Quando eu tinha 13 anos, as certezas do mundo eram todas minhas e eu sabia que queria ser pintora como o Zé Ralha.
No Verão de 1991, terminei o oitavo ano com cincos a quase tudo (só a educação física é que tinha 3 - a mancha do meu currículo escolar foi sempre esta vil disciplina, ainda hoje tenho uma fraca auto-estima por ter sido, durante anos a fio, das últimas a ser escolhida para as equipas; ninguém quer os gordinhos e as gordinhas, somos uma espécie de leprosos, mas eu nunca arranjei atestados médicos falsos a declararem uma qualquer anomalia cardíaca ou esquelética, nem sequer estava com o período todas as semanas, como muitas das minhas outras colegas que, até nem eram gordas, mas não tinham jeito para a coisa), disse adeus à escola que tem das piores reputações de Lisboa (na entrada principal da preparatória Gago Coutinho, a estátua do menino e do cão com a cabeça decapitada há décadas provoca suores frios a qualquer encarregado de educação que se preze, mas a Magui tirou-me do colégio, recusou a matrícula automática no Valsassina, porque, dizia ela, eu tinha que saber o que era o mundo real e, de facto, a Gago Coutinho e os seus barracões pré-fabricados provisórios, que se foram eternizando - ainda lá estão -, foram sempre meus amigos, não me fez mal nenhum, de facto. Se tivesse ido para o Valssassina teria conhecido o Lourenço uns anos antes, mas, provavelmente, hoje em dia, diria "tefone" e "tevisão"), e matriculei-me no Liceu Rainha D. Leonor, na área de Arte & Design.
Em 1991, a Magui já era uma activista contra a assinatura mensal da PT e o nosso telefone - era o 803346 - era meramente um objecto decorativo, mais um brinquedo para os mais de 60 gatos que habitavam a nossa casa destruírem.
Agosto já ia alto quando o meu tio Zé, que mora no mesmo prédio, um andar acima, recebe um telefonema do Liceu Rainha D. Leonor. As senhoras do PBX (sempre foi um mistério para mim, o que quer dizer esta cena do PBX), desesperadas por não conseguirem entrar em contacto comigo, decidiram telefonar para um vizinho (por acaso foi para o meu tio, teria sido mais inteligente, digo eu, ligarem para a vizinha do lado, a D. Anália, mas, se calhar, estiveram horas a fio a rir à gargalhada com o nome da senhora e tiveram medo de ligar e, por lapso, lhe chamar Orália) para requerer a minha presença urgente na secretaria.
Fui com a Milucha, no dia seguinte. "Não há mais vagas para arte & design. Vai ter que escolher outra coisa", anunciou uma professora de cabelo loiro platinado muito armado com laca.
Foi como se o mundo acabasse naquele instante: "Como não há vagas? Qual foi o critério? Já viu as minhas notas?". Nada do que eu aleguei a sensibilizou. O destino é assim, como a vingança, implacável.
Não era o fim do mundo. Só teria que optar por uma área, em definitivo, no décimo ano. Mas eu estava totalmente alterada:"Vai fazer perder-me um ano. Quando eu fôr uma grande artista, vai-se arrepender de me ter feito isto. Esta escola dá-se ao luxo de desperdiçar talentos", disse eu, com intenso dramatismo e soberba à professora, que começou a perceber, naquele instante, porque é que o meu apelido é Ralha.
"Então que vagas é que esta escola tem para mim?", atirei eu, mais conformada, mas com uma saliência que merecia umas boas reguadas nas mãos. "Há Economia e Saúde". "O quê?????" Mas eu lá tenho cara de quem quer ir para Economia ou Saúde???"
Passei-me outra vez, a coitada da minha ex-tia Milucha acho que nunca passou tanta vergonha na vida (mal sabia eu que, meia dúzia de anos depois, daria entrada na secção de Economia de um jornal, secção onde fui muito feliz, onde conheci o amor da minha vida e onde não precisava de escrever em blogues para me sentir útil e realizada).
"Também há música...", disse, baixinho a professora, com medo, naquela sala bafienta da secretaria, cujas paredes eram de um verde hospital.
"Ora é essa mesmo!", sentenciei eu, sem não antes rabujar: "Podia estar a fazer desenhos, a desenvolver os meus talentos artísticos, mas esta escola só me dá música. É isto mesmo."
A professora não percebeu o meu sarcasmo e decidiu vangloriar a minha escolha: "Ora, vai gostar muito. É uma professora velhinha muito querida".
Quando saímos da sala verde e começámos a descer a escadaria da entrada principal pensei: "O que é que eu fiz? Um ano com uma velhinha querida? Vou enlouquecer..." Mas eu já gostava de um bom faduncho na pré-adolescência. Aceitei os desígnios do destino e nessa tarde pus-me a ler na Bíblia a história de Job. Um ano com uma velhota querida não me impediria de ser uma grande pintora.
os horários saíram e as aulas de música eram às segundas e às quintas feiras. A turma de música tinha apenas nove macacos, cujos nomes eu já nem me recordo (estranhamente, recordo-me agora do nome elemento mais asqueroso dos nove maravilhosos, o José Carlos, tinha a cara minada de acne e um nariz que parecia um ângulo recto perfeito). Juntaram-nos, aos nove magníficos, à segunda turma de Saúde. Enquanto eles empinavam a pequena e a grande crculação, nós descobríamos Bach.
A sala de música é ao lado do ginásio do Rainha D. Leonor e por debaixo dos balneários das raparigas, num edifício separado. Era uma sala que cheirava a velha. As aulas de música começavam às 10 e acabavam ao meio-dia.
Naquela primeira segunda-feira, eu preparei-me psicologicamente para a velhinha querida. Mas ela não apereceu. Subiu as escadas um homem dos seus trinta anos, magrinho, cabelo escuro revolto (look acabado de acordar), vestido de preto.
Eu entrei em transe: "Onde é que está velhota?", pensava eu, enquanto ele andava com a sala de música às costas, a mudar secretárias de um lado para o outro, para fazer um semi-círculo de nove carteiras.
Apresentou-se: "Chamo-me António. António e não setôr. Vocês tratam-me por António, ok?"
Choque outra vez.
A custo, timidamente, começámos a tratá-lo por António, mas na terceira pessoa do singular. "Não, não, não. É António e é tu. Não quero cá você".
Naquela primeira aula, o António mostrou não ter os métodos pedagógicos de uma velhota querida. Estivemos a escutar o silêncio, sentados em círculo, no meio do chão. Ouvimos os ponteiros do meu Swatch Scuba, os pássaros, a nossa respiração, e eu até ouvi o bater do meu coração (tenho a certeza que a primeira arritmia que tive foi no dia em que conheci o António)
Mandou-nos comprar uma flauta Honner. Para trazer na próxima aula, quinta-feira.
Eu apaixonei-me pelo António assim que o vi.
Mas pela flauta não. Toda a gente conseguia soprar no instrumento (nada de interpretações nojentas, se faz favor), reproduzir alguma nota, menos eu. Não saía nada parecido com um dó, ou um ré. Um caso perdido, pensou o António. E eu também.
Mas esforcei-me tanto, tanto, tanto, (a minha mãe ficou sem tímpanos: trancava-me no quarto e praticava até à exaustão), que em menos de um mês era a coqueluche da turma e do António. Devorava pautas. Bach, Mozart, cantigas de Santa Maria, música medieval e tantas outras. Chegava às escadas da sala de música às oito da manhã para praticar. A aula era só às dez, mas o António vinha de Almada e, por isso, chegava sempre mais cedo. Estávamos ainda no primeiro período e ele disse-me, nas escadas, onde fumávamos cigarros juntos: "Diana, eu vou-te dar um cinco. Eu não te posso dar um seis, senão eu dava-te".
Nunca fui tão feliz na vida.
Foi o António que descobriu que eu sabia cantar (era uma melodia cantada em cânone, apenas com a palavra "tuemba", parecia magia, quando ambos descobrimos que eu tinha uma voz de anjo). Foi o António que me fez descobrir os Madredeus. Foi por causa do António que eu me aventurei a cantar, com 14 anos, para o Pedro Ayres Magalhães e que, nesse dia, disse a mim mesma, posso morrer agora (anos mais tarde, ao ouvir as variações Goldberg no Palácio de Queluz senti o mesmo), porque o PAM se emocionou, pediu-me para gravar uma demo para ele (ele tinha um banco de voz, que é um conceito lindo) e ainda hoje se lembra - referiu-o há tempos quando o Leonardo o entrevistou para o Indígena - da adolescente louca, que abriu a porta do elevador onde ele seguia (já tinha um qualquer fetiche com elevadores) para lhe cantar "A sombra".
Esta história não tem um final feliz.
Quando o final do ano lectivo se aproximou, o António perguntou-me se eu não queria ir para a Escola de Música de Almada, onde ele leccionava.
A minha mãe não deixou.
Não fui para Arte & Design no ano seguinte. Esqueci a pintura e fui para Letras - o quarto agrupamento -, que era o que me dava menos trabalho.
A única recordação que eu tinha, até hoje, do António, era uma foto, tirada no último dia de aulas, está ele em contra-luz, a arregaçar as calças nos tornozelos, e uma folha pautada de uma sebenta com o seu nome completo e a sua morada, que eu decorei há 12 anos: "António Ângelo Vasconcelos, Quinta de Santo António (e o resto não digo, não vá ele morar lá ainda)".
Mas, hoje ao almoço, duas pessoas de quem eu gosto muito magoaram-me quando me disseram que não vale a pena tentar. Que ou se tem ou não se tem.
E eu lembrei-me do António e das notas que teimavam em não sair da flauta Honner. E do "Diana, eu vou-te dar um cinco. Eu não te posso dar um seis, senão eu dava-te".
Eu não acredito em nada disso que vocês disseram.
E encontrei o António no Google. Por isso, obrigada, Dave. Obrigada, Maique.