II
Eu não sei porque os fazem tão feios.
Os edifícios da segurança social, digo, deve fazer parte da breve nota da pasta da tutela que acompanha o caderno de encargos dos concursos públicos: por favor, senhores arquitectos, não se esmerem, esmerdem-se, queremos feridas urbanísticas a rasgar o céu, destruam o sistema de vistas sem qualquer pudor, violem as cérceas definidas pelos PDM, aliás, nem olhem para ele, dêem-nos empenas cegas para colar telas publicitárias gigantes, aqui amamos o fel, senhores arquitectos, o fel tem mesmo tudo a ver com os desgraçados que nos vêm pedir esmola à porta, vão trabalhar malandros, e eu pensava nisto tudo enquanto saía da segurança social de Ponta Delgada e me encaminhava para o carro encarnado nipónico, cuja marca não consegui fixar (Nissan, salvo erro, 191 mil quilómetros de carro de combate rasteirinho à estrada, ideal para as curvas e contra-curvas que fazem as delícias do Fittipaldi que há em mim; a Magui sempre disse que eu ia ser um Fittipaldi de saias, ela dizia isto quando eu não tinha incisivos frontais nas gengivas e eu não sabia o que isso queria dizer, mas acabou por ser verdade).
Era a hora do recreio.
E o carro encarnado ainda não tinha 191 mil quilómetros registados no contador, mas andava lá perto. Eu sentei-me atrás do volante sem esperança de conseguir em tempo útil um comprovativo da segurança social de que não era uma malandra como os demais que ali pedem esmola. E esmagada por uma tristeza infinita eu disparei para o lugar do morto, sem coragem para fazer rodar a chave da ignição e, por isso, optei por fazer baixar o vidro e atear um cigarro Além Mar: só me apetece chorar, e aquilo soou um pouco despropositado - o fado da segurança social.
Poucos segundos passaram, as crianças continuaram a guinchar no recreio, e o telefone tocou.
Aconteceu uma coisa muito má, disse o Leonardo, que nem esperou para respirar fundo num acto involuntário de ganhar coragem, ele disse logo que a Magui estava bem.
Foi o avô, ai o avô, mas, do outro lado, o impensável foi transmitido através da tecnologia GSM. Não. Foi o Zé Ralha, ele morreu.
E como estávamos em dia de os impensáveis acontecerem em catadupa, eu senti o cheiro das chagas que abraçavam a rede metálica de protecção da escola secundária, e eu sabia que as mesmas chagas estariam a trepar pela fachada da casa do Zé Ralha, e pela escarpa junto ao eucalipto que decidiu cair no dia em que o avô teve um AVC, e eu voltei a dizer, porque assim é que era certo pela ordem natural das coisas, não estás enganado, foi o avô.
E chorei. Chorei como nunca imaginei que pudesse chorar pelo Zé Ralha, nem eu sabia que o meu avô teria que dizer vezes sem conta ao telefone, não, não fui eu que morri, foi o meu filho Zé Manel, e eu chorei magoada porque ele não se ter vindo despedir de mim, e a partir daquele instante, fiquei à espera de um sinal do meu pai, eu sempre achei que ele viria despedir-se de mim de uma qualquer forma sobrenatural ao qual nos habituou com as suas histórias de bruxos e feiticeiras, reparem, ele nunca ia morrer porque era feito de outra matéria, não lhe corria sangue nas veias, mas pós de perlimpimpim, e depois de muito chorar, e sem forças nas pernas, eu segui amparada pelo João meio cega, seguimos até a um jardim que o Zé Ralha devia ter conhecido. A única coisa extraordinária que aconteceu, mas eu não sei se foi obra do Zé, porque eu olhava para o céu e lá em cima ainda não havia ainda nuvens pintadas por si, ele contou-me há muitos anos atrás, quando estava à deriva no atlântico, sem fé de ser encontrado, sozinho, a boiar de cansaço, ele disse-me que pensou que ia morrer, e que nos viu a todos, menos ao Leonardo, a dizer adeus. Eu espero que desta vez o Leonardo tenha estado lá ao nosso lado, mas eu procurava em todo o lado o meu pai pelas ruas de Ponta Delgada e não o encontrava, até me cruzar com um bebé, uma criança de caracóis negros que olhou para uma mulher de olhos inchados que estava a ser arrastada por um homem de caracóis loiros, e essa criança olhou para aquela mulher que não sabia, que não sabe ainda porque está destroçada, e lançou uma gargalhada.