O fiscalista (Capítulo I)
Com os olhos esbugalhados, parados na manete das mudanças, quem sabe se tentando hipnotizá-la, o fiscalista, espalmado de perfil como um egípcio, pele enrugada e borrifada de manchas castanhas, longos pelos cinzentos escuros encaracolados, espetados em riste para fora do nariz e das orelhas, declarou não gostar de pessoas que olham para o chão enquanto andam.
Porque é que o fiscalista estava dentro do carro, quente da viagem, no lugar do condutor, olhos presos na manete das mudanças, não vem ao caso. E o que esta declaração de interesses tinha a ver com a entrega do IRS do defunto, com a habilitação de herdeiros, eu não sei, não consigo explicar.
Aliás, deixei de tentar arranjar explicações, cansei-me, estou mesmo muito cansada. Perdi noites a fio a tentar tecê-las por entre metros de renda, agulha dois presa entre o polegar e o indicador, aprendi a fazer renda sozinha aos 30 anos, num momento de maior aflição, e compreendi nessa altura porque passa a minha mãe todas as noites a tricotar explicações, a exigir à agulha e à lã que façam aquilo que têm a fazer, a ordenar o caos de todas as linhas que se emaranham aos nossos pés ao longo da vida, um labirinto diabólico muitas vezes sem saída.
A minha mãe que quando eu era pequenina me pedia para eu segurar as meadas de lã com os pulsos, e que gingasse à vontade as minhas longas tranças para que da meada se fizesse novelo, a minha mãe que sempre me chamou de lolita, que sempre disse à boca cheia que eu tinha nascido com o cu virado para a lua, a minha mãe que sofre por tudo o que já me aconteceu, quisera ela que Deus não tivesse tão grandes planos para mim, que a vida passasse serena como uma meada de lã sem nós cegos.
E eu acreditei que uma torrente de pontos altos, pontos altos duplos, correntinhas - e para fechar um ponto baixíssimo -, achei mesmo que o meu pulso haveria de puxar tantas laçadas, tecer tantos pontos altos, pontos altos duplos, correntinhas, fechando tudo com ponto baixíssimo - pega-se na agulha como se pega numa caneta e se começa a escrever, fazer renda é apenas outra forma de ordenar o mundo, de o pôr a rodar direitinho sobre o seu eixo -, eu à espera de uma epifania, de uma reconstrução perfeita de todos os eventos que me trouxeram até aqui, a este momento preciso, e nada: nenhuma explicação a sair-me dos dedos, o pulso dorido, os dedos em sangue e nada, só mesmo renda ao meu colo.
Permaneci nas viagens de metro, paralisada, a fixar o meu reflexo e o reflexo dos outros no vidro da carruagem, à espera que o mundo, visto ao contrário dentro de um túnel escuro, me devolvesse todas as respostas aos porquês que esvoaçam esganiçados por cima de mim. Mas em vão.
Tudo em vão.
Não há livro nenhum da biblioteca que herdei que me possa ajudar, de nada me valem os arquivos poeirentos, as gavetas invioladas há mais décadas do que aquelas que eu levo.
Eu entrei na casa que culpo por tudo o que aconteceu, passei o sensor pendurado no porta-chaves e desarmei o alarme, mas todas as sinetas tocavam estridentes dentro de mim, diziam-me para fugir dali, rápido e a bom passo, para nunca mais olhar para trás. Esquecer a mata dos medos, esquecer que ela existe, nunca mais trilhar a estrada de terra batida, apagar todas as memórias, o ford cortina, o citroen visa, esquecer os duelos de espada em noites de luar, as lanternas de pirilampos, os nenúfares e as carpas coloridas, a ponte e o lago, as azedas, os malmequeres azuis e as roseiras bravas, esquecer a Santa que falhou em proteger-nos a todos.
Uma casa são só paredes feitas de tijolos, cimento, estuque, mas ela disse-me bem alto para eu ouvir: vai-te embora e não voltes. Ela disse-me isso em tom amigo, mas eu entrei ali, eu tinha que entrar ali, na casa onde ninguém foi feliz, e disse-lhe: tu agora és minha e, por isso, eu estou à espera que me contes tudo o que se passou, rebobina e põe no play, não é um pedido, é uma ordem, é o mínimo que me podes fazer. E, sem respostas - eu que até sei tão bem falar com as casas -, passei ao ataque, e cheia de medo, mas decidida, abri todas as portas, escancarei todas as janelas, remexi todas as gavetas; eu pensei, eu acreditei que a casa me daria todas as respostas se eu perdesse um pouco do meu tempo a ouvir o que ela tinha para nos dizer.
Mas ela respondeu com silêncio, ela leva 41 anos de silêncio e teve que assistir, muda, a tudo o que aconteceu, nunca poderia contar-me o segredo, não sabe como, e eu não sei o que me passou pela cabeça de pensar que a casa me poderia ajudar, que seria a única a poder ajudar-me.
Tudo permanecerá, para sempre, em silêncio.
Engulo espinhos, mastigo pedras que me ajudem a aceitar resignada o que se passou, não sei o que se passou, não consigo desemaranhar esta meada, tudo o que se passou: o mundo gira e gira e não se cansa de rodopiar apenas porque sim, e no meio de tantas voltas sem tino, há demasiadas coisas a caírem e a estilhaçarem-se no chão, no mesmo chão para o qual as pessoas de bem não devem olhar enquanto andam, porque o fiscalista não gosta.
Mas quer ele goste, quer não, eu ando de olhos cravados no chão porque, por vezes, ele falta-me por debaixo dos pés, porque há tapetes invisíveis que alguém puxa às escondidas para eu cair sem amparo. Há alguém que gosta de me ver ferida de morte, e há outro alguém que sabe que eu me hei-de levantar outra vez, e outra vez. Por vezes, há um campo minado no chão e eu sigo descalça, olhos cravados no chão, à espera que as pedras me ensinem por onde devo ir.
As folhas são verdes porque sim, e começam a pespontar no tímido anúncio da primavera mesmo que por dentro corra um dilúvio de lágrimas que não consegui chorar, e cresça um pântano de dúvidas a caminho dos meus pés, que tornam o meu andar mais pesado.
As unhas dos meus pés encravam porque sim, nasceram assim e hão-de crescer ainda um pouco no meu caixão, porque não aprenderam a fazê-lo de outra forma. Ranjo os dentes porque sim, porque a ponta da língua descansa no cantinho do incisivo lateral direito desde há muito tempo e diverte-se a fazer um pequeno estalido que me alivia as dores que sobem até à porta da minha boca.
As orquídeas não floriram este ano. O primeiro sinal que tudo seria como foi, porque sim, só porque sim, sem nenhuma explicação, sem nenhum aviso, sem que ninguém o pudesse evitar.
No último mês, o mundo como eu sempre o conhecera deixou de existir. Porque sim.
Ao terceiro dia do ano, a casa onde ninguém foi feliz acordou pela última vez.
Porque sim.