the end
Um dia acordas e estás sem palavras, esgotaram-se as histórias e os teus sonhos não começam mais por era uma vez.
Mesmo assim, continuas a gastá-las todos os dias, saem-te da boca para fora, só que agora já não brincas com elas, não as vês como um gigante puzzle ou quebra-cabeça que vais conseguir dobrar porque és brilhante, porque sempre conseguiste ordenar o caos e dele fazer qualquer coisa dolorosamente bela. Agora, garantes serviços mínimos, e usas as tuas palavras apenas para vender empresas e produtos, e nem tudo é mau, talvez nem tudo esteja perdido, porque ainda as consegues usar diariamente – antes, elas é que te usavam a ti, aí reside a grande diferença –, e convences sempre, aqui e além, alguém um pouco mais distraído, que é mesmo assim como estás para aí a dizer (nunca é) porque tens que ganhar um salário, para pagar as tuas contas, para dar o melhor aos teus filhos.
(estás tão crescida, nunca achei que te saísses tão bem, apesar dos pesares)
Da tua garganta continua a sair voz, e continuará sempre - mais ou menos sibilante, mais ou menos estridente ou exaltada -, apesar de há muito que dessa voz não saia música. Nada. Silêncio absoluto, apesar de a voz continuar lá e de as palavras também permanecerem por lá guardadas não sei onde.
O processo é idêntico, pensas, enquanto fazes apostas sobre o que virá a seguir – as letras amontoaram-se em palavras e antes de as palavras te terem chegado num momento da maior aflição e, portanto, da maior clarividência, eram as notas, soltas, que teimavam em juntar-se à revelia e faziam comícios mesmo quando estavas de lábios cerrados.
Um dia acordas e não queres mais cantar.
Muitos dias depois, acordas e não queres mais escrever.
Por muitas voltas que dês, é assim que se processa contigo. Todos os dias, sem excepção, matutas nisto – que houve uma voz que, primeiro, te sussurrava cantigas, que, depois, evoluiu para as lenga-lengas, e mais tarde que te ditava contos. E que há muito tempo que não ouves vozes, que a voz (foi sempre a mesma) se calou para sempre, partiu e não há-de voltar.
E a ideia vai ganhando cada vez mais sentido, vai-se pondo cada mais a jeito, avançando um pouco mais junto ao precipício para onde há-de inevitavelmente cair – que não vais mais escrever tal como nunca mais cantaste. E que alguma coisa há-de surgir entretanto. Talvez.
Enquanto esperas fazes renda. E usas as palavras apenas para ganhar a vida. Ainda ordenas o caos, mas sem a mestria de antigamente.
E faz-se silêncio, os maxilares cerram-se por vezes com tanta força que, quando é hora de dizer vamos jantar, vamos vestir, vamos sair, até estalam junto à orelha por se terem desabituado de estar noutro estado que não o de sentinela.
Mas faz-se silêncio absoluto, porque assim talvez oiças alguma coisa a chegar.
Alguns suspiram de alívio e alvitram que estás mais sã, com os pés assentes na terra. Já não és nova. Tens o cabelo coberto de fios brancos. Há linhas que percorrem os teus olhos, o canto dos teus lábios. É tempo, portanto, de deixar ouvir vozes fantásticas que te ditam coisas, que te ensinam canções. Há contas para pagar. Há impostos a declarar. Há filhos que dependem de ti para tudo – sobretudo para dormir serenamente, com a respiração pesada, num quarto forrado com papel de parede pintado por anjos.
E não há sequer um pesar, um lamento, um choro miudinho enquanto molhas o cabelo no duche e, se calhar, também isso acabou, se calhar nunca mais vais chorar enquanto molhas o cabelo que já cobre todas as tuas costas.
Um dia acordaste e simplesmente não conseguias mais escrever.