segunda-feira, outubro 30, 2006

Bocarras

O Ricardo estava aflito, um erro de casting, uma brincadeira de mau gosto, nada mais, nada menos, do que um menino largado nas mãos daquele tonto, e, caramba, era um menino feio, daqueles muito inchados e roxos em que os familiares e amigos apenas conseguem esboçar um “que querido”, colados ao vidro do berçário da maternidade.

Catrefadas de caracteres,

(no jornalismo, a prosa mede-se nesta unidade. Em vez de dá-me aí 250 gramas desta merda é mais, arranja-te como quiseres, enche chouriços, mas preciso de três mil caracteres mais entrada para ontem. E, com tempo, aliás, mentira, o que me falta é mesmo inspiração e não o tempo, irei escrever neste buraco escuro onde já só pairam meia dúzia de almas resistentes, o poder de mil e quinhentos caracteres numa página par, aquela que, dizem as estatísticas, é menos lida nos jornais)

um trabalho sobre spreads, taeg's, tanb's, armadilhas pérfidas escondidas na banda magnética do cartão de crédito e no dinheiro fácil conseguido por telefone sem perguntas indiscretas, através do chamariz de anúncios idiotas, e ainda há pouco tempo eu era jornalista de economia, melhor, ainda há pouco tempo fiz um crédito à habitação, por isso, acabámos por comemorar seis meses de estado de graça total, com o Ricardo, no Magnólia, com tostas de presunto à frente dos narizes, no local onde, outrora, há muito tempo atrás mesmo, eu comia com o Zé Ralha, elaboradíssimos gelados durante o Inverno, na defunta cafetaria do Londres.

Uma tosta de presunto finíssima, coisa de autor, de fast food armada em slow food, cogumelos e courgettes, e eu disse-lhe, fora de brincadeiras, quase com o mesmo tom que o André lançou à mesa de um recanto escondido no Bairro Alto, que estava com vontade de um rock rural algures entre as flores e o Corvo:

Se eu me tornar redundante, se me passarem um cheque para a mão, já sei o que vou fazer.

E sem mais suspense disse

Abro uma loja de vestidos de noivas.

Todos eles acham que sou muito cosmopolita, e que sou intensa, culta, e mais umas quantas inverdades – eu sou apenas uma rapariga que sonhava ser maquilhadora, na primeira infância, costureira, na pré-adolescência, e cantora de fado, em plena idade do armário –, mas com uma loja de vestidos de noiva, a vida levava-se como um conto de fadas, imaginem só as histórias bonitas que eu ouviria todos os dias, entre provas, saiotes, cetins e tules. Não viveria rodeada de pulhices, rasteiras, mentiras, apenas felicidade absurda todos os dias da minha semana.

Algures entre as sombras, batons e os blushs da minha mãe, os tecidos e as máquinas de costura Singer com que me entretinha tardes a fio a fazer vestidos para a Barbie, eu quis ser voz de desenhos animados. E é sobre essa vocação que versa este post, só que, claro, tenho que dar uma volta muito grande aobilhar grande para lá chegar (e isto lembra-me também que estou preparada para acabar a saga do Professor de Filosofia).
Eu não sou nada, reparem bem, a ideia da loja de vestidos de noiva é capaz de ser a melhor dos últimos tempos. Sou a miúda que se vai casar, eventualmente, se o dinheiro se dignar a armar-se em papo seco e a multipilicar-se sem razão aparente, ao som de gaitas de foles no jardim da Estrela, e cujo momento alto do dia é à noite, quando me sento à mesa de jantar e pego na pinça de gelo e na pinça da salada e as transformo na família Bocarras – Bocarras júnior, a pinça de gelo, mais meiga, com uma vozinha aguda e irritante que gosta de oferecer Smarties no final de uma refeição degustada sem queixumes; e Bocarras pai, vozeirão rouco, humor negro, apetite obsessivo por pezinhos de crianças loiras, e uma antipatia nata pelo João, a quem insiste chamar de palerma.

Os Bocarras fizeram com que a Carolina voltasse a comer. São apenas pinças de gelo e da salada, que intimidam o anjo loiro a mastigar e engolir a comida, sob pena de levar uma trinca no rabo de uma pinça de salada.

Como a comida já fria, sem graça, para fazer os Bocarras (ainda não como cabeças de peixe, logo, ainda não faço grandes sacrifícios enquanto mãe). Escavaco a garganta a fazer a voz do Bocarras pai, mas a temperamental pinça da salada não me faz pior do que as duas dezenas de cigarros que me ajudam a passar as horas numa redacção em pé de guerra.

E depois, vou com o Bocarras Júnior pescar com o pacote de Smarties à despensa onde as putas das formigas atacam tudo o que está fora de tupperwares hereméticos, e cada vez tenho mais certeza que uma loja de vestidos de noiva é que era.

6 comentários:

Telescópio disse...

Tanb's? Taeb's? Oh meu Deus... continuo à nora! Fuck, fuck. Que merda me saiu na rifa...

E tu, darling, que tens sempre paciência para mim, és o xuxu do costume e perdes tempo com dramas alheios [não fosses tu melodramática, maricas, atenta] em dia de romance celebrado.

Nunca serei noiva para te comprar um vestido, mas juro que te compro um para oferecer à minha mãe [ainda não perdi a esperança de que ela encontre um marido]. Kiss.

AnadoCastelo disse...

Olha que se calhar não era má ideia e como a crise se instalou cá pela "quinta", que tal importar uns da China? Sempre ficam mais baratinhos. Eheheheh
Jokas

MPR disse...

Vestidos de noivas? É uma hipotese, mas eu tenho a teoria que a felicidade é como a nudez. Uma rapariga a quem a vento levanta a saia é alvo de diversos olhares indiscretos que numa praia nunca teria. A felicidade dos outros como norma torna-se tão desinteressante como uma perna despida à beira mar. É o facto de ser invulgar ( e muitas vezes fugaz) que lhe dá a propriedade de bálsamo que possui...

Anónimo disse...

mais um giro post da miuda mais gira da blogosfera e arredores...

Anónimo disse...

(o beta blogger é um desassossego)

Anónimo disse...

Agora que já te vou lendo há uns tempos: surpreendes.
Beijo