Salmoura
Os amigos riram-se bem alto quando ela disse que a vida lhe era madrasta e que, agora, todos os dias pareciam sextas-feiras treze, que os azares se sucediam em catadupa um atrás do outro, tanta má sorte apenas porque o patrão fechou o armário do economato à chave e ela, assim, já não podia ser feliz às custas de roubar material de escritório.
Crise, ditaram eles, e agora já não mais podia armazenar caixas de clips na gaveta da secretária, nem levar pilhas para o comando do televisor lá de casa (infelizmente, não havia no armário pilhas para o vibrador, era à sua custa e à de pilhas alcalinas das lojas chinesas que se perdia em prazeres solitários).
Estavam racionados, os clips, as canetas e os blocos de folhas muito finas, e ela não sabia se havia de rir ou de chorar quando o guardião do economato lhe ordenou para estender a sua mão direita em concha e lhe depositou meia dúzia de exemplares de design ordinário, muito brilhantes, contabilizados sem margem para desperdícios.
Esta era mais uma das suas estapafúrdias interpretações da realidade e do destino, mas a melhor de todas as histórias mirabolantes, pelo menos dos últimos tempos, era a perturbação que lhe causou um episódio que aconteceu numa tasca onde a cozinheira abusava do sal e em que todos os petiscos eram servidos em salmoura.
Naquele dia, sugerira ao senhor Zé para colocar um aviso na porta da tasca a proibir a entrada de hipertensos, mas o senhor Zé não era dado a ironias, na verdade, nem sequer ouviu o que ela disse, presumiu que fossem duas doses de febras, uma Coca-Cola e uma água do Caramulo (no final, uma das bicas seria com adoçante). É que nesse dia era dia de cozido, e em salmoura ou não, a casa estava a abarrotar, e o senhor Zé achava-se telepata, ou isso, ou leitor de lábios, como um surdo.
Aquele casal gosta mesmo de febras, dizia o pessoal da tasca na paz do rescaldo dos almoços servidos à base de sal marinho, mas o que eles não sabiam é que nem importava se a carne era tenra, ou sola de sapato, se era saborosa ou sensaborona, o que interessava mesmo era a dose diária de cloreto de sódio que tinha que ser ingerida, sob pena de uns tremeliques e dores de cabeça durante a tarde.
Numa mesa próxima da nossa heroína, num destes dias, em dia de cozido, um casal almoçava com o seu par de filhos. Já estavam bem aviados, pensou ela, olhando para a mais velha, uma miúda doce, agarrada ao calor do regaço da mãe, e um terrorista que teimava em fazer que faz com o hambúrguer que jazia no prato, sentado ao lado do pai. Uma mãe de cabelo curto preto e feições finas desenhadas numa pele branca e um homem com físico de segurança de discoteca, mas vestindo calções de malha. Os opostos atraem-se, lembra-se ela de pensar, sorrindo para o loiro chupado com quem decidira casar.
E como a criança que comeu todas as batatas fritas, mas não tocou na carne picada, implorou por um arroz doce, ela reparou no casal. Arroz doce era a droga, era o melhor da vida, e injustamente a balança laranja e o metabolismo lento como um caracol proibiam-na de se deleitar com o petisco. Por isso, e só por isso, memorizou o casal com o casal de filhos, e depois não se queixe, é que assim não há espaço suficiente para armazenar datas dos aniversários dos seus amigos, mas voltando ao que interessa, todos eles, o casal e o casal de petizes, falavam francês, se bem que o homem de porte de gigante também verbalizava num português sem sotaque.
E isto seria apenas mais uma informação irrelevante, não tivesse o casal francês bisado na tasca da salmoura, desta vez sem o casal de filhos, e não tivesse o destino feito das suas e sentado o casal dos heróis desta história lado a lado com o casal francês.
Nesse dia, 13, por sinal, dia de aparições de Fátima, já se adivinhava algo estranho: não pediram febras e o senhor Zé sorriu com malícia ao gritar o pedido para a copa da cozinha. Infelizmente, a escolha do cardápio, rolos de porco à Mexicana, vinham com pouco sal, mas realmente assustador nessa curtíssima hora de almoço foi que o casal falava francês desta vez expressava-se em castelhano perfeito.
O barulho da sala era estridente, rais'parta mais o cozido que lhe enchia a tasca pacata, era demais para um ouvido direito com uma otite aguda, e de repente, a heroína zangou-se com o seu amor, porque ele foi mau, analisado a frio, até foi bondoso como só ele sabe ser, apenas quis que ela não sofresse se o mundo não fosse o lugar menos mau que ela estava a defender que era, amuou, e conseguiu estar dez minutos sem abrir a boca, ou a abri-la apenas para entrar a carne insonsa.
E nisto, ouviu castelhano ao seu lado direito, da boca do casal que há uma semana falava fluentemente francês. Perdeu o equilíbrio, não sabe se foi da otite, mas ouviu o zumbido que a costuma avisar que está eminente a perda de sentidos, e distintamente, no fundo de uma sinfonia desafinada que pairava naquela tasca, lá da última mesa do restaurante, como se tivesse audição suprasónica, ouviu uma jornalista a falar do cavalo Mister Ed.
Não desmaiou e, das duas uma, ou tantas vezes se abeirou da loucura que algum dia a asa da cantarinha tinha que se partir, ou tem mesmo que se obrigar a comer comida salgada, muito salgada.
3 comentários:
Só acontecem coisas extraordinárias.
obrigado
antonio cerveira
Não agradeça, antónio. eu é que peço desculpa de estar sempre a espreitá-lo pelo buraco da fechadura
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