A doutora
A doutora ficou de cabelos em pé, madeixas loiras, brancas, vermelho fogo e castanhas-escuras, um arco-íris capilar e cada cor espetada para seu lado, de costas voltadas como amantes zangados a partilharem a mesma cama. Saída de um divórcio litigioso com convenção antenupcial que cobria até a custódia do papagaio africano que se deliciara a aprender de trás para a frente a última edição do dicionário de calão da Editorial Notícias para combater a agonia dos últimos dez anos de casamento dos seus donos, a doutora vinha com pequenas gotas de suor presas nos riachos das rugas da sua testa, a bufar pelos lados da boca um fumo fininho branco, quase imperceptível à vista humana, e a desgraçada da subserviente funcionária da conservatória não podia ter escolhido pior altura para indagar, a medo, em jeito de pedido de autorização:
Podemos casar estes dois no Jardim da Estrela?
As pupilas dilataram-se e os globos oculares da doutora tiveram ganas de ir dar uma voltinha ao andar de baixo e ver outras vistas sobre a cidade. Os óculos, de meia-lua, hastes encarnadas, desceram o escorrega da cana do nariz e a sobrancelha direita da doutora esticou-se (a testa ficou sem rugas e caiu uma gota de suor em cima da secretária), e a doutora, perplexa, as suas roupas de estilista a caírem com menos graça pelo corpo de girafa abaixo:
Não é digno casar no Jardim da Estrela... Conhecem as nossas salas de casamento? Temos a rubi, a pérola, a cristal...
Não havia verniz para estalar e então estalou um bocadinho da unha do anelar esquerdo da noiva.
Perdão?
Doutora, desculpe-me, a noiva a falar e maravilhada, quase paralisada com a etiqueta do inventário do computador do estado escrita à mão com tinta permanente, e o tapete de rato publicitando os serviços de uma agência funerária, qual é mesmo a diferença de casar numa tenda de uma quinta nos subúrbios que há-de ser fechada mais cedo ou mais tarde pela ASAE, ou na cabine de um avião da TAP, ou sob a areia da praia, e porque é que não é digno casar num dos mais belos jardins de Lisboa?
A doutora cheia de tiques, os olhos a tremerem muito subtilmente, a funcionária atrás dela a esfregar as mãos da nervoseira, um misto de pena de já não ir casar aqueles dois no Jardim da Estrela onde, a própria, há três décadas atrás namorava escondida no Caracol.
Bem, vai ter que nos dizer onde é que na lei diz que não nos podemos casar no Jardim da Estrela.
A doutora viu que não se safava com estes noivos armados em sabichões. Tentou arrasá-los com uma vitória de secretaria.
Bem, então, preciso das licenças emitidas pela autarquia, para começar o processo. Têm um mês.
A licença foi dura de obter. Todos os dias, 21 3912463, está lá, dona Rosinda, novamente Diana Ralha, ai mulher que me parece que já não me caso se não me sai essa licença de ocupação do espaço público... Amanhã? Está bem, eu ligo amanhã às 15h. Todos os dias a mesma coisa, a querida da Dona Rosinda, sempre a mesma resposta, depois a até nos mandou medir o perímetro do coreto, ó raios o perímetro era mesmo como, dois pi ao quadrado?, até que, quase em cima do limite legal, a bem aventurada autorização chega ao tabuleiro do fax.
Tiraram a senha.
A senha dos casamentos ainda não funciona, tem que se tirar uma que também dá para óbitos e a etiqueta do inventário escrita à mão está um pouco mais descolada e o tapete de rato da funerária continua à vista de quem é viciado na realidade. Os livros de registos já não são escritos com bonitas caligrafias a tinta permanente, mas sim, com letras muito redondinhas da funcionária de vinte e poucos anos.
Os divórcios sucedem-se e a doutora continua a vestir uns trapinhos que não se podem compram com o salário de conservador, índice 174. Sentados, à espera da vez, ouve-se a doutora vitoriosa a falar com a funcionária com desdém: Não devem ter conseguido a tempo a licença...
A noiva ouve, porque a noiva ouve tudo, vê tudo, mas não diz nada ao noivo. O painel luminoso chama o número que está impresso na senha verde e os noivos avançam dois passos e sentam-se.
Surpresa (pensa a noiva), estamos aqui.
Ainda agora estávamos a falar de vocês.
Eu sei (pensa a noiva). Fala-se do demónio e aparecem os cornos (acabou por dizer a noiva).
Está aqui a licença, conseguimos.
A doutora bufa, bufa lá de longe sem se mostrar, a funcionária sorri e diz para lhe perdoarem qualquer coisinha que vai ser o seu primeiro casamento fora das salas do edifício da Fontes Pereira de Melo.
O casamento está marcado para as 12h do dia 29 de Abril.
Apareçam.