E se Cavaco não vai à Liberdade, a Liberdade vai até ele
Cavaco Silva não vai visitar hoje o Bairro lisboeta que, ironicamente, foi chamado de Liberdade. Cavaco Silva não dá cavaco ao Bairro da Liberdade, mas eu aproveito para lhe dizer que, na Liberdade, há um homem, seu homónimo, ex-combatente do Ultramar, um homem tão doce como eu nunca vi, que me beijou a mão e se pôs de joelhos aos meus pés na esperança que eu lhe desse uma casa onde não tivesse que ter medo que as ratazanas lhe comessem as orelhas durante o sono, porque esta noite, Aníbal Barata dormiu num colchão que partilha com percevejos. Esse homem, senhor Presidente, na assoalhada com pouco mais de seis metros quadrados sem janela onde "vive", tem posters da Amália e també seus - são as personalidades que ele mais admira, e nem que fosse por isso, apenas por isso, o senhor deveria ir cumprimentá-lo e, já agora, se não fosse pedir muito, fazer um telefonema para que este homem deixasse de viver como um animal num esgoto (sei lá, qualquer buffet de luxo do Estado pagaria um quarto e assistência médica a Aníbal Barata).
Se Cavaco não põe um pé na Liberdade, eu levo-lhe uma rua da Liberdade até a si, faço visita virtual a um bairro que os meus olhos não estavam preparados para ver.
[Este trabalho foi publicado no PÚBLICO de 29 de Janeiro. Texto: Diana Ralha Fotos: Rui Gaudêncio]
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A última favela de Lisboa. A primeira também. Enraízada nas costas de Monsanto e aos pés do Aqueduto das Águas Livres. Com vista para o Tejo e para toda Lisboa. Irónica escolha de palavras: um milhar de lisboetas vive em condições idênticas às da Revolução Industrial num bairro chamado Liberdade. Esperam-na há mais de 50 anos.
Um trabalho de Diana Ralha [texto] e Rui Gaudêncio [fotos]
Há coisas que os olhos não estão preparados para ver.
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Habitações que não são mais do que corredores, sem janelas, com as paredes pintadas de cores vivas e salpicadas de bolor. Divisões versáteis e minúsculas, que servem para tudo: para cozinhar, para comer e para dormir.
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Ensombrado pelo Aqueduto das Águas Livres, colado ao pacato e cobiçado Bairro da Serafina, com vista para o Tejo e com Monsanto a enquadrá-lo como uma moldura de vegetação luxuriante, o Bairro da Liberdade é “a última favela de Lisboa”. Quem o qualificou com estas palavras foi António Carmona Rodrigues, na altura candidato à presidência da Câmara Municipal de Lisboa. Não exagerou. Prometeu deitá-lo abaixo. Há coisas que os olhos não estão preparados para ver.
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Pátio do Chafariz. Travessa Capela Velha. É apenas uma das ruas de um bairro onde toda a gente se conhece, ajuda e tem sempre as portas abertas, com as chaves na fechadura. Sem medos.
Por fora, lembra uma aldeia, há crianças e velhos nas ruas, cheiros vários, cortinas de renda de nylon e de xadrês colorido. Nada faz adivinhar em que condições vivem os moradores do Bairro da Liberdade.
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Voltando aos vivos. Número da porta 71 A. Aníbal Barata, olhos verdes, muito doces, voz de candura infantil imputada à demência. Um quarto. Sem janela. Um cheiro que se entranha na roupa, na pele. A porta abre-se, não abre toda, só o suficiente para entrar um corpo de lado. Não abre o suficiente porque o quarto é exíguo, a porta bate numa cama onde se acumulam pilhas de lixo, tralhas diversas. Percevejos.
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Dez passos à frente. Fim de um pátio do bairro da Liberdade, onde crianças brincam com cães de raça (um pittbul, um caniche, um yorkshire terrier e um lulu da Pomerânia) e pardais chilreiam nas gaiolas pregadas às fachadas das casas. É um pátio cheio de flores e de couves, plantadas por Eva Duarte e que, afiança, já renderam duas sopas este ano.
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Grafitti para esconder o bolor
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O cenário repete-se naquele pátio, em todo o bairro.
Existe
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Um quarto e uma sala. Mínimos. Não há cozinha, nem casa de banho. José Cardoso, setenta anos de boa figura, sobretudo de bom corte e boa fazenda, viveu sempre sozinho. Na companhia de imagens de Fátima e bibelôs do Benfica. “É só miséria”, desabafa, mas volta atrás, quase com vergonha do sacrilégio que a sua boca acabou de reproduzir: “Posso-me dar por contente. Há pessoas aqui no Bairro a viverem trinta vezes pior.”
qui é tudo boa gente
Todos gostam de viver no Bairro da Liberdade. Garantem que não há desacatos, insegurança, admitindo, porém, existir algum tráfico e consumo de droga no bairro. Não se encontra ninguém, que algum dia, em meio século de vida, tenha sido assaltado no bairro.
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A noite cai, a ponte 25 de Abril e o aqueduto iluminados compõem um cenário de beleza invejável e, lá em baixo, no Eixo Norte-Sul e na Avenida de Ceuta, os carros seguem em fila indiana sem supor que, ali tão perto ,há um vórtice temporal que faz recuar tempo até ao início da revolução industrial.
Quase todos querem permanecer encostados a Monsanto e ao Aqueduto das Águas Livres, com vista para toda a cidade. Sonham há décadas viver com um pouco de dignidade, mais como pessoas e menos como animais. Muitos perderam já a esperança e também a conta das vezes em que abriram as portas das suas casas, sem vergonha, ou escondendo-a o melhor que sabem, e escutaram as promessas eleitorais, nunca cumpridas, de uma vida melhor.
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6 comentários:
muito bem.
(e muito bem também as "infelizcidades", creio que é assim).
o cavaco já n é 1º ministro e n tem culpa da miséria desta gente. qto ao texto, brilhante, como sempre. bjs gds
Já te tinha dito que, de todos os teus textos, este é o meu favourite? E já te tinha dito que acho que tens o bichinho da reportagem, não já?
Concorre lá com esta merda ao Prémio Ami e ao Prémio Jornalismo de Direitos Humanos. Não é um conselho. Cheers
Eu lembro-me deste trabalho e acho que o elogiei na altura. Ganda trabalho...
Lembro-me tão bem de ter lido esta reportagem e de ter ficado com os olhos cheios de lágrimas... Era bom que pudesse chegar aos olhos de quem os fecha...
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