Simples
Foi tão simples quanto isto, levantou-se, chovia, e era um dia bom para morrer. Chovia que Deus a dava, alguém choraria por ela assim, os céus vestir-se-iam de cinzento muito escuro e chorariam por ela durante dois dias e duas noites. Soube, na noite anterior, no boletim meteorológico, que também os ventos se levantariam por ela, rodopiando e arrancando telhados de zinco e chassis de auto-caravanas, foi tão simples que dói: olhou-se ao espelho, cabelo branco em desalinho, sobrancelhas cinzentas escuras, um buço que teimou em grudar-se debaixo do nariz e por cima da boca depois da menopausa, lavou a cara e sorriu, o dourado dos caninos de metal precioso onde fixava a esquelética reluziu como se fizesse sol junto à banheira, despediu-se da empregada, deu-lhe a folga merecida, adeus e até amanhã, fechou a porta à chave, sentou-se no sofá, ao seu lado estava o fantasma do seu companheiro de olhos azuis turquesa, e na alcatifa, o arfar do espectro do cãozito schauwzer anão que os acompanhou na entrada da terceira idade, levantou-se, tocou ao de leve, um roçagar, nas paredes que o seu marido construiu a pulso, foi à cozinha, bebeu um copo de água, deixou a porta do armário aberta, espreitou, do alto de um nono andar, o jardim enlameado e as arvorezitas que daqui a cinquenta anos serão finalmente gente e sombra, abriu a janela, não pensou em nada, não chorava, subiu à banqueta, fechou os olhos e decidiu que a vida acabava num voo rápido.
Este blogue está de luto carregado. Porque foi assim. Simples.
10 comentários:
um beijo
*
E nestas alturas é sempre uma merda porque nunca se sabe o que se há-de dizer... apetece-me dizer asneiras porque ainda esta semana falei contigo e estava tudo bem e agora isto...
estou aqui ou ali ao lado, sempre!
Meus anjos lindos, não fiquem em cuidados, a gente levanta-se, é sempre assim. A velhinha era minha vizinha desde sempre, amiga da família, uma pessoa muito querida, e eu não me vou lembrar dela lá em baixo no jardim, tapada por um plástico preto, vou-me sempre lembrar do seu sorriso e coração de ouro. (e de um sobretudo de cabedal preto também)
Aspalavras jamais traduzirão o que sente ante esse acto final. ou não final, depende daquilo em que acreditamos.
Fico em silêncio contigo.
Um beijo
Vê lá tu, fiz-te uma visita e, como consequência, fiquei cheio de saudades tuas...
[que raro... esta cena do beta blogue. Num é que ele (por auto-recreação, imagino, pois...) me acusa de andré?!?!
Vou deixar passar]
há uma altura...
fico mais descansada embora lamente a tua perda.
*
De arrepiar. Tanto como a lucidez do momento.
Resta-me o silêncio e uma lágrima! Resta-me um beijo e um abraço para ti!
( . )
beijo amiga.
madrinha
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