O portageiro feliz
A Teresa diz que não conhece mais ninguém assim, que se dê ao trabalho, para quê, que bem há-de vir ao mundo, nenhum, nenhum mesmo, muitas vezes é assim – é tão raro, só que há mais gente como eu, a Magui vê trevos de quadro folhas do parapeito da janela do seu segundo andar, e eu vejo histórias que me atropelam porque precisam de ser contadas, cada um com o seu fardo, cada qual com a sua sina.
Mas se nada se ganha, também não se perde coisa alguma, não custa muito, um minuto basta para que o mundo dê um soluço (e geralmente alguém tropeça nesse instante). E eu aprendi, eu sei lá bem com quem é que aprendi isto, que devo parar, para recuperar o fôlego, para esticar as pernas e imediatamente a seguir ouvir o estalido do meu joelho doente, devo impor-me uma pausa e pedir ao coração que não me saia da boca para fora, eu devo parar. E às vezes, sou travada, não sou eu que decido parar – às vezes paro para memorizar as janelas do 120 da Duque de Loulé e sou abalroada por gente com pressa de apanhar o 22 –, mas consigo congelar o curso natural das coisas, nesse instante não se ouve senão o ruído fininho do silêncio, apesar de os escapes, esses, continuam a emitir mais CO2 do que o estilete de papel que levo à boca, e que me queima os lábios, e nisto vem um ganido do violino desafinado à saída do túnel da República, e o mais incrível de tudo é o sorriso dourado, doce, eu revejo-me naquele sorriso, do homem que pede esmola à chuva por entre a fila de para-choques sujos.
O melhor dos meus dias não tem a ver com os sapatos caros que compro quando estou triste, esvaziada, e que depois me torturam o calcanhar, mas que me fazem a coxa e a barriga da perna perfeitas, deliciosas, por vezes, não é mais do que isto, por acaso, às vezes estou atenta no instante em que coisas raras acontecem (e a minha mãe coloca mais um trevo de quatro dentro da página de algum livro da biblioteca, ao lado dos olhos atentos de vidro das bonecas com pele de porcelana), e raios me partam, às vezes até me passa pela cabeça tirar o estilete de papel, e ter lábios perfeitos, sem quimaduras.
Há dias, raros, rarefeitos, incríveis, em que o portageiro sorri também. E diz mais do que um murmúrio inaudível que deveria soar qualquer coisa como boa viagem. E quando isto acontece, continuamos a viagem, e ela é mesmo mais prazeirosa, e pisamos o tabuleiro metálico da ponte sem que nos importe o zumbido do vento que vem dos segredos do Tejo; quando assim é, seguimos um pouco mais felizes porque o portageiro também o é.
No tabuleiro da Ponte sobre o Tejo, na cabine 14, tem que se pisar o Bus, seguir sempre pelo Bus, o portageiro feliz ganha a sua vida, fechado num aquário de um metro quadrado, e é mais feliz do que os escravos que me abalroam quando algo me obriga a parar, é mais feliz porque sim, sem dinheiro amealhado em horas e pestanas incineradas em frente a um monitor, sem casas espaçosas, postos de trabalho ergonómicos, sem qualquer motor de alta cilindrada estacionado na rua onde de certeza brotam trevos de quatro folhas.
Olá, boa noite, como está? (os olhos ainda marejados pelas árvores arrancadas ao solo para passar o metro da margem sul do Tejo, se calhar um suspiro por ele ser a primeira visão depois da lenha cortada para cima dos carris).
Há tanto tempo que não passava por aqui, está tudo bem consigo? (espreita para o banco de trás, a Carolina dorme). A menina está tão crescida. É linda…
Ele não sabe que eu acredito que ele saiba perfeitamente quem sou eu, apesar de só lhe ter esticado o cartão da águia azul três vezes na cabine 14 da Ponte sobre o Tejo.