quarta-feira, maio 23, 2007

I

Chegou à rua de uma das santas que olha por si.


Na véspera, antes de tudo acontecer, já quase como um pressentimento que vinha do ronco das ondas sobre as rochas escuras de vulcão da ilha do arcanjo, pedira a todos os santos, pedira à Marta com mais força do que ao Miguel, mesmo sabendo que ele era arcanjo e que ela, ainda para mais, era uma mera santa padroeira das domésticas, mas pedira com tanta alma que até se lhe eriçaram os pelos dos braços; não devia desvendar isto aqui, mas ora que esta, que se dane, também já não ocupava um cargo de confiança política, por isso, neste momento e sabe-se lá até quando, podia voltar a escrever tudo o que os dedos muito magros lhe ordenavam, já nada do que aqui se escarrapacha corre o risco de ser pespegado em papel de má qualidade por um qualquer mal intencionado jornaleiro, sim, é verdade, um mês naquela nova profissão e conseguiu passar a odiar grande parte da classe a que pertenceu, à classe cuja caixa de abono e previdência lhe passaria a depositar a prestação social por um prazo de 13 meses; sim, a revelação, já lá vamos, com calma, nada nesta ilha se faz à pressa, e esta é coisa para fazer ribombar os tambores, pelo menos aqui, à luz de um céu estrelado, e da melodia ritmada das rãs na ribeira e de quando em quando pintalgada pela espuma das ondas; aqui, onde os ponteiros se arrastam vagarosos, passa tudo mais devagar, eu escrevo quase às escuras uma hora antes de quem me há-de ler, e estou sob influência de um anticiclone que se apaixonou por este pedaço de terra, e, se é certo que o desgosto não ficou para trás na cabine do airbus da Sata, após mais uma petrificante aterragem que lhe colou as costas às costas da cadeira, certo é que, o tempo, que aqui tem mais tempo, ou talvez a latitude da ilha do arcanjo tinham, de facto, poderes curativos, analgésicos ansiolíticos e anti-depressivos, porque chegou, não à rua da sua santa, mas à ilha do seu arcanjo, e desmaiou de overdose de emoções num sofá-cama e nada mais se lembra até o acordar, hoje de manhã, num sótão solarengo, tão desorientada que teve que se sentar uns minutos largos a balançar na cadeira de couro por baixo da janela Velux para a alma regressar a bom porto; sim, a revelação, eu não me perdi, eu sinto tudo, eu vejo todas as palavras, eu rebobino todos os filmes da minha vida neste momento, eu lembro-me de envergonhar o Leonardo na Avenida da Igreja com o Zé Ralha com purpurinas a enfeitarem-nos os cabelos, eu rio-me com a lenga-lenga arraçada de feitiço, do chamamento de táxis à Estados Unidos de América – Apareça, Apareça, Táxi sem cabeça -, eu parece que o vejo sentado na beira do Lago, a confessar-me que pedira aos gatos que povoaram o Robalo de geração espontânea, que pedira uma vida a cada um, para emprestar ao meu avô, quando um AVC o deixou mudo e com o raio da perna esquerda preguiçosa; mas, a revelação já não me apetece contar, não é de propósito, mas esta é só minha e dos meus santos, e eu pedi na véspera a todos os santos e especialmente à Marta que me protegesse de todos os males, pediria amanhã o mesmo ao senhor Santo Cristo dos Milagres, e nada, mesmo nada poderia supor que, afinal, as coisas extraordinárias não tinham cessado de me tropeçar à frente dos pés; queixava-se, queixara-me para dentro, que mais nada digno de registo lhe acontecia, por isso, abusava amiúde da label “e nada de extraordinário acontece” quase como uma prece, uma súplica, mas esqueceu-se que a este um grupo restrito de felizardos do extraordinário, por vezes também acontecem coisas extraordinariamente más; tinha mesmo que ser assim, levava muitos anos disto, já se conformara, por vezes tinha mesmo que ser assim, porque se não o universo desequilibrava-se das pontas de ballet em que dança, e não era coisa bonita de se ver, o pandemónio que era depois.

Chegou à rua da santa que velava por si.
E o demónio do estacionamento fez o favor de lhe guardar um lugar à porta.

(há-de continuar; só não se garante quando)

3 comentários:

Anónimo disse...

Pois que sou a primeira a comentar (e disso muito me orgulho!!) este post há muito aguardado por tantos de nós que têm o privilégio de ler este teu pequeno canto da net feito tesouro. Benvinda! E ouvi dizer que a Marta (a santa) mandou finalmente pintar alguns jacarandás só para ti!

Isa disse...

é verdade, Lisboa está cheia deles pra te receber. Bj gd querida e saudades destas postas.

Mary Mary disse...

Não sei não, é certo que por vezes não te leio. Mas este post está arrebatador. Não identifiquei a Dia, vi uma alma nova, alguém que não caminha mas que flutua. Apesar da tristeza a felicidade continua. Nem sabes como fico feliz por saber que estás assim. Que mesmo nos momentos mais baixos consegues ter altos também. Estás diferente do que te conheci. Estás mais feliz! Um grande beijinho para ti, para o diabinho loiro e agora para o senhor que entrou na tua vida de rompante algures no jardim da Estrela.

P.S. - Vejo esse jardim e o coreto agora todos os dias e lembro-me sempre de ti. O jardim ganhou outro encanto! :)