sexta-feira, março 09, 2007

O caso bicudo

[Regresso ao dashoboard depois de tantos dias a tratar amigdalites crónicas. saudades e desculpas de mau escrevedor.]


O papel de jornal serve de toalha para a tigela da água do cão (já não digo que é a forra do caixote do gato, porque somos um pais desenvolvido, com areia perfumada no Mini Preço a 70 cêntimos cada cinco quilos), ainda me lembro de estender o espesso Expresso no chão da marquise, e da alegria que era encontrar uma notícia interessante, inadvertidamente, a meio do acto de despejar um quilo de ração para cães gigantes de cu virado para a lua; serve para tanta coisa o papel do jornal, eu sei lá, para acender lareiras (as minhas notícias dão uma chama anil), é raro, mas também ainda vai dando para fazer cartuchos para as castanhas no Outono, quando se esgota o stock de páginas amarelas; serve para fazer trabalhos manuais em papier maché, apesar de o que está mesmo mesmo na berra é o feltro; enfim, o papel de jornal fica largado pelas estações do metro de Lisboa desde que chegaram os gratuitos, e quando ninguém está atento, o papel dá espectáculo também de borla e rodopia em passos meticulosamente coreografados; serve para muita coisa, sobretduo, para sujar as mãos, mas poucos, muito poucos, só uma pequena minoria, cerca de dez mil de acordo com a Comissão da Carteira Profissional de Jornalistas, é que sabem a trabalheira que dá conseguir uma informação digna de ser impressa em papel de jornal.

Três dias. Três dias para confirmar o óbvio (tão prudente, esta jornalista; é por isso que não vai longe; é por isso que lhe faltam no currículo enraivecidos direitos de resposta e processos disciplinares).

Dezenas de telefonemas para o núcleo administrativo de uma força policial de Lisboa: sim, no sábado, cerca das 15h20, um zeloso munícipe ligou para a esquadra a denunciar um roubo de azulejos arte nova da fachada de um prédio. O prédio e os azulejos são ambos arte nova. Na Estefânia. E para desconversar: Sabia que morou por lá o Fernando Pessoa? Esse mesmo, o poeta, morou por cima da leitaria, onde vivem os sem-abrigo, eu sei que é uma javardeira; no outro dia, urinavam à porta, junto à filinha da paragem do autocarro, e à noite, vimo-los de passagem, iluminados à luz de velas brancas, não vou esquecer aquela imagem, era mesmo bela, mas sim, é uma vergonha, pois é.

Sempre a mesma lenga-lenga: Confirmam? Estiveram lá realmente? O que fizeram ao ladrão de azulejos? Eu tenho fotos do ladrão em flagrante delito... Sim, foi o munícipe que as tirou; o mesmo que jura a pés juntos que lá foram... Só não me sabe dizer a matrícula do vosso carro...

E do outro lado, lá para as bandas da Praça de Espanha, eu bem procuro, eu já vi em toda a parte, mas ninguém sabe nada do roubo dos azulejos.

E ao terceiro dia, o roubo dos azulejos não ressuscitou por entre uma pilha de processos empilhados na secretária do sub-chefe. Ao terceiro dia, o roubo foi confirmado pelo proprietário do prédio onde viveu Pessoa, que também não viu qual era o grande problema ou sacrilégio da pilhagem. Isso é notícia?

Mas a jornalista é boa jornalista, e deu-lhe naquele dia - talvez porque a sua secção tem, hoje em dia, um máximo de três páginas recortadas de publicidade e não há grande coisa para fazer - para ligar uma última vez para o sub-chefe. Era o mínimo. Para agradecer o trabalho inglório.

Imaginara-o perdido por entre labirintos de arquivos poeirentos, com as bochechas vermelhinhas de tanto procurar, nervoso, a enrolar a corrente do telefone pelo indicador esquerdo acima, à procura em todas as extensões de alguém que soubesse, que tivesse pelo menos ouvido falar no roubo dos azulejos; a roer as peles dos dedos aflito por não poder ajudar a jovem jornalista - a jovem jornalista adora estas coisas, deixar-se levar pela imaginação galopante que a sua mãe de olhos azuis lhe deu, mas sabe, porém, que existe uma forte probabilidade de elas só acontecerem, de facto, numa outra galáxia, num mundo muito mais divertido.

E o sub-chefe comoveu-se com tanta amabilidade, os seus colegas costumam ser umas bestas, disse, e ela naquele dia estava cheia de frases feitas na manga encarnada da camisola, disse, é como em tudo, há bons e há maus, mas desculpe, sra. jornalista, não lhe ter conseguido confirmar o roubo, é que andamos aqui todos às voltas com um caso bicudo.

Ele disse bicudo, e os olhos da jovem jornalista brilharam e imaginou um bigodito pontiagudo a crescer na cara do sub-chefe. Deu-lhe corda, porque, afinal, eram ainda cinco da tarde, e não havia nada de melhor para encher as duas únicas breves de 500 caracteres que restavam da edição do dia seguinte.

Conte-me tudo.

Não estava à espera de crimes horrendos, que chegassem com honras de chamada à primeira página do papel de jornal, esperava por algo bizarro, fez figas para que ele lhe dissesse que tinham apreendido uma burra que estava à venda às seis da manhã na Feira da Ladra; já era o quanto baste para que ganhar o dia.

só que era melhor do que podia ter imaginado. O caso bicudo.

Andamos aqui às voltas, com um pittbull que está a ser disputado por dois donos. E agora eu pergunto-lhe: como é que sabemos quem é que é o dono?

E ela, caladinha, não ia estragar a longa conversa telefónica com um e que tal verificar se o animal tem um chip de identificação electrónica?

Interessante... Xiii... Complicado... Conte-me mais...

É como naquela história da Bíblia, mas só que não podemos cortar o cão ao meio para toda a gente ficar feliz... O pior disto tudo, senhora jornalista, é que com esta espera, sabemos lá se o animal já não foi abatido no canil? Sabe como são as regras... Três dias e depois kaput. Mas também lhe digo, ninguém abate um animal de ânimo leve; há para lá muitos funcionários com depressões...

Coitados. Pois é... é um trabalho sujo, mas alguém tem que o fazer... Nem que fosse o último emprego no mundo...

Quanto mais conheço as pessoas mais gosto dos animais... É o que se costuma dizer. Por isso é que eu digo, senhora jornalista, não me canso de dizer isto: quem gosta de animais, tem que tirar fotografias, tem que pedir - a um familiar, por exemplo -, que lhe tirem uma fotografia ao lado do cão ou do gato. Não vale a pena ser só a foto do animal. Há animais parecidos... Se tivéssemos uma foto, o caso estava resolvido...

(não teve coragem, a jovem jornalista, de falar ao sub-chefe nos esquemas pérfidos da mafia dos animais de estimação que sabem o que é a foto-montagem e conhecem os milagres do photoshop. Desligou o telefone com um sorriso nos lábios e foi buscar uma menina loira à escola, lá para os lados do aeroporto)

5 comentários:

Anónimo disse...

post "zcelente"

Dia disse...

gracie

MPR disse...

Regressaste! Do mundo perdido do offline... Já se sentia por aqui a tua falta.

Anónimo disse...

olha lá, não estamos quase em abril?!

Unknown disse...

Sobre o descaminho de azulejos, e a sua comercialização, que tal visitar periodicamente este site americano, propriedade do ex-presidente da Associação Portuguesa de Antiquários.

http://www.solarantiquetiles.com/

Não obstante não duvidarmos da licitude desta actividade comercial que não nos compete pôr em dúvida, é pertinente a interrogação de quantas das exportações definitivas de pedras históricas e azulejos com mais de cem anos é que foram autorizadas pelo Ministério da Cultura ?

Com consideração