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quarta-feira, fevereiro 14, 2007

O senhor Guilhermino III - a saga continua e está quase a acabar

Senhor Guilhermino, não me quer dar o seu número que eu ligo-lhe de volta, é para não gastar mais dinheiro…

O senhor Guilhermino estremeceu – contaram-se três segundos de silêncio total –, recusou-se a desligar a chamada e gaguejou qualquer coisa como eu estou de olho na porta; se a mulher entra por aqui e me apanha agarrado ao telefone é sermão e missa cantada, não sei porque tanto se amofina o raio da mulher, quem é que paga a conta, quem é que lhe paga, aliás, as idas ao cabeleireiro? (e do outro lado do bocal, numa janela sobre a Andrade Corvo, houve também uma pausa, a mente elevou-se para até ao tecto e pôs-se a visualizar um cego de olho na porta).

Eu é que já fazia um xixizinho, raisparta o drenante com sabor a anis, mas o senhor Guilhermino não podia arriscar desligar o telefone; sabe-se lá há quanto tempo ninguém o escutava sem delongas. Então continue, senhor Guilhermino, estou aqui, sou toda ouvidos.

Branco Rodrigues teve mais sorte que o senhor Guilhermino. Os pais, no final do século XIX, não o acharam amarelo, ou menos filho só porque os seus olhos nasceram sem o dom de ver.
Branco Rodrigues, leio algures no escuro da net, enquanto danço o fandango com vontade de ir mudar a água às azeitonas (que bonita expressão) e oiço a história da vida do senhor Guilhermino contada em duas horas e picos, foi o primeiro grande impulsionador da valorização dos cegos em Portugal. Em 1896 criou uma aula de leitura e de música no Asilo de Nossa Senhora da Esperança, em Castelo de Vide. Um ano depois, numa sala cedida pela Misericórdia de Lisboa, instalou outra aula de leitura.
No redondo ano de 1900, num andar da Escola Comercial Rodrigues Sampaio, cedido por Despacho Ministerial, abriu a Escola Intelectual e Profissional de Cegos, que esteve instalada em vários edifícios e acabou por transformar-se no Instituto de Cegos Branco Rodrigues, em São João do Estoril – a mesma casa com vista sobre o mar (muito relevante para quem não vê) onde o senhor Guilhermino teve que dormir o seu sono angélico, de 1927 a 1947, com as mãos coladas ao pescoço. Em 1903, os cegos do Porto também passaram a contar com a ajuda deste benemérito.

Branco Rodrigues nasceu num berço de ouro, e gastou a sua fortuna na dignificação dos cegos portugueses. É a ele, e a um generoso funcionário da Imprensa Nacional cujo nome não aparece em nenhuma das páginas pescadas pelo Google, que se deve a primeira impressão em Braille, na viragem do século XIX, descubro enquanto escrevo tudo o que o senhor Guilhermino me conta (e, não contem a ninguém, mas ainda consigo, para além de ler, escrever conteúdos totalmente distintos, mascar pastilha com destreza).

O senhor Guilhermino não conheceu Branco Rodrigues, mas chama-lhe pai. Mas em 1947, vinte anos depois de os seus verdadeiros pais o terem abandonado numa casa onde se ouvia o rugido do mar e o pouca-terra do comboio, e terem apanhado o vapor para o calor tropical do Brasil, o senhor Guilhermino era um homem feito, vinte e sete anos de idade e uma tez mais rosada, era pois hora de partir, era a hora de partir porque havia mais cegos em lista de espera para aprenderem a ler pautas sem olhos (como raio é que um cego lê uma pauta?), e o senhor Guilhermino não teve outro remédio senão sair da sua casa, sair a contragosto, com uma mala na mão e um violoncelo noutra.
E foi para a rua, a verdadeira casa dos cegos.

Então o que é que me podia esperar? Fui para a rua, fui tocar para a rua e pedir esmola. As pessoas deitavam as mãos à cabeça, diziam, não há direito, não há direito.
Foi nesses dias, anos que se seguiram que o senhor Guilhermino conheceu a sua mulher, a tal que lavava casas a escova a dois escudos por mês.
A minha mulher não era deficiente mental (?! Lá estou eu de boca aberta a ouvir o senhor Guilhermino), era atrasadinha, mas era muito humana, chorava, chorava mesmo muito, chorava pelos meus olhos que não a viam.

Eu dizia-lhe: não te preocupes. Tu és a minha máquina; eu sou o teu cérebro.

E a vida seguia assim, ela guiava-o, era os seus olhos, e ele era o seu pensamento. Os primeiros anos de casados viveram numa casinha da câmara em parte incerta e de onde foram expulsos por circunstâncias que faltaram apurar num telefonema de duas horas com uma perfeita estranha.

A coisa ficou torta numas pequeninas águas-furtadas nas Portas de Santo Antão.

Imagino sim o que é subir umas escadas estreitinhas até ao quarto andar, senhor Guilhermino. Pois, de facto, de olhos fechados nunca experimentei…

O barulho dos canos era insuportável. Sabe que os cegos ouvem coisas como os cães, coisas que mais ninguém escuta…

A vida fazia-se, fez-se sempre na rua. Certo dia, depois do 25 do 4 porque o senhor Guilhermino a meio deste vórtice temporal disse maldito 25 de Abril, por isso é que eu digo: MALDITO 25 de ABRIL (está em caps, porque a voz do senhor Guilhermino elevou-se, só se eleva, de facto, para falar mal da revolução dos cravos), Gilberto Almeida Monteiro, vestia camisa branca e ziguezagueava com o seu carro pelas ruas estreitas do Intendente.

Este conhecido marinheiro do Intendente era um homem à frente do seu tempo. Muito antes de inventarem a PlayStation e muito menos o popular joguinho Grand Theft Auto, onde se ganham pontos a atropelar as avozinhas que passeiam seus netinhos em carrinhos de bebé, já ele fazia pontaria aos ceguinhos (que ao que constava na época valiam pontos a triplicar).

Atropelou-me e ainda me chamou nomes feios. E eu também lhe chamei os mesmos nomes que ele nos chamou, ora pois, não sou de me ficar.

Cego tombado na calçada, mulher aos gritos, um carro de marinheiros divertidos com a cena rocambolesca (e uma série de pormenores que eu não consigo decifrar da minha caligrafia de há mais de um mês atrás). Não o deixem fugir que eu estou ferido, mas nisto sai do carro um outro de seu nome António Coelho, de camisa grenat (mais referências cromáticas vindas de um cego; é impressionante a memória visual deste cego de 87 anos), e ia a dar um pontapé na barriga da minha mulher, quando saem da taberna muitas prostitutas, que lhes cercaram o carro e deram murros no capot, e aí os valentes marinheiros trancaram-se lá dentro e já não eram tão valentes.

Vieram dois polícias, que viram tudo mas fizeram a vista grossa, abeiraram-se do carro, eu caído no chão, e eles com as mãos atrás das costas (impressionante as coisas que este cego viu há mais três décadas atrás), era só cagufa, porque estes marinheiros eram muito conhecidos na zona do Intendente.

O polícia mais novo já levava dinheiro na mão e o sub-chefe Barata, quando cheguei à esquadra para apresentar queixa contra os malandros, também já tinha a carteira bem recheada de notas.

O senhor Guilhermino deve aos marinheiros Gilberto Almeida Monteiro, de camisa branca, e António Coelho, de camisa grenat, um volte-face do seu destino e da sua mulher que não era deficiente mental, apenas atrasadinha.

Mas esse, só há-de ser contado no próximo episódio da saga do senhor Guilhermino (não queriam mais nada, duas horas e meia de patuá telefónico reduzido a dois posts…)

sexta-feira, janeiro 19, 2007

Interlúdio

Setas.
Há quem desenhe bolas. Outros travessões. Há ainda quem faça triângulos e outros sólidos geométricos. Não encontrei círculos.
Esta é uma pequena amostra das folhas rascunhadas que jazem em cima das secretárias dos colegas mais próximos do meu posto de trabalho (e hoje, é o último dia em que trabalho à janela da Viriato; subi na vida, subi um piso, passo a estar bem pertinho do patrão e longe da Viriato. Lamento-o profundamente).
Eu desenho setas. É mais forte que eu.
Três cadernos em cima da mesa, três caligrafias diferentes a cada folha que passa, todas desenhadas pela mesma mão, mas em algumas ocasiões, a mão fez dançar a esferográfica de manhã, como numa valsa singela, noutras, rodopiou no papel com um nadinha de tensão, e então a letra inclinou-se para a direita, como num tango, e depois há uns parágrafos, praticamente imperceptíveis, em que a caligrafia teima em não caminhar direita pelas linhas azuis dos cadernos baratos; estas letras foram escritos perto da linha da morte, do fecho antecipado em duas horas por causa de um encarte publicitário, perigosamente em cima da hora de encerramento de um colégio junto à Rotunda do Aeroporto.
Setas, setas, setas.
Agradeço as epifanias, o sussurrar dos anjos a alertarem-me para perigos, para maldades e, por vezes, a guiarem-me às escuras até ao meu destino.

O senhor Guilhermino ligou o número geral. Não foi nem a Fátima nem a São que lhe atenderam a chamada, porque a Fátima e a São também se foram embora, substituídas por um gravador. Agora anda tudo doido a premir do um ao nove no teclado, geralmente desistem, mas o senhor Guilhermino deve ter premido a combinação de números que abre o cofre do tesouro – 7 - 3 - 7 – e o meu telefone, enrodilhado de fios, tocou.
A voz era sumida, apagada, de início. O dedo indicador carregou com força numa tecla do telefone Nortel que tem desenhado uma grande coluna de audio.
Alguém me alertou para puxar do papel e da caneta. Era, certamente, uma grande história, impublicável. Tanto pior para as publicações pagas. Ainda havia um blogue para alimentar a migalhas de serviços mínimos.
O senhor Guilhermino ainda não tinha dito que era cego, e que as noites da sua infância tinham sido passadas com os braços cruzados ao peito, e eu não poderia sequer imaginar que os joelhos do senhor Guilhermino haviam de ser partidos por um marinheiro numa rua sombria dos Anjos. Eu não sabia nada disso, mas o papel e a caneta já estavam preparados para guardar a história do senhor Guilhermino, para gravar a sua voz sumida em letra miudinha.
Foi no verso de um fax da câmara de Lisboa. Três páginas para três horas de monólogo telefónico. Três páginas de papel fino e brilhante, escritas com uma letra minúscula, umas vezes escritas na horizontal, como nos ensinaram na escola à força de reguadas, outras na vertical e na diagonal, porque a mão sabia à partida que a narrativa não seria linear: o senhor Guilhermino começou mais ou menos pelo início, mas logo depois foi ainda mais trás, pulou várias vezes para o presente, se não me engano conjugou verbos no futuro, recuou, andou para os lados como caranguejo. Três folhas cheias de setas, guardadas religiosamente à chave, sem as quais eu já não saberia escrever as façanhas do senhor Guilhermino.
Andam comigo para todo o lado na mala Balenciaga. À espera do segundo capítulo.

quarta-feira, janeiro 10, 2007

O senhor Guilhermino I

Aparentemente, já todos tiveram que aturar o senhor Guilhermino. Mas não cuidaram de saber e muito menos de reter o nome que consta no seu assento de nascimento deste homem que nasceu em 1920, nem tão-pouco tiveram a paciência de o ouvir até ao limite de duas orelhas escaldadas e metamorfoseadas à forma do auricular de um telefone da marca Nortel.

[E, entretanto, perdoem a ausência, mas houve crianças febris com amigdalites que se transformaram em otites, houve visitas surpresa de um cigano ítalo-brasileiro-irlandês no dia de aniversário do meu blogue, houve correspondência secular dos morgados de Mateus a ser revista no Ibook, e há e continuará sempre a haver corações tão secos e espalmados como os dos bacalhaus a lerem e a copiarem este blogue de fio a pavio – ai, ai, os direitos de autor –, com más intenções, com intenções cretinas, até, coisa que devia dar suspensão na Ordem dos Advogados, todo esse trabalho, um gasto supérfluo de energia para serem abatidas mais árvores (meus queridos eucaliptos, perdoem) e interpostos mais processos judiciais de má-fé, ah, sim, e há também muita estupidez à mistura, sendo que tudo isto atrasou a produção literária]

Todas as redacções têm um senhor Guilhermino. À parte do senhor Guilhermino, nós também temos a dona Clementina, que em 363 edições anuais impressas em papel de má qualidade, há-de nos fazer chegar pelo menos 300 cartas ao director, sim, cartas, nada de emails, mais eucaliptos abatidos, mais dividendos distribuídos à Portucel, mais um selo lambido com a língua, e no fim do ano e das três centenas de cartas, como é uma querida, a dona Clementina ainda envia uma caixa de chocolates.
E havia também um tenente-coronel da armada que escrevia uns faxes com uma caligrafia muito bonita, mas esse estava zangado com o mundo, e com alguma empresa cotada também, se não me falha a memória.
O Manuel Acácio, da TSF, tem senhores Guilherminos e donas Clotildes aos magotes, e eu já ouvi o caríssimo tenente-coronel através das ondas hertzianas no fórum TSF, mas o senhor Guilhermino, o meu, o que nunca ninguém teve pachorra para aturar durante duas horas e meia interrompidas por dois minutos para eu poder fazer um xixizito, é especial, deveras especial e eu descobri isso aos dois minutos de conversa e, como a conversa é como as cerejas, deixei-me estar e os meus ouvidos encheram-se de frutos vermelhos suculentos, retalhos de uma vida às cegas, que já conta com 87 primaveras apesar de o senhor Guilhermino não ter tido nunca a oportunidade e o privilégio de ver uma flor de laranjeira, ou um jacarandá em flor.

É. O senhor Guilhermino nasceu cego. Amarelo e débil, acrescenta ele, o que é muito estranho, na realidade, porque o senhor Guilhermino nunca viu a cor amarela, e assim sendo, vai-se lá saber porque é que uma referência cromática se assume como facto tão relevante da sua infância, mas, se calhar, em garoto cheirou uma mimosa em flor e ficou com a ideia que o amarelo é a cor que cheira a mimosa, e a flor da mimosa cheira bem, mas o que o que é demais chateia e a mimosa em flor às vezes tresanda tanto que até faz dor de cabeça.

O senhor Guilhermino nasceu cego dos olhos, mas há cegos que vêem muito, e o senhor Guilhermino vê coisas do arco-da-velha há 87 anos, e viu-as e continua a vê-las mesmo quando está de olhos fechados, porque a si, tanto lhe faz, e Deus não dorme, como os cegos, e alguma vantagem lhes teria que dar por levarem a vida sempre às escuras.
Infelizmente, o senhor Guilhermino teve má sorte, não por ter nascido cego, mas sim porque os seus pais sofriam de uma cegueira que é bem mais comum neste mundo e há muito tempo, uma cegueira branca e milenar.
Os pais do senhor Guilhermino tiveram, durante toda a vida, o dom de as suas retinas reflectirem ao cérebro, através de impulsos eléctricos, as imagens de tudo o que é belo e de tudo o que é feio neste mundo, mas passaram ao lado da pessoa extraordinária que tinha uma mistura dos seus sangues e uma tez, ao que parece, um tanto ou quanto amarelada.
O senhor Guilhermino ainda era o menino Guilhermino quando foi enxotado para uma instituição em 1927. Os pais fugiram para o Brasil com os filhos que viam o mundo a cores.
O meu pai era maluco, fez-se um vadio e testemunha de Jeová. O senhor Guilhermino surpreende-me a cada três palavras que profere, deitado na cama, com uma voz muito apagada e rouca, sempre à cata de ver com os ouvidos se chega a senhora que trata dele, encontrada num anúncio classificado que foi publicado n’O Crime sem sucesso por mais de um ano. Não se amofine, senhor Guilhermino, ainda há pais que são vadios, ainda há pais que são malucos.
Deixaram-me entregue àquela gente sem coração.
Se eu estava a dormir o meu sonho angélico chegavam à camarata e destapavam-me, destapavam-nos, destapavam todos os ceguinhos. E tínhamos que dormir com as mãos cruzadas no peito, porque se eu tivesse os braços caídos, junto ao corpo, era porque estava a fazer coisas feias. Eu não sabia o que eram coisas feias. O ódio com que batiam nas crianças cegas. Precisávamos de pancada. O vigilante entrava pela aula dentro e desatava à bofetada. E a professora era ceguinha também, nada podia fazer.
O senhor Guilhermino foi criado numa Misericórdia sem misericórdia colada ao mar em São João do Estoril, mas com mais ou menos bofetadas e lençóis destapados a meio da noite, aquela gente sem dó não embruteceu o senhor Guilhermino, que aprendeu o mais belo dos ofícios: a música.
Não lhe valeu de muito o grau superior do Conservatório, o arco e a elegância do seu violoncelo ou dos seus dedos ágeis no marfim do piano. A vida dos cegos ganha-se na rua, mas o Salazar nunca fez mal aos ceguinhos, garante o senhor Guilhermino, que dispara contra o 25 do 4 implacável, nos contextos mais absurdos.
A sua companheira de vida não a conheceu através de anúncio, mas andou lá perto.
A minha mulher ganhava dois escudos a lavar casas à escova. Na terra, guardava as vacas desde os cinco anos e bebia água fresca da fonte. Veio para a cidade servir. Queres vir para a minha companhia? As mulheres dedicavam-se de alma e carinho porque precisavam, agora não precisam de nós para nada.
As mulheres, senhor Guilhermino, precisam de se dedicar a algo ou a alguém; é esse o nosso fado, nada mudou, a conta bancária pode ter até quatro dígitos no início do mês, as contas podem até estar todas pagas, mas as mulheres precisam de se dedicar.

(continua)