quarta-feira, fevereiro 23, 2005

Um dia Jeunet

Hoje decidi: vai ser um dia Jeunet.
Acordei inundada de sol. Mirei-me de raspão ao espelho, apenas para tirar os elásticos do aparelho, que me transformam num híbrido entre o homem-elefante e o patinho feio. Cabelo em desalinho, tipo ninho de ratos por não o ter escovado e entrançado antes de adormecer, olhos negros, esborratados, porque não tive paciência para tirar o rímel.
Corri para os seis metros de comprimento de superfície envidraçada do meu 10º andar sobre Alvalade. Para fumar um cigarro em jejum. Dali vê-se tudo: o Estádio do Sporting, do meu lado direito; a sede da Caixa Geral de Depósitos, do meu lado esquerdo. A casa do senhor holandês, cor-de-rosa, muito, muito perto da minha janela.
(Suspiro)
Olhei para o céu. Não sei porquê. Não estava a cobrar nenhum favor divino; não estava a fazer nenhuma prece ou oração.
O céu de Alvalade hoje estava bonito, manchado de branco e cinzento. Do meu lado esquerdo, por cima da escola onde aprendi a ler, estava uma nuvem mais escura. Uma nuvem de chuva. Tinha a forma de um peixe. Perfeita.
Foi nesse momento que decidi que hoje ia ser um dia Jeunet.
Banho rápido, muda fralda, prepara biberon, brinca às escondidas com a Carolina tudo ao som do Yann Tiersen.
Um dia Jeunet tem que ser ao som do Yann. A Carolina gosta. Canta e dança. E sorri. Ouviu muito Tiersen quando era um pequenina. Quando estava dentro de mim.
Um dia Jeunet não se coaduna com saltos altos. Calças cinzento rato de bombazine muito confortáveis, ténis pretos novos (sim, comprei uns ténis: são as más influências da Pandilha), pullover encarnado, cabelo preso num rabo de cavalo - uma heroína Jeunet não é sofisticada (não resisti, porém, em alongar as minhas pestanas até aos limites do impossível, com o rímel que está na moda).
O Tiersen veio na mala comigo. Gaseou os estofos laranja do meu Idea com o som do acordeon, dos violinos e do piano. E do tiritar das teclas de uma máquina de escrever antiga sobre uma folha papel.
O CD tocava a faixa 4 do L'absence quando eu lançei o repto: "Se eu arranjar estacionamento de borla à primeira volta pelo quarteirão, ele gosta de mim". Dois minutos depois estava a parar o carro. Num lugar fora do domínio da EMEL. Na primeira volta.
Sorri.
Mas não fico por aqui.
Tenho pacto com o demónio do estacionamento há muito tempo. Tenho sorte ao estacionamento, porque tenho azar ao amor.
Começou hoje a minha greve de silêncio.
Se até ao final do dia ele me disser qualquer coisa - vale tudo: mail, messenger, sms, telefone, ou mesmo pessoalmente, cara-a-cara -, então, sim, ele gosta de mim.

3 comentários:

Dia disse...

Estou tranquila. Por incrível que pareça, estou... Deixei, sem querer, o telemóvel em casa, o que até foi bom.
Sim, estou de ténis. Sinto-me anã, sem o meu extra de 7 centímetros. Os ténis são pretos. Da Aerosoles. Não parecem ténis. Por isso é que os comprei :)

Anónimo disse...

lindo texto, dos mais lindos que já aqui li.
inspiração do yann ou do jeunet? :)
adorei.

homónima

Anónimo disse...

e afinal... como ficámos?!