Quando a noite cai, o silêncio desce as escadas desenhadas pelo Ventura Terra em pezinhos de lã, e desprendem-se das paredes luminescências que me fazem pensar sobre a maldição do Alto Minho.
As sapatas da porta 86 B da Rua de Santa Marta estão amaldiçoadas. Foram escavadas por cima das sepulturas de um cemitério índio. É tão simples quanto isto. Não pode, não arranjo outra explicação.
Nem sempre foi assim. Oiço relatos dos vizinhos que falam de uma taberna afamada, de uma cozinheira minhota de formas roliças, de um rodopio de febras e pipis, paredes pintadas com gordura e enxurradas de copos três e finos, que fariam transbordar o desolador chafariz do Largo de Andaluz.
O Alto Minho é um restaurante. É um restaurante simpático, irresistível pelo painel de azulejos monumental com vaquinhas e bois a puxarem uma carroça em Paredes de Coura.
O Alto Minho está amaldiçoado, só lá vai com água benta e crucifixo. Até lá, está condenado a este fado: abre, fecha, trespassa-se, arrenda-se. O Alto Minho não aguenta mais do que um mês com o letreiro da porta a dizer “Aberto”, mesmo com a imperial a 50 cêntimos. 50 cêntimos. Nem no boteco da D. Beatriz se bebe um café com 50 cêntimos.
É profundamente desolador. A mim entristece-me a maldição do Alto Minho.
Os vizinhos do restaurante Andaluz, na porta 84 B, têm a casa sempre cheia. Uma refeição ronda, em média os 15 euros por pessoa, e não há quem diga aos vizinhos que o raio das azeitonas não são lá grande coisa, e que, já agora, mudavam o fornecedor do queijo que não sabe rigorosamente a nada. Mas é vê-los todas as semanas com o mesma ementa afixada na porta, é vê-los todas as semanas a abarrotar. À hora do almoço e à hora do jantar.
Na porta ao lado, nem uma mosca se atreve a zumbir dentro das quatro paredes amaldiçoadas do Alto Minho.
Por vezes vamos lá. Não tememos.
Os olhares dos empregados já não têm uma réstia de esperança – devem já ter ouvido falar da maldição do Alto Minho. A lenda espalha-se de ouvido em ouvido, toda a gente a conhece de cor, como uma lenga-lenga.
A rapariga que nos serve o jantar está, sempre, sem excepção, à beira de um ataque de nervos, deita faísca pela ponta dos dedos e aquilo enternece-me, derreto-me com o nervoso miudinho e um misto de ansiedade infantil de quem acabou de desembrulhar um presente, quando chegamos e, apesar de todas as mesas estarem vazias, pedimos para nos sentar na zona de fumadores.
Depois, desdobra-se em atenções dignas de restaurante de primeira categoria: serve as bebidas, por vezes não lhe corre lá muito bem, entorna um bocadinho para fora do copo, mas nós não dizemos nada, nem nos atrevemos, mesmo quando ela não entende o pedido, ou se engana, nós temos medo que ela desate a chorar de desalento, desfazemo-nos em elogios à comida, ao serviço, em jeito de consolo, em jeito de a culpa não é vossa, a culpa é da Maldição do Alto Minho, e ela lá atura a Carolina com a maior das paciências, dá-lhe todas as palhinhas que o seu capricho de diabrete loiro entende pedir.
O Alto Minho tem os melhores secretos de porco preto de Lisboa. Sopa, azeitonas, pão, manteiga, prato, bebida, sobremesa (salva de palmas para a mousse de chocolate – caseira, com raspas de chocolate branco) custa 7,5 euros.
O Alto Minho deve estar quase a fechar as suas portas. E assim vai ficar, com o placard da agência imobiliária na porta, até que algum empresário do ramo da restauração que não tenha lido a newsletter da ARESP, o reabra.
Pelo sim, pelo não, sem medo da maldição, hoje vou lá jantar.