Declaração de voto
A Célia viu-se grávida quando eu ainda só pedia três no bate-pé e passava as tardes sentadas num Morris Minor abandonado na rua 2, uma rua do Bairro de Alvalade que tem nome de poeta há muitos anos, mas que todos ainda conhecem como rua 2.
E foi dentro do Morris, eu ao volante a fingir que sabia pôr mudanças apesar de não saber qual era o pedal da embraiagem, que a Célia nos anunciou que naquela tarde ia correr como louca, ia fazer abdominais até as suas forças se esgotarem, que ia pular na sala com uma corda de ginástica até aquilo se desprender. A Célia era ginasta de alta competição e o desmancho não ia ser feito num vão de escada, iriam bastar oito horas de treino aeróbico violento.
E todas as ocupantes do Morris estavam lá, na saleta da Paula onde se faziam sessões de espiritismo numa mesa de pé-de-galo, quando o feto se soltou das entranhas da Célia. E todas ouviram o barulho do autoclismo e nunca mais falaram dessa tarde, aliás, nunca mais falaram umas com as outras, a nossa infância morreu ali, foi-se com a descarga da sanita e com a pasta ensanguentada.
Por outro lado, a prima solteirona da Ana já estava habituada. Uma vez por ano, setenta contos, e um dia deitada na cama com direito às visitas de todos os familiares mais próximos no apartamento de dois quartos no subúrbio. Era esta a receita de um encontro anual com um amante marinheiro que teimava sempre em resultar numa gravidez. E eu lá os acompanhei, lençóis de flanela, acenos de desaprovação com a cabeça, a pílula, o preservativo, porquê, e as lágrimas da outra a rolarem para a base de um rosto pálido.
O João diz-me na cama, saca dos seus conhecimentos de seminarista por entre o edredon, diz-me que os filhos que não nasceram ficam no limbo a tremer de frio para toda a eternidade. E eu penso na minha irmã com nome de fada que foi aspirada não fosse ser mongolóide ou coisa pior, e desato a chorar porque ela merecia o risco, merecia ter dezassete anos e eu nem sei se era uma menina, nunca tive coragem de perguntar.
Aos vinte e quatro foi a minha vez.
Não tomava nada, não exigi latex porque estava em rota descendente de auto-destruição, tanto fazia: diariamente engolia duas tomas de sertralina, bebia, fumava e escrevia sobre o Código do Trabalho, comprava toneladas de sapatos caros e a vida era isto, ninguém me convencia que voltaria a sorrir de novo.
Por causa de um feto estive cinco meses na cama, em casa, em repouso absoluto. Perdi o meu posto de trabalho (às 37 semanas de gravidez, saí de casa, fui a Picoas e constatei que estava tudo encaixotado e que já outro jornalista dedilhava atrás da minha coluna).
E por duas vezes – às 24 e às 26 semanas – entrei numa urgência de obstetrícia prestes a parir, e os médicos, em Santa Maria, caso sirva de algo este detalhe, minimizaram a coisa que trazia dentro de mim, que não era viável, que o meu organismo me estava a avisar de algo que eu devia escutar e aceitar, e das duas vezes assinei um termo de responsabilidade e dei entrada numa urgência privada.
O meu feto tem 38 mais nove meses agora. É uma menina loira de olhos azuis que herdou a mesma propensão às anginas que a mãe. Às dez semanas, eu nem tinha a certeza de quem seria o pai, mas tinha a certeza que naquele ecrã, onde fixei o olhar por dois minutos e sorri ao discernir dezenas de pontapés, estava uma vida.
Compro menos stilettos, pois compro, o ordenado não chega ao dia 15, é verdade, ganho cabelos brancos e perco anos de vida em corredores do Tribunal de Menores e afins, oh lá lá se ganho e se perco.
No sofá, cheia de febre e a dormir, está a não planeada Maria Carolina Ralha. Que eu quase perdi às 24, às 26 e às 37 semanas de gestação intra-uterina. Que me valeu uma cesariana de urgência sem anestesia e uma cicatriz no ventre [o aparelho do CTG a apitar por todo o lado, a pulsação do feto a cair dos 160 para os 60, a enfermeira Deodata a gritar chamem o doutor Moniz, a desligar os alarmes, outra a cantar-me ao ouvido uma canção do Carlos Paião, uma a rapar-me os pelos púbicos, e a minha mãe num elevador com o obstetra e eu no outro a chorar sem fazer barulho, e depois um bloco operatório de mármore rosa, o doutor Moniz com pulover de losangos, eu a dizer à Magui, não consigo respirar, e a desmaiar logo depois de ver 2,9 quilos de gente ensanguentada por cima de um lençol branco]. A Maria Carolina que, em Abril de 2003, tinha dez semanas e era do tamanho de um feijão.
O (T)ralha vota não no referendo sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez até às dez semanas de gravidez a pedido da mulher, porque acredita que cada vida é única e irrepetível e que, em concreto, aquela que dorme no sofá com uma otite e uma amigdalite agudas vale bem mais do que três pares de stilletos por mês.
35 comentários:
Sou testemunha de todo o o sofrimento implicado no "burst" de felicidade e alegria que se veio a chamar Maria Carolina ,sobrinha linda . Mas apesar disso , se tivesses tomado outra "opcção" "eu" não te queria ver sofrer , tua consciência e a "vida" encarregam-se disso . Poderia pegar na pedra , possivelmente até olhar para ela mas sei que nunca arremesarei nem a primeira nem a última nem nenhuma pedra . Não é por te adorar ou por questoes de familia não quero julgar , nem queria ver um estranho "juíz" pedir-te satisfações quanto mais o cárcere - já chega o psicológico que cada mulher transporta após tal opção porquê o cárcere físico até às 10 semanas? A vida traz tormento com essas opções mas por outro lado traz também a possibilidade de te redimires de cada um se perdoar a si próprio na devida altura - para quê mais sofrimento ?
Eu respondo à minha consciêcia pesada e aceito os disabores...
Não deixo de compreender respeitar a tua posição , emocionado com tuas palavras , porque "eu" poderia não estar aqui hoje , dividido , mas nunca queria ver ninguém magoar minha mãe....nem a ti ... nem à Carolina , nem a nenhuma mulher. Continuo sem declaração de voto...Hugo . Apesar dos meus erros do passado , acredita que hoje sei o quanto a mulher é importante deixo uma declaração de voto de respeitar todas as mulheres como merecem .
Minha querida não há nenhuma mulher que seja a favor do aborto, eu tb não sou, mas compreendo quantas mulheres neste país morrem por fazerem abortos clandestinos. É um debate de consciência que é dificil de chegar a uma conclusão. Eu fiz um aborto espontâneo, não provocado, e mesmo assim fiquei marcada para a vida toda. Portanto, não é de ânimo leve que uma mulher chega a praticar tal acto.
Beijão querida
...
minha querida, que texto magnífico. fizeste-o infinitamente melhor do que eu. Deus te abençoe. Beijo enorme
A questão não é a tua filha ou a tua escolha. A questão é se achas que a Cátia devia ir parar à cadeia pelo que fez quando tu ainda só pedias 3 no bate pé... Ou se tinha direito a fazer o aborto com condições e sem medo. A questão não é se tu, ou eu, ou seja quem for alguma vez faria um aborto, a questão é se te achas no direito de condenar quem faz.
A questão é a vida, mpr, para mim é só essa. E se a pergunta fosse concorda com a despenalização do aborto, eu respondia que sim.
A vida pode ser interrompida por três pares de stilletos por mês que eu achei que valia a pena deixar de comprar.
Não condeno quem faz,inclusive, já paguei abortos de amigas (que, na minha opinião não deveriam tê-lo feito), não condeno quem vota sim, é uma questão que deve ser respondida individualmente, de acordo com a consciência (pesada ou não) de cada um. Vive-se em democracia, são essas as regras, devem ser aceites por todos.
Por mim, não vejo a hora de chegar o dia 11 à noitinha.
independentemente de eu próprio vir votar sim ou não, esta foi a melhor argumentação que li para qualquer das opções :)
posso mandar pró Blog do Não, posso, posso? blogdonão@gmail.com
Uma vénia do tamanho do Mundo!
E um pedido de desculpas sentido por, no final do texto, a primeira coisa que pensei ter sido: "por esta posição não esperava neste lugar".
old-mirror.blogspot.com
pronto ja mandei. tu desculpa mas isto merece ser divulgado o mais possível. é literário e pronto. bjs e desculpa o abuso
Grande texto! E é só.
ps. até o flocas voltou a aparecer
Enfim, não é tão literário... mas igualmente pungente
podes crer, tb reparei no Flocas ;-)
Se concordas com a despenalização do aborto, com o que é que discordas? Do estabelecimento de saúde legalmente autorizado? De ser por opção da mulher (deveria ser outro a decidir?), ou de ser até às dez semanas (mais cedo, mais tarde?)?
Discordo que um feto de dez semanas possa ser interrompido por exemplo por três pares de stilletos por mês. É essa a "moral" da história.
Podia - não tivesse sido este post escrito bem depressa - ter contado também a história (verdadeira) de um homem, meu grande amigo, que ficou destroçado porque a namorada abortou o seu filho. Ele teria cuidado desse filho. Ela só precisava de o carregar mais 28 semanas e depois podia ir à sua vidinha, sem carregar o peso de um aborto. Ela sabia disto. Não quis saber.
Existem, obviamente, casos e pessoas que tomam, e hão-de tomar, decisões irresponsáveis e moralmente recrimináveis. Há bestas em todo o lado, é impossivel negá-lo. Mas essa rapariga por exemplo de que falas, não deixou de abortar por o aborto ser ilegal. Por causa dela deverão todas as mulheres ser obrigadas a refugiar-se na clandestinidade, porem a vida em risco, serem consideradas criminosas ou terem que ir ao estrangeiro (as que podem) quando tomam a decisão de interromper a gravidez?
O problema não são os Stilletos, é a miséria, é o respeito pela barriga alheia e existir não é sinónimo de viver.
A Vida? Literário é o texto do RAP na Visão.
Infelizmente, este é o primeiro texto deste blog que eu detestei.
Caro JH, eu não entro em polémicas e respeito a opinião de todos.
Infelizmente, essa capacidade democrática não é comum a muitos defensores da despenalização e eu apenas posso lamentar.
Dia... estás no teu direito de não querer discutir dado assunto. Claro que quando fazes um post sobre um assunto polémico podes ter respostas contrárias. Ao fazeres este post já estás a entrar em polémica, o tema é assim mesmo. E o facto de se discutir não significa que se não respeite a opinião dos outros. Aliás a grande força da democracia é a troca de ideias, é a discussão.
Ora ainda bem que nos entendemos nesse ponto, meu caro amigo.
Este post, como disse o Floca (bem-vindo, meu caro) é "bi". Dá para os dois lados. De tal forma que até o old mirror se espantou com o último parágrafo em que assumo que voto não neste referendo.
Voto não neste; votaria sim se não estivesse no segredo dos deuses como pretende o governo ps regulamentar a lei do aborto. Se este "opção" da mulher pode ser por motivos fúteis e egoístas. Se serão feitas juntas médicas anteriores ao aborto para tentar ajudar a mulher que a ele recorre? Se haverá políticas de natalidade? Se abrirão mais creches e jardins-de-infância...
Tenho muita curiosidade. Será dada, por ex., a mesma quantia que vai custar o aborto ao Estado às mulheres que decidem não abortar? O Correia de Campos estima que cada aborto vá custar 400 euros ao SNS? Era uma esmola, mas já dava para comprar o enxoval do recem-nascido...
Só para que fique claro, também sou totalmente contra o aborto eugénico até às 16 semanas, conforme prevê a lei actual.
Nem oito nem oitenta. Porque não uma solução entre a proibição e a liberalização? Uma lei moderada que permita o aborto, como excepção, em caso de prole numerosa, casal sem recursos, idade avançada ou precoce da mulher, morte ou incapacidade económica do pai...
Assim sim...
As consultas antes do aborto, as creches e jardins de infância, concordo plenamente. Quanto ao dar dinheiro às mulheres que não abortem... quer dizer... a quais? quanto e porquê? Tambem não dás dinheiro às pessoas que não estam doentes, ou que não vão aos tribunais. Creio que no fim de contas a diferença entre nós é que eu acho que não é possivel contemplar na lei todos os casos imagináveis em que a mulher tem direito a abortar. E achar que seja em que caso for, não é a lei penal que deve entrar em cena neste tipo de casos, não é a criminalização que ajuda ou resolve qualquer dos problemas ligados ao aborto.
Apreciei bastante o último parágrafo do teu último "comante", Dia.
Fossem 51% dos Nãos tão conscienciosos e eu quedava-me mais tranquilo. Mas não!, num são.
Em ti, reconheço honestidade mental. O que, dado o teor, não é nada fácil. Bravo!
Quisse
ps. E... óh MRP, espero que estejas, igualmente, a distribuir bordoada por outros blogues do Não!
Do jh, pois, num digo nada... a num ser que me parece que sofre de iliteracia.
Bolas! Com Sins! destes num é desta que vamos lá.
pss. Se fizer Bom tempo, dia 11 vou à praia
psst. Sei que tens bué da mais que fazer, mas... seguiste o linque que fiz?
Ei, Goia, não diz mal do meu amigo JH que se exaltou :P Please, cada um com a sua. E claro que cliquei no linque.
Diana,
Podemos publicar a sua história no BdN?
Parabéns pela sua coragem.
Cumprimentos,
Rui Castro
Quando o tema me entusiasma raramente sei o momento para parar de falar. É uma falha minha. Mas a última coisa que me propunha era "distribuir bordoada", não aqui. Cada um com a sua e amigos como dantes. Dia, seja como for um texto, as usual, muito bem escrito.
hmmm... Hóquei!
Em relação aos novos desenvolvimentos:
Se BdN é o que julgo, A publicação vai implicar EDIÇÃO! com tudo o que isso implica: a descontextualização e a falta dos desenvolvimentos ocorridos na caixinha dos comentários.
Convenhamos, o teu Não! é pouco ou nada ortodoxo (e talvez mais do que um pouco inconveniente). Daí, acho necessária coragem é para aceitares ir parar, junto com outras opiniões, no mesmo "saco".
eu gosto particularmente do pluralismo democrático e do direito ao contraditório das caixas de comentos do sim no referendo. a verdadeira democracia
eheheheh
A Isa num perdoa nem às mães...
já agora (e abstendo-me de discutir o indescutível), o BdN é uma coisa asquerosa. o teu não será "diferente" como o aborto de uma amiga pode ser "diferente". por simpatias. eu cá também te acho muita simpática ;) por isso gostava de não te ler em sítios de honestidade intelectual duvidosa, apesar de tudo. não me sentirei ofendida se apagares um comentário em que chamo "asqueroso" a um outro blog. mas não podia deixar de o fazer.
Encontramo-nos esclarecidos neste referendo. com conclusões diferentes e, por isso vamos a 'votos'. centrados ou não nas escolhas que fizemos até agora, carregando nos bolsos as diversas experiências que cada um viveu (ou não) por si ou pelos 'lados' direccionadas à questão do aborto. tendo-as em marcha dentro de nós chegamos a diferentes conclusões, mas tomamos uma posição. as mulheres são o elo de ligação ao aparecimento de qualquer vida humana,sem direitos adquiridos...
uma vida humana que não pede para chegar.
não se trata apenas de uma questão de menos stilletos por mês. é tudo menos, tudo o que realmente pode não importar. concebida sem amor? por quantos minutos sem amor? mas com uma vida transformada em anos, traduzidos em palavras boas e más, em gestos agressivos ou de carinho. depois, vem também o sofrimento, não só da mãe - às vezes vem o sofrimento, e acreditem que acontece tudo - mas o tempo talvez se encarregue de diluir algumas marcas, não sofrerá mais quem contraria essa possibilidade e deixa de pensar apenas no seu umbigo? e a sua vida passa a ser canalizada num outro ser? e quem nos faz mais sofrer? a criança que aprende agora a falar ou aquele suposto ser que domina todas as palavras e se diz adulto? escrevo sobre duas palavras - coragem e egoísmo. por cima de nós só existimos nós, as nossas coisas, os nossos sentimentos, as nossas razões. o eu ocupa um lugar que se destaca sobre tudo. sim, as mães (e pais) deveriam ser louvados e apoiados, pela coragem e porque não apostam só neles, apostam numa forma de vida. é a tendência do eu que devemos contrariar. eu e o meu umbigo.
a favor da vida humana que não pede para chegar.
voto não.
(concordo com todos os pontos que referes amiga ;))
- e a nova lei poderia ser diferente... -
Sorry Dear Dia, mas...
Só mais umas dúvidas:
asqueroso até à exaustão é o blogue do sim que nem caixas de comentários tem e além disso aquela gente só sabe é criticar a campanha do nao. argumentos sempre mt bons, como se sabe.
Desculpem a todos pela intromissão agora que já passou o referendo, mas só queria dizer umas palavrinhas.
Qual é a parte da questão que as pessoas não percebem?
O que esteve e está em causa não é se concordamos ou não com o aborto mas sim com a sua despenalização. Não é se achamos correcto que se faça, se concordamos em fazê-lo, etc.
Eu não sou a favor do aborto mas voto sim à despenalização especialmente quando grande parte das pessoas da campanha não, alguns médicos que até clínicas clandestinas têm, outras mulheres que já efectuaram dezenas, outras pessoas que simplesmente se deixam influenciar por questões religiosas e outras simplesmente por estupidez.
Vivemos numa democracia onde cada qual tem o direito de escolha, tal e qual como no referendo efectuado.
E como tal, penso que nem eu nem ninguém tem o direito de decidir por ninguém o que fazer.
O aborto existe, essa é a realidade. Sempre existiu e continuará a existir. A questão é devemos dar ponto um a liberdade de escolha a quem a ela tem direito e parar as situações precárias bem como os falsos moralistas que enchem os bolsos cobrando para o fazer?
Por votarem não acham que deixará de se fazer? NÃO!!!
Então vamos sim melhor tudo para que seja feito em consciencia, em liberdade, em condições ou não. Muitas vezes a opção será até nem o fazer se devidamente esclarecidas por médicos que teram a possibilidade de melhor esclarecer quem de direito entre outras coisas.
Desculpem mas fico desconcertada com as pessoas discutirem o assunto da forma errada.
Ninguém que votou sim é a favor do aborto mas sim de que se efectuado que seja em condições e não punido.
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