A Carolina começou a escrever.
Timidamente, mesmo antes do seu quarto aniversário, começou por juntar as letras magnéticas que decoram o fiel frigorífico de marca branca em segunda-mão que resgatei por dez contos de réis de um apartamento da Lapa há sei lá quantos anos – e eu a ter que dar a mão à palmatória e a entender a tonta da minha mãe quando chorou pelo pobre caixote do lixo azul e branco que levou com tudo o que não era suficientemente bom para ser ingerido ou guardado nos armários, e que depois de trinta anos de serventia abnegada, por minha causa, por meu capricho, porque estava velho, sujo, a apodrecer, foi parar ao lixo; minimizei a coisa, até fiz um esforço para compreender o ataque de choro, repara, mamã, o céu dos caixotes do lixo, a sua grande viagem, o momento que eles esperam durante toda a sua vida, e que vida longa teve este caixote, é ir para o paraíso, para a lixeira; quantos gagues de almoço domingueiro já fiz eu com o pobre caixote do lixo, e a minha mãe ainda triste por nos termos livrado dele, e agora a perspectiva de abandonar o fiel frigorífico à mercê do seu destino, na rua estreitinha da Santa, começa a aterrorizar-me, apesar do gelo que se acumula no pequeno electrodoméstico onde cabe pouco mais do que um quilo de bifes e um pacote de verduras congeladas.
A primeira palavra que disse foi mamã, a primeira que escreveu foi Noddy, nada contra, não sou ciumenta, e o som da letra ípsilon ficou-lhe na cabeça a martelar, sei como é, sei tão bem como é; um mês depois, começou a desenhar letras no papel, agora procura de vez em quando o teclado do computador, gosta do til em cima do a – leia-se o chapéu em cima do triângulo –, não fomentamos o seu interesse pela escrita, a Magui outro dia ensinou-lhe o conceito de infinito, mas não fomentamos, começou a escrever sozinha – Disney é parecido com Diana, mas tem um ípsilon em vez da letra que é parecida com o um, disse ela ainda ontem enquanto brincávamos às artristas das tintas no chão, em frente ao sofá laranja –, 2-2 são zero, o infinito é um oito a dormir, e assim vemos a nossa vida em fast forward à frente dos nossos olhos, e tememos que ela se torne infeliz por ter descoberto cedo de mais o elixir da vida eterna.
Só precisamos de escrever, é tão simples quanto isto, o passaporte para a eternidade sai-nos das mãos, a Carolina já percebeu que sim, eu demorei tanto tempo a perceber porque escrevo, porque escrevo mesmo quando me dói o pulso doente da doença profissional que ganhei por levar esta vida a escrever.
A Magui diz “Antes de morrer vou escrever apenas esta frase – Eu passei por aqui”, mas não basta, só voltamos a viver de novo, estejamos desfeitos em pó ou ainda em ossadas que teimam em não se desintegrar porque esta terra está cansada de mais de tudo o que se passa por cima de si, se deixarmos tudo escrito, em Viseu a casa está intacta, inviolada desde há cinquenta anos, abrimos as gavetas, abraçamo-nos às latas de Toddy que nos adocicaram a boca na infância, e encontramos a Magui, uma Magui que eu nunca conheci, a Magui antes de ser a minha mãe, a menina que era galanteada por pretendentes mais velhos que estudavam medicina em Coimbra, que serão hoje já avós, que poderiam ter sido os meus pais, ou os pais da criança que havia de vir no meu lugar, a Magui que vivia enclausurada em conventos povoados de freiras maldosas, que lhe cortavam os cabelos loiros por serem tentação demoníaca, que a largavam à noite pelos corredores, a Magui que até fazia tenção de responder aos galanteios, que escrevia as respostas às assolapadas declarações de amor e pedidos para passear de mãos dadas no Parque de Viseu, mas depois nunca chegava a entregá-las nos correios.
Se não estivesse escrito, escondido em caixas e caixinhas, perdido em Viseu, tudo já se haveria perdido no nevoeiro dos dias que tudo fazem esquecer.
Eu escrevo cábulas da memória, um dia alguém vai encontrar estes milhares e milhares de monólogos e intrigar-se, alguém se questionará – talvez a minha neta, ou bisneta, um parente afastado que partilhe o meu estranho apelido –, se terei existido mesmo ou se sou mero produto da imaginação de uma outra criatura; vivemos ao lado de pessoas que na verdade não conhecemos, deixámos de escrever, todos nós deixámos de escrever, e eu sei mais do meu avô que morre de desgosto numa ermida do outro lado da margem através de um recorte de imprensa da Ordem dos Farmacêuticos, do que por ser sua neta durante quase trinta anos.
As minhas mãos, eu escrevo com as mãos pousadas sobre o teclado, de outra forma doem-me os tendões ao fim do dia, parece que estou a ler braille, acaricio as teclas, e não olho uma única vez para baixo, para o desenho das letras, sei de cor onde elas estão, as minhas mãos hão-de deixar de existir se eu parar de escrever, porque tudo se resume às palavras – às que dissemos sem colocar a voz para que se ouvisse lá ao fundo da sala, às que hesitámos e tivemos de pigarrear um pouco antes de lançar, às que ninguém ouviu, às que atirámos como facas e que acertaram certeiras no peito de alguém, não há nada mais forte do que as palavras, com mais poder que as palavras, estas, aqui, neste sítio, não valem tanto como as que se cravam no papel; um dia, neste sítio, há-de parar tudo a um buraco negro, e o papel há-de parar ao lixo, certamente, mas continuarão para todo o sempre, enquanto o mundo for mundo, os resgatadores do passado, que compram os retratos das famílias que ninguém quis em herança, que vasculham o monte de lixo deixado à porta de prédios à espera de serem demolidos e guardam com carinho desenhos feitos pelo Francisco, ou pela Margarida; um dia, a minha filha saberá que a sua avó amou perdidamente o seu avô, a quem chamava de Mané só para se vingar do facto de ele a chamar de Guida e não Magui; descobrirá que a mãe era uma criatura ingénua que acreditava em fadas, em bruxos e em contos de encantar, que, em tempos, escreveu que algo inacreditável e extraordinário aconteceria à 50.000ª visita de um blogue, porque a faixa 50 do CD que ela ouvia incessantemente falava de um amor maior que o medo, que no equinócio da Primavera aquele que seria o seu futuro patrão mandou plantar 50.000 flores na Avenida da Liberdade, que às quatro e picos da manhã o visitante 50.000 chegou, e desde então viveram felizes para sempre.
Deixámos de escrever – há muito que deixámos de cantar, outra forma de escrita imortal –, anotar bastava, é tão simples quanto isto – até uma criança com menos de quatro anos já percebeu –, vejam só, eu tenho dois anos úteis de memórias em que sorvi o amor das minhas avós, se eu não escrever, elas morrem comigo; não foram heroínas, não estarão nunca em manuais escolares, ninguém escreverá romances sobre as suas vidas, se eu não escrever tudo o que puder sobre os dois anos de memórias conscientes que ainda trago em mim, ninguém saberá que elas passaram por aqui.