quarta-feira, janeiro 08, 2014

Grandes Esperanças

Palácio da Fonte da Pipa (outrora,Quinta das Esperanças), pela lente do Ruin'Arte

Eu e o abandono, andamos sempre ao lado um do outro, um no encalce do outro, eu sou a medalha e ele o reverso, ele é o roque e eu sou a amiga, ele é a  vidraça e eu sou a areia que se entrega em silêncio à purificação pelo fogo. 

Não nos procuramos, também não andamos a fugir um do outro, é bastante simples explicar: estamos entrelaçados por entre um labirinto de fios de seda muito finos, mas indestrutível - se formos a ver bem, acho que nos pertencemos, alimentamo-nos um do outro, crescemos um com o outro.

Não é bênção, nem é maldição: é o que é, e nem se benzam quando eu escrever, com a solenidade que merece a contricção, que ele revela o melhor que há em mim. Eu sou sua e ele é meu. Eu sou o branco e ele é, naturalmente, o preto. Por vezes encontramo-nos e juntos fazemos muitos cinzentos. É assim que acontece.

Lembro-me deste fascínio desde sempre, de me perder a observá-lo suficientemente longe, mas suficientemente perto para sentir a agitação violenta das lagartas que nunca virão a saltar borboletas pelo buraco esculpido na minha barriga.

À espreita, como uma criança - mas era mesmo uma criança quando o conheci -, numa esquina à espreita, como a sombra projectada de um poste muito alto que vê o seu reflexo em negativo durante um curto intervalo do dia, quando o sol assim o quer, quando o astro assim o permite.

Ao início desta história tão pequenina e sem coragem de o fitar olhos nos olhos, só senti-lo com as antenas, como os gatos, ou a farejá-lo como os cães, aquele cheiro a mofo, a papel empoeirado e a cera há muito entranhada e esquecida nos nós da madeira. 

Sabê-lo ali mesmo, até de olhos bem cerrados, as pestanas todas numa convulsão, saber que ele está ali em tudo o que se mexe e o que se mantém imóvel também, sentir o ar a despentear os pelinhos do nariz e a viajar até aos pulmões inchando-os como no instante brevíssimo antes em que as pontas dos dedos entram na água, abrindo caminho o mergulho de cabeça em águas tão escuras que não se sabe onde está o fundo.

 Como uma chicotada nas costas a cada encontro, o coração a viajar até à minha têmpora direita e a latejar como uma bomba-relógio, crescer com ele ao meu lado, ele sempre na outra esquina, sempre mais ou menos desencontrados, sempre desesperadamente à espera um do outro.

Bem sei que estava presa por um cordão à minha mãe, no escuro, onde tudo é abafado e morno como um sonho, quando ele apareceu pela primeira vez e eu sorri. Certo dia - e lembro-me muitas vezes ao dia desse dia, visita-me o instante em que tive a coragem e a vergonha imediata de quem revela um segredo passado por um moribundo em confissão - eu disse a alguém que ele era o meu destino. Quem me ouviu alarmou-se, como se eu falasse de uma doença incurável, ou uma tonteria, um delírio, ou uma superstição.

Nessa altura eu talvez não soubesse ainda que não era coisa má tê-lo no meu destino. Tinha essa certeza mas não sabia o que significaria na minha vida.

É uma pausa: a história continua daqui a instantes. Há-de continuar. Há no abandono grandes esperanças. Grandes esperanças temporariamente em pausa. Momentos, por vezes, ao olho nú, infinitamente congelados. Mas certo dia, mais cedo, ou talvez bem mais tarde, tudo recomeçará. E ele estará sempre ali bem perto, de vigia.

Eu sei-o agora, ele é parte de quem eu sou, é quem nós somos: somos seus afilhados, foi ele quem nos juntou - tu já viste que foi ele quem nos juntou? -, conhecemo-lo tão bem, fitámo-lo anos a fio, sabemos de cor todos os seus rostos, farejamo-lo bem longe como o nariz do cão que procura a raposa para a entregar de presente ao seu dono, partimos para uma demanda sem glória ou troféu anunciado, trauteamos de cor a música que emerge no seu silêncio branco, e foi o seu canto que nos juntou. 

Certo dia estávamos os dois à esquina, sempre à esquina, a vê-lo de longe, fascinados, e ele colocou-nos frente a frente. E pela primeira vez gostámos do que vimos com uma esperança nunca antes sentida. E foi ele quem nos entregou um ao outro de mão beijada. Que abdicou da nossa devoção desmedida.

Ele continua a estar em tudo o que fazemos - desta vez é ele quem nos espia à esquina, somos os seus filhos pródigos. 

Se alguém quer saber o segredo das histórias de amor, das histórias como a nossa - eu alguma vez te disse que eu sou mais feliz do que algum dia pude imaginar e que é pura e simplesmente porque tu fizeste de mim a mulher mais feliz do mundo, com a tua bondade, com a tua paciência, eu alguma vez te disse? - faça com esta informação o que quiser: procure o mapa que ninguém ousou desenhar, prepare o farnel para muitos dias e parta à aventura. Ou acenda uma vela e faça o seu chamamento numa mesa de pé-de-galo, ou espalhe armadilhas para o caçar, grite ou esperneie, aí, não posso ajudar, dar mais dicas: só posso adiantar que o nosso amor foi semeado ao vento, a partir dos quatro cantos do mundo, pelo abandono. 

Façam o que quiserem, boa sorte, a história segue dentro de instantes.

Há todo o tipo de pausas. Pausas forçadas, pausas abruptas - é destas que o abandono mais gosta -, mas há as pausas que vão acontecendo lentamente como os sulcos finos que eu tenho nos cantos dos olhos de tanto me rir. 

Chego a este sítio, ao meu ponto de encontro com ele tantas noites seguidas, ele a afagar-me o cabelo, ele a ditar-me o que escrever ao ouvido, ele a espalhar-se pela madrugada fora como um perigoso vírus, e é ironia que eu própria o tenha abandonado devagar, muito devagarinho, como quem embala o filho no regaço com uma ladaínha a sair esmagada pelos lábios. 

Amor com amor se paga, é o meu tributo, foi o maior sacrifício, deixar esta casa abandonda, obrigar-me a abandonar o meu grande amigo, o meu melhor amigo, silenciar quem me compelia a escrever como quem delira com febre e acorda no dia seguinte com os lençóis suados, mas expurgado de todos os males.

Também eu me abandonei muitas vezes desde o dia em que não voltei mais aqui. Abandonei-me de formas que um dia acharia censuráveis, traições à matéria de que sou feita, por vezes abandonei-me de forma violenta, outras deixei-me ir como o pavio de uma vela afogado em cera borbulhante. Houve vezes em que quase me extingui, desesperada pelo seu paradeiro.

E ele sempre à esquina - bem perto, sempre muito, e sentindo a nossa falta, apoderou-se de outras paragens que fazem também parte de quem somos. Esta, por exemplo. Ou tentando reivindicar a casa maldita, numa luta com o Diabo que não tem ainda fim à vista. Talvez ele ganhe e purifique a casa maldita com uma camada de pó branco muito fininho. Por ora, é o diabo quem se ri. Arrancou árvores, secou lagos, propagou escuridão nas paredes, ou desfê-las em areia soprando ventos fortes e com sabor a sal.

Mas é este o seu mistério. 

A história recomeça sempre como num campo em pousio, à espera que dele brote a mais violenta colheita depois de o tremoço ter agitado as terras como por magia.

E por vezes a história recomeça por outras paragens. 

Eu cravo a unha no tronco pequenino da árvore da borracha e dali nasce um rebento. Ele anda por muitas paragens ao mesmo tempo. Certas lutas perde, em outras esmaga tudo por onde passa. A nós parece que nos estima.

E voltou a sussurar-me histórias.

No Verão abrimos o portão ferrugento de outra casa onde joguei consigo às escondidas por entre jardins de dálias e muros por onde trepava aos céus uma velha vinha americana, uma casa onde ele viveu em clausura e recolhimento por mais de vinte anos, porque assim tinha que ser, o portão guinchou em vão porque reclamámos o que é nosso, como seus legítimos herdeiros.

E por isso mesmo ainda é Verão nos nossos corações. 

E eu tenho de novo grandes expectativas.

2 comentários:

Rosa Negra disse...

Obrigado por voltar.

Anónimo disse...

A Esperança é um afecto que, suspirando sempre por ver, vive de não ver, e morre com a vista.
P. António Vieira