho para fora do copo, mas nós não dizemos nada, nem nos atrevemos, mesmo quando ela não entende o pedido, ou se engana, nós temos medo que ela desate a chorar de desalento, desfazemo-nos em elogios à comida, ao serviço, em jeito de consolo, em jeito de a culpa não é vossa, a culpa é da Maldição do Alto Minho, e ela lá atura a Carolina com a maior das paciências, dá-lhe todas as palhinhas que o seu capricho de diabrete loiro entende pedir.
O Alto Minho tem os melhores secretos de porco preto de Lisboa. Sopa, azeitonas, pão, manteiga, prato, bebida, sobremesa (salva de palmas para a mousse de chocolate – caseira, com raspas de chocolate branco) custa 7,5 euros.
O Alto Minho deve estar quase a fechar as suas portas. E assim vai ficar, com o placard da agência imobiliária na porta, até que algum empresário do ramo da restauração que não tenha lido a newsletter da ARESP, o reabra.

Pelo sim, pelo não, sem medo da maldição, hoje vou lá jantar.

quinta-feira, abril 05, 2007

quarta-feira, abril 04, 2007

Nasceu uma criança com as mãos coladas*

Por estes dias, encontro-me profundamente encantada pela total ausência de expressões faciais da empregada de mesa Irina.

Subo até ao terceiro andar, de elevador, depois, passo pelo chão ladrilhado a preto-e-branco e treino algumas jogadas de mestre do xadrês da minha vida,

[encurralo o rei, como um cavalo, esquivo-me da torre e preparo-me para um eminente xeque-mate, isto tudo num pulinho e a caminho dá acesso à escada estreitinha por onde trepo para a mansarda]

cheguei, e tranco-me no quarto de banho desenhado pelo arquitecto Ventura Terra,

[também ando hipnotizada com a planta deste edifício, às vezes perco-me pelos tectos altos do meu gabinete e imagino-o – vou agora ver na wikipedia a cara dele –, sentado em frente ao estirador, regra e esquadro, tês, aparos vários espalhados, frascos de vidro soprado a transbordarem manchas de tinta-da-china que poderiam inspirar testes psiquiátricos acaso alguém se desse ao trabalho de reparar nelas, o Ventura Terra a desenhar estas salas, os jardins-de-inverno, os motivos florais da fachada, o desenho arte nova do corrimão da escada, e até a casa-de-banho, penso que é um privilégio fazer xixi num prémio Valmor e fico agradecida, eternamente agradecida pela experiência]

e tento, tento muito, tento não devolver ao espelho uma careta, tento, porque me dava jeito dos diabos ter cara de autómato, gostava de saber mentir com cara de guarda nacional republicano, dava um bocadinho do meu cabelo para não ser tão transparente, cara cuspida e escarrada do que se passa cá dentro nas entranhas, tinha piada e até fazia bem à pele ser como a Irina, porque tenho 28 anos e esta cara bolachuda já está riscada a x-acto, porque me rio muito, porque me preocupo muito, porque, em tempos, chorei muito.

[há meia dúzia de anos, eu a chegar à redacção do Lambert que tinha os tectos radioactivos, a chegar para fazer as bolsas com traje escuro a preceito, muito arranjadinha, nessa noite, eu não sabia, eu apenas julgava que ia à inauguração de mais uma exposição do Zé Ralha, mas nessa noite, com aquela blusa de seda verde-seco, eu conheci a Amália e os seus dentes bamboleantes, e a Sílvia Oliveira dispara esta para o ar, que me persegue sempre que me cruzo com um bocadinho de areia que se transformou em espelho, Ela tem cara de bebé; não tem uma única ruga.]


Mas por mais que treine nas instalações sanitárias protegidas pelo Ippar não consigo, e acabo sempre por constatar que tenho um pelo da sobrancelha muito mais comprido que os outros e arruivado.

Os dias passam-se assim. Num gabinete desenhado pelo Ventura Terra. Num imóvel classificado, onde todos, ou praticamente todos, lêem as entranhas deste blogue (e eu com vontade de picotar os pulsos a cada revelação dos leitores do Tralha).

Os dias passam e eu na expectativa de ver uma expressão qualquer estampada na cara da empregada de mesa Irina.

*Nasceu, ou talvez não, algures no Brasil, numa terra chamada Itaguaí, uma criança com as mãos coladas, como se tivesse passado nove meses quietinha, a rezar no ventre materno. Esse nascimento – que não consigo confirmar porque tenho muito que fazer – vale cem visitas diárias ao Tralha, reencaminhadas pelo Google brasileiro. Diz o mito que quando os médicos cortaram a fina membrana que unia as mãos do nascituro aconteceu um milagre. De facto, o Tralha só não morreu por causa disso. Mas não sei se é obra de Deus.

** Lamento, caro leitor do Google brasileiro: Não faço ideia como se monta uma fábrica de sabões no quintal...