III
É praticamente um distúrbio psicológico, um pensamento intrusivo que não me larga, que me faz acordar a meio da noite, e em Santa Marta eu não posso ir para o telhado e ver o dia a nascer por cima do mar de São Miguel. É um despertador que me assusta sempre que o fórum tsf vai a roncar em surdina nas quatro paredes do Fiat Idea, que me ultrapassa à má-fila, um segundo antes de eu bater com o polegar esquerdo na alavanca do pisca para ultrapassar uma fila compacta de carros parados pela passadeira vermelha do corredor bus.
Não me serve de nada, já não servia antes, muito menos agora, mas eu nasci três dias depois dele, e eu fui a maior de todas as vinganças e de todos os golpes que a vida lhe desferiu. Mais do que a glória que tardava e que acabou por não chegar nunca, nem na hora da morte, eu talvez seja a maior das suas cicatrizes, aquela que mais difícil foi de reduzir a cinzas no Alto de São João.
O pintor José Ralha morreu e a sua obra que anda por aí espalhada e pendurada nas paredes de tanta gente, a sua vida nem que fosse a vida que ele pintou a óleo, em tela, ou mesmo em azulejos de casa-de-banho, não valeu nada, resume-se a uma breve de 300 caracteres no Correio da Manhã e dois anúncios na página da Necrologia do líder de vendas nacional.
Eu era, eu sou a filha favorita, a mais parecida, a que traz para casa desconhecidos e não hesita em lhes chamar de imediato de amigos, a que atrai o extraordinário e todos os vagabundos, a que se enche de conhecimentos inúteis e decora o nome científico das plantas e das árvores, a que tem todos os sonhos do mundo na palma da mão, a que ainda é uma promessa, a que, de vez em quando, consegue ser sublime.
E eu fui a filha, a única filha, o tesouro que ele não pôde tocar, que apenas pôde seguir de muito longe por papel fotográfico, ou em folhas A4 desenhadas na secretária do senhor secretário de Estado do Ensino Superior a pedido da avó Zá.
Num Domingo feliz que passou, no Domingo mais feliz que já se viu nos últimos 28 anos, eu cheguei atrasada ao Jardim da Estrela. Fumaram-se cigarros de enfiada junto à Basílica da Estrela, dentro de um pequeno Smart imobilizado com os quatro piscas, para que se cumprisse a tradição da noiva atrasada, um atrás do outro, para mascarar a ansiedade de uma noiva que devia ter mandado às urtigas uma tradição idiota que colide com a sua doentia demanda pela pontualidade.
Eu sabia que ele ia estar lá, à margem, longe do grande grupo que se concentrava dentro do Coreto, eu sabia que ele atravessara o Tejo apenas para dizer olá e adeus. E eu sabia, eu sempre soube que era a favorita, por isso, esperei até à última semana para anunciar que me ia casar, sabia que tudo me seria perdoado, sabia que ele viria, que aceitaria o convite tardio em jeito de artista destrambelhada que era a menina do seu pai.
Ele disse, foi a última coisa que me disse, isto persegue-me há precisamente um mês, desde que o telefone tocou junto ao asqueroso edifício propriedade da segurança social de Ponta Delgada. Ele disse, e aquilo encheu-me de uma satisfação maquiavélica, de quem ri por último ri sempre melhor, porque se eu era a favorita porque é que tantas mulheres da sua vida já tinham passado para a tela e eu não.
Ele disse: Estás tão bonita. Vou pintar-te um retrato.
7 comentários:
até me arrepiei... continuam mt bonitos os teus textos, mt mesmo. Bjs
Quando é que te resolves a escrever um livro?
Muito bom.
Fizes-te-me chorar e pensar que tambem ficaram por pintar dois dos meus retratos.
Fiquei toda arrepiada ao ler isto. Lágrimas caíram a pensar, o meu coração ficou minúsculo. Hoje tenho que dizer a quem precisa que gosto delas, que fazem falta, que têm feito muita falta no meu dia-a-dia que se tornou irreal.
Um grande beijinho e vai tudo passar, és um furacão da natureza.
Passei aqui por acaso e realmente foi com uma grande satisfaçao q li este artigo q ta mt mt mt fixe! Espero q continues smp assim, a escrever dessa forma q tao bem toca nos coraçoes de quem le
A vida é uma puta! [reli e não me ocorre mais nada]
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