terça-feira, junho 12, 2007

IV

Aqueles foram os dias de todas as certezas.

Numa cama de pinho, dentro do quarto da empregada, uma assoalhada desenhada à margem do regulamento geral das edificações urbanas por um arquitecto sem coração, um rectângulo estreito e comprido mais pequeno do que o hall da entrada que a empregada teria que espanar e aspirar, eu dormia ali, encolhida, esmagada pela companhia de um estrado de madeira, que, por sua vez, dormia de pé atrás da porta, um metro e oitenta de altura por sessenta centímetros, em equilíbrio encostado à parede, penso que era um estrado de cama, só agora penso nisso e, sim, era um estrado de madeira reciclado quando ninguém falava disso, e nesse pedaço de madeira, que era uma espécie de retábulo gigante, um Cristo, com o que eu me lembro de ser um Cristo, mas um Cristo com um prego espetado na cabeça que lhe chegava até às narinas, que dormia comigo no quarto da empregada. O quarto e o retábulo em tons de anil e de preto, e, por vezes, os aviões que se faziam à pista da Portela planavam tão baixinho que os vidros do quartinho da empregada estremeciam de medo, ou de susto, e eu estendida por cima do colchão de espuma, por vezes aconchegada pelos lençóis azuis-escuros com florzinhas, outras, tapada com os motivos geométricos laranja e pretos, e eu com medo do devir, com medo dos aviões que estremeciam os vidros do quarto da empregada e, também, com medo do Cristo com o prego espetado na cabeça, mas sobretudo aterrorizada com o devir, eu, toda a vida com medo do devir, a pensar se seria a empregada já que dormia no quarto que lhe estava destinado, eu com dores de barriga a avançar como se tivesse tirado dobles quando atirei os dados por cima da mesa e a franzir o sobrolho às escuras, sob o olhar atento do Cristo pregado encostado à parede, e a magicar se teria mamas grandes ou pequenas, a rever a minha vida toda à frente dos olhos, a ver os filhos, os netos, a minha mãe velhinha junto de mim, eu aterrorizada com todas as incertezas, com todas as possibilidades, com todos os caminhos e isto com apenas seis ou sete anos de idade.

Mas aqueles foram os dias de todas as certezas. E nem por um instante o devir me electrocutou as entranhas, não fez disparar o meu coração, não badalou como um carrilhão na minha cabeça; a partir daqueles dias, eu sabia que não havia certezas, e essa é a maior das certezas que poderia trazer comigo atrelada.


O Idea seguiu em piloto automático até à Vila Nova.

No Verão em que carreguei duas vidas dentro de mim, andara por ali, perdida, à procura da oficina, mas o Twingo parou antes de a encontrar, e o Zé Ralha não teve outro remédio senão o empurrar, e eu grávida dentro do carro, a capota aberta e o sol a fritar-me a moleirinha, eu a enfiar a custo a segunda e o carro sem pegar, o Zé Ralha com um ataque de asma lá atrás com a língua de fora e a grunhir, e eu a rir que nem uma perdida a assistir ao espectáculo pelo retrovisor, e uma descida, finalmente uma descida, e o meu pai a ficar pequenino pelo espelho retrovisor, e o carro finalmente a pegar, e eu estacionar o Idea e não o Twingo no mesmo sítio, em frente à Igreja, e pelo sim pelo não, a olhar pelo retrovisor à procura dos caracóis prateados do meu pai.

Não estava lá.

E fumámos um cigarro para ganhar coragem.

O primo aleijado a babar para o meu decote, e o meu octogenário avô a soluçar como uma criança que perdeu a mãe, os meus irmãos, os irmãos dos meus irmãos, as mulheres do meu pai, a que encarnou o papel de viúva, a minha querida Mónica, e eu sem medo do devir, a beijar primos cujas feições não tenho sequer ténue recordação, eu a chegar, zangada com a coberta de nylon barato a tapar o meu pai, ele merecia não menos que brocado de seda carmim, e eu com vontade de rir por causa do naperon que lhe tapava a cara, inquieta por momentos, com a certeza que não lhe teriam colocado na lapela a cruz de Cristo e em cima do seu corpo a sua espada favorita, eu com uma coragem que julgava ter-se sumido numa qualquer derrota, numa qualquer provação, eu a tirar-lhe o naperon de cima do rosto, a ter que lhe tirar o ridículo do naperon de cima do rosto, para me certificar que ele estava em paz, do lado direito, um hematoma salpicado, mas ele estava a dormir, em paz, e eu tirei da minha cabeça a imagem telefónica que o Leonardo me passou com um oceano de distância a separar-nos, que ele estava com ar de espanto, que ele não teria ido em paz, que queria mais um gole de vida, só mais um gole de vida.

Vila Nova estremeceu e nenhum dos seus pacatos habitantes sentiu o abalo. Talvez, na oficina onde a bateria do Twingo foi substituída, se tenha fundido um fusível. Estávamos lá todos, na pequena capela, cercada de árvores mortas de sede. Os filhos. Os outros filhos. As mulheres que se traíram umas às outras no passado. A família que raramente telefonava.

O morto, de facto, não se levantou do caixão e, afinal, não caímos todos caído num engenhoso ardil por si arquitectado com o intuito de nos juntar à sua volta.

Mas os fins justificam o meio.

O fenómeno sobrenatural que eu tanto pedira, que eu tanto procurara nos céus e nas árvores da ilha do arcanjo, estava ali para quem o quisesse apanhar e levar consigo para casa.

Aquilo foi separado em vida, voltou a unir-se no dia em que ele ficou para sempre a pairar num jardim sobrepovoado de palmeiras.

terça-feira, junho 05, 2007

III

É praticamente um distúrbio psicológico, um pensamento intrusivo que não me larga, que me faz acordar a meio da noite, e em Santa Marta eu não posso ir para o telhado e ver o dia a nascer por cima do mar de São Miguel. É um despertador que me assusta sempre que o fórum tsf vai a roncar em surdina nas quatro paredes do Fiat Idea, que me ultrapassa à má-fila, um segundo antes de eu bater com o polegar esquerdo na alavanca do pisca para ultrapassar uma fila compacta de carros parados pela passadeira vermelha do corredor bus.
Não me serve de nada, já não servia antes, muito menos agora, mas eu nasci três dias depois dele, e eu fui a maior de todas as vinganças e de todos os golpes que a vida lhe desferiu. Mais do que a glória que tardava e que acabou por não chegar nunca, nem na hora da morte, eu talvez seja a maior das suas cicatrizes, aquela que mais difícil foi de reduzir a cinzas no Alto de São João.
O pintor José Ralha morreu e a sua obra que anda por aí espalhada e pendurada nas paredes de tanta gente, a sua vida nem que fosse a vida que ele pintou a óleo, em tela, ou mesmo em azulejos de casa-de-banho, não valeu nada, resume-se a uma breve de 300 caracteres no Correio da Manhã e dois anúncios na página da Necrologia do líder de vendas nacional.

Eu era, eu sou a filha favorita, a mais parecida, a que traz para casa desconhecidos e não hesita em lhes chamar de imediato de amigos, a que atrai o extraordinário e todos os vagabundos, a que se enche de conhecimentos inúteis e decora o nome científico das plantas e das árvores, a que tem todos os sonhos do mundo na palma da mão, a que ainda é uma promessa, a que, de vez em quando, consegue ser sublime.

E eu fui a filha, a única filha, o tesouro que ele não pôde tocar, que apenas pôde seguir de muito longe por papel fotográfico, ou em folhas A4 desenhadas na secretária do senhor secretário de Estado do Ensino Superior a pedido da avó Zá.

Num Domingo feliz que passou, no Domingo mais feliz que já se viu nos últimos 28 anos, eu cheguei atrasada ao Jardim da Estrela. Fumaram-se cigarros de enfiada junto à Basílica da Estrela, dentro de um pequeno Smart imobilizado com os quatro piscas, para que se cumprisse a tradição da noiva atrasada, um atrás do outro, para mascarar a ansiedade de uma noiva que devia ter mandado às urtigas uma tradição idiota que colide com a sua doentia demanda pela pontualidade.

Eu sabia que ele ia estar lá, à margem, longe do grande grupo que se concentrava dentro do Coreto, eu sabia que ele atravessara o Tejo apenas para dizer olá e adeus. E eu sabia, eu sempre soube que era a favorita, por isso, esperei até à última semana para anunciar que me ia casar, sabia que tudo me seria perdoado, sabia que ele viria, que aceitaria o convite tardio em jeito de artista destrambelhada que era a menina do seu pai.

Ele disse, foi a última coisa que me disse, isto persegue-me há precisamente um mês, desde que o telefone tocou junto ao asqueroso edifício propriedade da segurança social de Ponta Delgada. Ele disse, e aquilo encheu-me de uma satisfação maquiavélica, de quem ri por último ri sempre melhor, porque se eu era a favorita porque é que tantas mulheres da sua vida já tinham passado para a tela e eu não.

Ele disse: Estás tão bonita. Vou pintar-te um retrato.