terça-feira, janeiro 30, 2007

[sem] mil

Sem posts, este blogue chegou aos cem mil.
O visitante 50 mil bisou a façanha.
Há-de haver posts. Façanhas da sindicalista deslumbrante.
Parabéns, (T)ralha.

quarta-feira, janeiro 24, 2007

Hábito

É uma questão de hábito.
É como lembrar-me de beber em jejum – e vinte minutos antes do almoço – a ampola laranja que queima gorduras e que sabe a capilé amargujado; é como acordar uns minutos depois das oito da manhã, ao segundo toque do despertador do Nokia azulito da saudosa lanterna (e eu continuo a recusar-me a acordar ao som do Nokia preto, o João faz-me a vontade, faz-me todas as vontades, atura todas as birras, está ao meu lado em todas as guerras, ele acerta o relógio do Nokia para as sete e quarenta e cinco, e ele toca e eu faço menu sete um um e meia cega determino que quero dormir mais quinze minutos e há de ser assim, há de continuar a ser assim, pelo menos enquanto o Nokia azul não se finar, enquanto não for lavado na máquina no bolso das calças como já aconteceu antes na história).
Mas se calhar estes também são uns hábitos idiotas.

Fuma-se menos, não se fuma ainda despudoradamente, e se o cigarro se acender à revelia seguramente aqui ninguém me culpará de um qualquer cancro. Atrás de mim há uma muralha de armários cheios de pastas cobertas por um manto de pó e de cotão, à frente, a ventoinha do Cerejo, na diagonal à direita, o gabinete do chefe supremo, depois há uma sala de reuniões com videoconferência onde perdi a voz no mês de Dezembro enquanto membro eleito da comichão de trabalhadores, a janela, a única janela que vejo, a que está longe demais, mostra-me aparelhos de ar condicionado espetados nas fachadas, não há gaiolas de periquitos como em Alfama, mas há marquises e idosas a estenderem cuecas cor-de-rosa.
Uma nesga de uma Livistona chinensis a sair de um terraço, telhas laranja brilhantes ao lado de betão e alumínio, e não vejo mais os plátanos que estão prestes a matar-me de renite daqui a mês e meio. Para quem não sabe, para quem não tem mesmo que saber, a Lisvistona é uma palmeira leque, e no fim-de-semana passado a cobertura de um prédio em Massamá ardeu, ardeu por completo, e o único ferido grave foi um polícia que se picou na perna com um ramo de palmeira, quem sabe se não seria uma Phoenix dactilifera, má sorte de um raio, nem uma queimadura para amostra, mas um arranhão de palmeira na perna a reportar, quem vai à guerra dá e leva, isto é como um bombeiro morrer afogado na albufeira, caramba, devia mas era ter estado calado, grande gozão que me saiu o médico do INEM, à frente, à minha frente, à frente da ventoinha, há televisores pequenos e uma prateleira cheia de cassetes VHS onde estão gravadas as notícias de ontem.
É uma questão de hábito, tudo é uma questão de hábito, aposto que a jornalista que usa calças pelo tornozelo apenas o continua a fazer por hábito, não pode ser por motivos estéticos, nem pela moda, é o habito, é o monge, e eu bebo litro e meio de água com quatro colheres de sopa medidas a olho de drenante de limão, fumo menos, escrevo menos, e quase que choro quando olho para a primeira página de um jornal que há-de estar nas bancas a 12 de Fevereiro.
É uma questão de hábito.

sexta-feira, janeiro 19, 2007

Interlúdio

Setas.
Há quem desenhe bolas. Outros travessões. Há ainda quem faça triângulos e outros sólidos geométricos. Não encontrei círculos.
Esta é uma pequena amostra das folhas rascunhadas que jazem em cima das secretárias dos colegas mais próximos do meu posto de trabalho (e hoje, é o último dia em que trabalho à janela da Viriato; subi na vida, subi um piso, passo a estar bem pertinho do patrão e longe da Viriato. Lamento-o profundamente).
Eu desenho setas. É mais forte que eu.
Três cadernos em cima da mesa, três caligrafias diferentes a cada folha que passa, todas desenhadas pela mesma mão, mas em algumas ocasiões, a mão fez dançar a esferográfica de manhã, como numa valsa singela, noutras, rodopiou no papel com um nadinha de tensão, e então a letra inclinou-se para a direita, como num tango, e depois há uns parágrafos, praticamente imperceptíveis, em que a caligrafia teima em não caminhar direita pelas linhas azuis dos cadernos baratos; estas letras foram escritos perto da linha da morte, do fecho antecipado em duas horas por causa de um encarte publicitário, perigosamente em cima da hora de encerramento de um colégio junto à Rotunda do Aeroporto.
Setas, setas, setas.
Agradeço as epifanias, o sussurrar dos anjos a alertarem-me para perigos, para maldades e, por vezes, a guiarem-me às escuras até ao meu destino.

O senhor Guilhermino ligou o número geral. Não foi nem a Fátima nem a São que lhe atenderam a chamada, porque a Fátima e a São também se foram embora, substituídas por um gravador. Agora anda tudo doido a premir do um ao nove no teclado, geralmente desistem, mas o senhor Guilhermino deve ter premido a combinação de números que abre o cofre do tesouro – 7 - 3 - 7 – e o meu telefone, enrodilhado de fios, tocou.
A voz era sumida, apagada, de início. O dedo indicador carregou com força numa tecla do telefone Nortel que tem desenhado uma grande coluna de audio.
Alguém me alertou para puxar do papel e da caneta. Era, certamente, uma grande história, impublicável. Tanto pior para as publicações pagas. Ainda havia um blogue para alimentar a migalhas de serviços mínimos.
O senhor Guilhermino ainda não tinha dito que era cego, e que as noites da sua infância tinham sido passadas com os braços cruzados ao peito, e eu não poderia sequer imaginar que os joelhos do senhor Guilhermino haviam de ser partidos por um marinheiro numa rua sombria dos Anjos. Eu não sabia nada disso, mas o papel e a caneta já estavam preparados para guardar a história do senhor Guilhermino, para gravar a sua voz sumida em letra miudinha.
Foi no verso de um fax da câmara de Lisboa. Três páginas para três horas de monólogo telefónico. Três páginas de papel fino e brilhante, escritas com uma letra minúscula, umas vezes escritas na horizontal, como nos ensinaram na escola à força de reguadas, outras na vertical e na diagonal, porque a mão sabia à partida que a narrativa não seria linear: o senhor Guilhermino começou mais ou menos pelo início, mas logo depois foi ainda mais trás, pulou várias vezes para o presente, se não me engano conjugou verbos no futuro, recuou, andou para os lados como caranguejo. Três folhas cheias de setas, guardadas religiosamente à chave, sem as quais eu já não saberia escrever as façanhas do senhor Guilhermino.
Andam comigo para todo o lado na mala Balenciaga. À espera do segundo capítulo.

quarta-feira, janeiro 10, 2007

O senhor Guilhermino I

Aparentemente, já todos tiveram que aturar o senhor Guilhermino. Mas não cuidaram de saber e muito menos de reter o nome que consta no seu assento de nascimento deste homem que nasceu em 1920, nem tão-pouco tiveram a paciência de o ouvir até ao limite de duas orelhas escaldadas e metamorfoseadas à forma do auricular de um telefone da marca Nortel.

[E, entretanto, perdoem a ausência, mas houve crianças febris com amigdalites que se transformaram em otites, houve visitas surpresa de um cigano ítalo-brasileiro-irlandês no dia de aniversário do meu blogue, houve correspondência secular dos morgados de Mateus a ser revista no Ibook, e há e continuará sempre a haver corações tão secos e espalmados como os dos bacalhaus a lerem e a copiarem este blogue de fio a pavio – ai, ai, os direitos de autor –, com más intenções, com intenções cretinas, até, coisa que devia dar suspensão na Ordem dos Advogados, todo esse trabalho, um gasto supérfluo de energia para serem abatidas mais árvores (meus queridos eucaliptos, perdoem) e interpostos mais processos judiciais de má-fé, ah, sim, e há também muita estupidez à mistura, sendo que tudo isto atrasou a produção literária]

Todas as redacções têm um senhor Guilhermino. À parte do senhor Guilhermino, nós também temos a dona Clementina, que em 363 edições anuais impressas em papel de má qualidade, há-de nos fazer chegar pelo menos 300 cartas ao director, sim, cartas, nada de emails, mais eucaliptos abatidos, mais dividendos distribuídos à Portucel, mais um selo lambido com a língua, e no fim do ano e das três centenas de cartas, como é uma querida, a dona Clementina ainda envia uma caixa de chocolates.
E havia também um tenente-coronel da armada que escrevia uns faxes com uma caligrafia muito bonita, mas esse estava zangado com o mundo, e com alguma empresa cotada também, se não me falha a memória.
O Manuel Acácio, da TSF, tem senhores Guilherminos e donas Clotildes aos magotes, e eu já ouvi o caríssimo tenente-coronel através das ondas hertzianas no fórum TSF, mas o senhor Guilhermino, o meu, o que nunca ninguém teve pachorra para aturar durante duas horas e meia interrompidas por dois minutos para eu poder fazer um xixizito, é especial, deveras especial e eu descobri isso aos dois minutos de conversa e, como a conversa é como as cerejas, deixei-me estar e os meus ouvidos encheram-se de frutos vermelhos suculentos, retalhos de uma vida às cegas, que já conta com 87 primaveras apesar de o senhor Guilhermino não ter tido nunca a oportunidade e o privilégio de ver uma flor de laranjeira, ou um jacarandá em flor.

É. O senhor Guilhermino nasceu cego. Amarelo e débil, acrescenta ele, o que é muito estranho, na realidade, porque o senhor Guilhermino nunca viu a cor amarela, e assim sendo, vai-se lá saber porque é que uma referência cromática se assume como facto tão relevante da sua infância, mas, se calhar, em garoto cheirou uma mimosa em flor e ficou com a ideia que o amarelo é a cor que cheira a mimosa, e a flor da mimosa cheira bem, mas o que o que é demais chateia e a mimosa em flor às vezes tresanda tanto que até faz dor de cabeça.

O senhor Guilhermino nasceu cego dos olhos, mas há cegos que vêem muito, e o senhor Guilhermino vê coisas do arco-da-velha há 87 anos, e viu-as e continua a vê-las mesmo quando está de olhos fechados, porque a si, tanto lhe faz, e Deus não dorme, como os cegos, e alguma vantagem lhes teria que dar por levarem a vida sempre às escuras.
Infelizmente, o senhor Guilhermino teve má sorte, não por ter nascido cego, mas sim porque os seus pais sofriam de uma cegueira que é bem mais comum neste mundo e há muito tempo, uma cegueira branca e milenar.
Os pais do senhor Guilhermino tiveram, durante toda a vida, o dom de as suas retinas reflectirem ao cérebro, através de impulsos eléctricos, as imagens de tudo o que é belo e de tudo o que é feio neste mundo, mas passaram ao lado da pessoa extraordinária que tinha uma mistura dos seus sangues e uma tez, ao que parece, um tanto ou quanto amarelada.
O senhor Guilhermino ainda era o menino Guilhermino quando foi enxotado para uma instituição em 1927. Os pais fugiram para o Brasil com os filhos que viam o mundo a cores.
O meu pai era maluco, fez-se um vadio e testemunha de Jeová. O senhor Guilhermino surpreende-me a cada três palavras que profere, deitado na cama, com uma voz muito apagada e rouca, sempre à cata de ver com os ouvidos se chega a senhora que trata dele, encontrada num anúncio classificado que foi publicado n’O Crime sem sucesso por mais de um ano. Não se amofine, senhor Guilhermino, ainda há pais que são vadios, ainda há pais que são malucos.
Deixaram-me entregue àquela gente sem coração.
Se eu estava a dormir o meu sonho angélico chegavam à camarata e destapavam-me, destapavam-nos, destapavam todos os ceguinhos. E tínhamos que dormir com as mãos cruzadas no peito, porque se eu tivesse os braços caídos, junto ao corpo, era porque estava a fazer coisas feias. Eu não sabia o que eram coisas feias. O ódio com que batiam nas crianças cegas. Precisávamos de pancada. O vigilante entrava pela aula dentro e desatava à bofetada. E a professora era ceguinha também, nada podia fazer.
O senhor Guilhermino foi criado numa Misericórdia sem misericórdia colada ao mar em São João do Estoril, mas com mais ou menos bofetadas e lençóis destapados a meio da noite, aquela gente sem dó não embruteceu o senhor Guilhermino, que aprendeu o mais belo dos ofícios: a música.
Não lhe valeu de muito o grau superior do Conservatório, o arco e a elegância do seu violoncelo ou dos seus dedos ágeis no marfim do piano. A vida dos cegos ganha-se na rua, mas o Salazar nunca fez mal aos ceguinhos, garante o senhor Guilhermino, que dispara contra o 25 do 4 implacável, nos contextos mais absurdos.
A sua companheira de vida não a conheceu através de anúncio, mas andou lá perto.
A minha mulher ganhava dois escudos a lavar casas à escova. Na terra, guardava as vacas desde os cinco anos e bebia água fresca da fonte. Veio para a cidade servir. Queres vir para a minha companhia? As mulheres dedicavam-se de alma e carinho porque precisavam, agora não precisam de nós para nada.
As mulheres, senhor Guilhermino, precisam de se dedicar a algo ou a alguém; é esse o nosso fado, nada mudou, a conta bancária pode ter até quatro dígitos no início do mês, as contas podem até estar todas pagas, mas as mulheres precisam de se dedicar.

(continua)

sexta-feira, janeiro 05, 2007

Dia de blog

Faz já muito tempo, os reis magos perderam-se, há quem diga que certa noite, Belchior fumou umas coisas que não devia e viu uma constelação que nunca mais foi identificada em mais de dois mil anos de mundo, depois, como se já não fosse considerável o seu atraso para visitar o filho de Deus, entraram numa taberna e ficaram à conversa com o velho Herodes (isto lembra-me uma cantilena muito javarda, o velho Herodes já morreu, e quem se f++++ sou eu), copo 3 para aqui, copo três para acolá, e tudo perdido: só chegaram ao estábulo dia 6 de Janeiro, já o menino Jesus fazia as suas primeiras graças nas palhinhas deitado e com um cheiro de requeijão e estrume insuportável.
Este blog nasceu há dois anos em Dia de Reis, conforme lembrou a Mary Mary tão bem num comentário lá em baixo. Eu não esqueci. Simplesmente, tenho filha doente, muito doente com a sua primeira amigdalite e a Magui instituiu que, para o ano, o Natal lá em casa é à espanhola, só se abrem os presentes no dia de Reis, sem stresses e com promoções de 70 por cento que permitem comprar mais do dobro de incenso, mirra e ouro.
Este blogue é precioso, foi um bonito presente, eu deixo-o aqui abandonado à sua sorte e ele entra em auto-gestão; é mesmo assim que tem que ser até a pequenita ficar boa.
E depois disso, haverá uma grande festa. Sem dúvida que haverá. Inscrições abertas, como sempre, na caixa dos comentários e no email que está por aí no lado direito em cima.