sexta-feira, fevereiro 25, 2005

R, ou The English Patient

O hotmail tornou-se ridículo, desprezível, desde que o Gmail entrou na minha vida. Não fosse o messenger e já tinha abandonado este meu mail velhinho num qualquer asilo cibernético de luxo para software e aplicações obsoletas (o hotmail ficava na suite do Eudora, a minha primeira caixa de correio electrónico, em 1996).
A tentativa absurda de me seduzir com um "upgrade" para os 250 MB de capacidade (um quarto da capacidade do meu Gmail lindo, oferecido pelo David) nem mereceu a minha atenção - continuo apenas com os dois megas, uma espécie de sentença de morte cerebral, de prolongamento de uma vida vegetal.
Hoje fui lá visitá-lo - visita de médico, claro -, porque me conseguiu vencer pelo cansaço: sempre que iniciava a sessão do messenger dava-me conta da quantidade de mails que lá tinho por abrir. Tudo publicidade para aumentar o tamanho do meu pénis, algumas informações da Marktest, recentes aplicações das células estaminais do cordão umbilical no tratamento de doenças graves e votos de Boas Festas da OK Teleseguro e da Crioestaminal.
Estranhei estar a utilizar quase 80 por cento da capacidade do Hotmail. Fui tentar perceber porquê. O que é que pesava tanto? Encontrei, então, uma pasta chamada "The English Patient" - um depósito de mails de uma história mal resolvida, que eu decidi guardar.
Outro dia, o Pedro surpreendeu-me ao perguntar: "Porque é que fizeste uma tatuagem?". "Porque sim, porque me apetecia", respondi eu, mentindo.
Fiz a tatuagem por causa deste senhor que enterrei numa pasta do hotmail que já nem me lembrava que existia.

Esta é a nossa história: que ficou gravada nas minhas costas para sempre.

Wednesday, January 29, 2003 5:08 PM

Não me vou fazer de difícil, está descansada. E agora, o que é que vou fazer? Não te posso mandar todos os mails que te escrevi e não recebeste. Quando muito posso imaginar o seu destino no famoso céu dos computadores, um local similar ao do céu dos botões e das meias, o paraíso para onde caminham ascoisas que perdemos ou "enfiámos" não se sabe onde. E agora para uma coisa completamente diferente... Quando é que jantamos? - eis uma questão que se coloca de forma veemente. Além de esperar que melhores por razões humanitárias, também desejo que o faças o mais rapidamente possível para podermos jantar. As saudades quando chegam, calham a todos. Mas a verdade é que há coisas que a própria razão desconhece... Fico à espera que os planetas se coloquem em posição para nos encontrarmos. O pior é se a frequência com que isso sucede é igual à do cometa Halley. Beijo

Thursday, January 30, 2003 5:32 PM

Se deu o recado? E de que maneira... Mas pronto, isso agora não interessa nada. Gostei da mensagem transmitida por ela, mas preferia que tivesse acontecido em pessoa. De qualquer forma, e visto que a culpa de não nos encontrarmos é essencialmente minha, aceito-a de bom grado. Quando quiseres repete agracinha. Sendo assim, é altura agora de me regojizar pelas tuas excelentes melhoras de saúde. Quanto a hoje, mais uma vez temo o pior. Compromissos "conjugais"previamente definidos não me permitem a realização de tão arrojados planos. Se daqui a duas reencarnações não tiveres planos, avisa! Claro que nos vamos encontrar antes disso. Consultei a minha bola decristal e ela diz-me que entre amanhã e 27 de Julho de 2017 nos iremos encontrar. Beijo PS - Voltando ao assunto do recado enviado, mais uma vez lembro: continua assim! Depois tens que me dizer onde desencantas os teus pombos correio.

Tuesday, February 4, 2003 6:31 PM

"Sem expectativas, sem angustias, sem medos e, tambem, sem vergonhas". Estou de rastos! Isso não é coisa que se diga... O nó que tenho no estomago e sorriso estúpido na cara são prova disso. Enfim... estás cada vez mais perigosa.

April, 14 2003
Dia wrote:

Estou a escrever estas linhas, porque dediquei a última meia hora à limpeza da inbox do meu hotmail. Estive a revisitar todos os e-mails que te enviei e as poucas linhas que me dedicaste. Não os apaguei.
Existe um mail que nunca chegou ao seu destino: está guardado nos drafts, à espera de não sei do quê. Foi escrito numa estranha madrugada, num corredor frio e vazio do hospital de Santa Maria, à porta dos cuidados intensivos, onde a minha mãe estava ligada a tubos e fios entre a vida e a morte.
As minhas duas passagens pelos corredores das urgências deste hospital foram suficientes para ter arranjado, por aqueles lados, um clube de fãs. Enfermeiros e auxiliares achavam piada à miúda que, impecavelmente vestida, e com uns saltos altos de pelo menos 7 cm, andava de um lado para o outro a acompanhar e tranquilizar os velhotes que, por não terem família, eram ali deixados à sua sorte, em macas espalhadas um pouco por todo o lado.
A certa altura - já deviam ser umas três da manhã -, estava eu a reconstituir o desmaio que uma velhota (cujo nome não me recordo já) tinha dado a sair de casa (que lhe partiu um braço e o nariz) - isto depois de ter ouvido, de boca aberta, o fabuloso destino de uma senhora de meia idade que foi abalroada e atropleada por um autocarro da Carris, mas ficou apenas com meia dúzia de arranhões nos braços -, um enfermeiro tocou-me no ombro e perguntou-me se eu não queria comer alguma coisa.
R, não sei como te dizer, mas tens um sósia no hospital de santa maria - será que é isso que fazes nos teus tempos livres? Eu pensava que era jogar Playstation...
Aceitei o convite. Comemos uma sanduíche intragável e fumei um cigarro dos dele (eram Marlboro Lights).
Na lapela do meu casaco, estava colada uma etiqueta com um código de barras e o nome da minha mãe. Uma esferográfica vermelha tinha desenhado um A, de acompanhante. A escolha cromática não é gratuita. As urgências dividem-se por cores: verde, para os doentes que não têm mais do que unhas encravadas; amarelo, para doenças que podiam ter ido para o centro de saúde, mas que já dão uns febrões; laranja, quando a coisa está mal; vermelho quando a coisa está muito negra.
Perguntou-me, o enfermeiro-sósia cujo nome não indaguei, o que é que tinha a minha mãe. Expliquei-lhe vagamente e, com um descaramento que só tenho em momentos de grande angústia, pedi-lhe uma cunha: se ele podia ver como ela estava. Ele prontificou-se a cumprir a sua missão de imediato, deixando-me mais um cigarro para a espera.
"Está estabilizada e a dormir", disse, quando regressou à sala de espera, já vestido à civil.
Perguntei-lhe, de imediato, se ele algum dia tinha lido o "Por um fio". Não tinha. Também não tinha visto o filme: ainda tentei explicar-lhe que era uma película com o Nicolas Cage, que era a terrível história de amor de um paramédico e de uma rapariga cujo pai estava internado em coma. Não tinha nunca ouvido falar, mas prometeu que ia comprar o livro.
Disse-me que o que eu estava a fazer por aquelas pessoas abandonadas nas urgências era muito bonito. Indagou se eu não quereria ser ali voluntária aos fins-de-semana. "Vou pensar", disse eu.
Deixou-me um cigarro extra, e anunciou que tinha acabado o seu turno. "As melhoras para a tua mãe".
Nunca mais o vi. Às vezes questiono-me se não terá sido mais uma alucinação minha.
O mail que está nos drafts é mais ou menos esta história. Escrevi-o na meia hora que se seguiu, na contracapa de um livro que o Leonardo me levou para ajudar a matar as horas. És a minha ninfa literária favorita, R.
Beijo
Dia


Tuesday, May 13, 2003 12:48 PM

Sabes que dispenso poucas linhas, mas boas. Aliás, é raro responder a quemquer que seja com mais do que uma centena de caracteres.
Quando é que passas os teus desvarios literários para o papel?
Beijo

1 comentário:

Anónimo disse...

Como é possível que esta história tenha ficado em branco. Nem um comentário. Os teus leitores não te merecem. Talvez porque a história mais grandiosa, aquela que viveste naqueles corredores, se perde na dor que imagino sentiste por esse grande amor.