sexta-feira, março 23, 2007

Carta de demissão (ou vou só ali aprender a tocar piano e já volto)

O raio da velha em São Félix, nós todos encostados em fila indiana junto ao muro de pedra, o Toyota Corolla estacionado na faixa de rodagem em cima da curva de cotovelo, e eu a sonhar com o gemido do portão de ferro a abrir-se, a sonhar com o alpendre da casa do meu avô Oliveira e com o pomar das laranjeiras que não via há tempo demais, e a velha que se fixou em mim e que não me largou, a cara dela craquilhada por entre um lenço preto de viuvez, agarra-me nas mãos, chama-me Magui – e eu tinha uma borbulha na testa, desculpem-me, mas eu tinha catorze anos, mas não era loira como a Magui, que me passou para o sangue os seus olhos azuis –, o raio da velha que há-de martelar-me durante muito tempo, inspeccionou bem as mãos, virou-as e revirou-as (eu já roía as peles quando estava nervosa), e diz assim muito séria, olhos nos olhos do meu tio Manuel:

Ela tem mãos de pianista.

Vinte anos depois de me ensinar a desenhar todas as letras do alfabeto e, seguramente, os mais belos xis de Lisboa, a professora Gertrudes Maria sentada no Luanda, surpreendentemente igual a si própria, como se tivesse sido ontem que me dispensara de fazer os trabalhos de casa para todo o sempre porque me tinham morrido as duas avós, nos olhos, nos olhos muito grandes, as mesmas olheiras negras e o fiel companheiro verde-velha, pintado a pincel por cima das pálpebras e diz-me assim muito séria:

E tu, sempre és pintora como o teu pai?

(o mais surpreendente deste encontro nem foi o lembrar-se, vinte anos depois, que eu queria ser pintora; o mais surpreendente foi lembrar-se que eu amava a cor roxa, que pintava céus e malmequeres roxos com lápis de cera Sino)

Depois, escreve-se um blogue, escreve-se um blogue porque o salário não estica para lá do dia quinze, porque as escadas de um quase bicentenário quarto andar sobre a Duque de Loulé parecem uma via-sacra todos os finais de noite em que se carrega sobre o ombro direito escada acima uma menina com cabelos de ouro, essa sim, que podia ser confundida com a reencarnação da sua avó Magui, e à qual eu disse assim, sem pensar, meia anestesiada e com o ventre aberto a ser costurado pelas mãos hábeis do doutor Moniz:

Ela tem mãos de pianista como a mãe.

Escreve-se um blogue porque a família Pestana, toda a descendência do patriarca João, é preguiçosa e, certamente, tem artroses nos joelhos ou falta de paciência para trepar os sessenta e cinco degraus podres até às assoalhadas de uma casa velha da rua de Santa Marta. E, de repente, escreve-se, escreve-se sem parar até à tendinite, porque as noites são brancas, e matam-se a escrever num teclado branco, enquanto os dias se ganham a dedilhar num teclado preto.

(e o raio da velha, outra vez, com esta coisa das teclas brancas e pretas – ela tem mãos de pianista)

De repente, alguém que todos nós conhecemos bem, alguém de quem temos saudades e a quem eu gabava umas botas de estilo militar, esse alguém escreve (que é coisa muito mais séria do que apenas dizer da boca para fora):

Ela é a melhor escritora.

E porque alguém escreveu isto, a vida muda drasticamente: o raio da velha já não martela tanto, só pontualmente, quando os dias se ganham a escrever no teclado preto ao som de Chopin.

E na madrugada do dia que assinala o começo da Primavera, há trezentos e sessenta e cinco dias, os jardineiros da câmara de Lisboa atarefados a plantar cinquenta mil flores, entretidos com a empreitada entre vasinhos de ciclames e amores-perfeitos, ancinhos e pás pousados na calçada, e cumprindo o destino, nessa mesma madrugada, houve alguém que também se habituara a noites brancas, houve alguém que, perto da Estrela, atrás de um teclado de cor incerta, foi a visita cinquenta mil do tal blogue, apenas porque se escreveu, porque se espalhou que ela era a melhor escritora; e esse alguém, esse um em mil milhões, predispôs-se a ir buscar um dicionário com mais de duzentos anos debaixo de uma roseira, predispôs-se a recolher cartas de amor debaixo dessa mesma flor que ainda se lembra de haver um leão na Estrela.

E a vida ficou mais simples.

A dona Maria continuou a vir buscar-me, ao final da tarde, um exemplar do 24horas para se rir no autocarro depois de uma jornada de trabalho de catorze horas, eu continuei a fazer obituários de prédios bonitos que todos os dias morrem nas imediações da Viriato, a fumar despudoradamente no meu posto de trabalho e a levar, por isso, com as culpas de cancros alheios.
Contei histórias mirabolantes de mendigos de olhos azuis com sorrisos pueris aos quais o Cerejo me ordenou ir entrevistar do alto dos dez centímetros dos meus saltos altos, loucos que encontrei meses depois, com um recorte de jornal junto ao peito, com mil e quinhentos caracteres impressos a bold junto ao peito.
Nos piores dias, fui cantar missas de Mozart no fumódromo e a Anabela chamou-me de rapariga peculiar.
Escutei com atenção, agarrada ao auscultador do telefone, o fabuloso destino do senhor Guilhermino que nunca cheguei a publicar, e o Cerejo continuou a chamar-me “coisinha”. O Adelino disse-me, no corredor, junto à máquina do café, que eu escrevi uma coisa muito bonita e até hoje eu não faço ideia o que foi; a Teresa de Sousa deu-me conselhos de puericultura no elevador, e quando a coisa estava mesmo mesmo a rebentar, quando eu quase não conseguia respirar, entre plenários, greves e rescisões, encontrei um frasquinho de água com sabão na mala e soltei milhares de bolas irisadas ao longo da Andrade Corvo e sorri quando ouvi o nosso louco, o Afonso, a gritar:

A nossa rua está linda!

(mais acima, há algum tempo, no refeitório do Pingo Doce da Tomás Ribeiro, um velhinho também se aproximou de mim com um saco cheio de carcaças e segredou: vou dar pão aos malucos, e eu fiquei muito aliviada de não ter sido presenteada com um pãozinho)

Espera-se tudo a partir de hoje.

Espera-se que o cabelo me cresça até ao rabo, ou que fique todo branco aos trinta e cinco anos, como é o fado dos Ralhas. Espera-se que as Ginkgo Bilobas de Lisboa deitem daqui a vinte anos o fedor a manteiga rançosa que alguma louca vaticinou e teve o privilégio de escrever nas páginas do Público. Espera-se que o António Barreto continue a dar conta da floração dos jacarandás todos os anos em papel de jornal (e, já agora, que haja mais jacarandás em Lisboa). E eu espero mesmo esta: que o prédio da Tudor, na Fontes Pereira de Melo, não se suma na memória, e que seja resgatável apenas no arquivo municipal de fotografia, ou num texto do Público que fala de dragões e pérgulas de rosas. Quem sabe, quem poderá saber, se calhar, até se espera que alguém, um dia, sabe-se lá porquê e para quê, encontre um texto de uma jornalista com um apelido estranho, sobre um raro metal precioso chamado paladium.

(e, certamente, espera-se que a Cristina Ferreira continue a aconselhar mocitas em idade fértil a nunca se mudarem para casa dos namorados, porque, mais cedo ou mais tarde, hão-de ficar com uma mão à frente e outra atrás, que a Lurdes Ferreira enxugue, nos próximos anos, as lágrimas de adolescentes traídas pelas suas melhores amigas, que o Paulo Madeira ensine ainda muita gente a pontuar com vírgulas, que a Ana Henriques continue a vir para a redacção sem soutien, que o Cerejo se faça ouvir por toda a redacção quando está a descobrir ao telefone alguma escandaleira, que o Miguel Madeira faça mais uma tatuagem, que o David Clifford improvise serenatas à hora do fecho, que a Lena e a Sandra tenham a pachorra de ensinar alguma garota interessada a paginar as cotações da bolsa, espera-se que alguém se barrique na varanda da Viriato, que o Zé Bento Amaro continue a fazer rimas porcas, que o Tiago não tenha emenda e continue a chamar darling às suas editandas, e que o Pedro Ribeiro seja sempre facilmente contactável no aquário de vidro, com um maço de Pall Mall azul)

Por enquanto, eu só espero aprender a tocar piano.

Até já.

(oito caracteres; oitocentos, umas brevezitas, por cada ano que passei convosco)

3 comentários:

Anónimo disse...

ahahahah!
Que delícia, que injustiça... num te deram nem uma carcaça?

Isa disse...

mt bom post. saudades. bjs mil

Carrie disse...

Já está, amiga? Acabou?

Um beijo grande