terça-feira, maio 31, 2005

O meu look de fodida é fodido

Tiago Luz Pedro dixit.
Quando estava a escrever o post anterior, no computador dos estagiários da fotografia, o editor dessa secção disse: "bem, rapariga, a violência com que estás a martelar esse teclado é porque deves estar mesmo fodida".
Oh yeah... Vou comer sardinhas e beber imperiais.

FODA-SE

É com todas as letras agora.
E em português - a língua inglesa fica sempre bem, mas no calão não se aplica esta lenga-lenga.
Faço um blogue, a coisa corre bem, a crítica aplaude, lanço-me para novos voos: bora lá escrever para a revista semanal do pasquim, agora que tenho a mania que sou escritora, que consigo fazer mais do que meras notícias.
Agora sim em inglês : NEVER MORE!
É melhor ficar por aqui. Por aqui não me cortam dois terços do texto.

sexta-feira, maio 27, 2005

A fome e a vontade de comer

Se o dia de hoje tivesse que ser reduzido a uma frase feita, a escolha recaíria sobre esta: junta-se a fome e a vontade de comer.
Apesar de não se terem devorado uma à outra, a fome e a vontade de comer andaram a brincar com o fogo.
Memorável, é o que vos digo.
A cor do dia é o aubergine. Do meu vestido. De um sofá antigo de veludo.

Pazes com a Leica


Dentes perfeitos

Este exercício de imenso narcisismo serve para vos anunciar as pazes com a Leica. Ainda não me habituei à ideia que tenho uma dentadura perfeita...

Um linque para o Maique

Hoje é dia de festa: o Maique não conhecia esta pérola

Mimi


E a Mimi - a mais palhaça, como a mãe

Mancha


Apresento-vos os mais recentes membros da família: Mancha (nome ainda provisório)

Minha alma canta...


... O Lourenço está quase a chegar.

quinta-feira, maio 26, 2005

Sherlock Ralha (ou a história das Drosophilas)

Hoje, o patrão está a pagar o feriado a 300 por cento, logo, estão reunidas todas as condições para um grande post.

Quando comecei a escrever estas linhas, há quatro horas atrás, ia-vos contar mais histórias de elevadores e de calças de ganga cintura descaída com banhas a mostra (hoje saí de casa com umas calças de cintura descaída e tinha as banhas todas à mostra; entrei em pânico e não sosseguei enquanto não comprei umas calças novas que me devolvessem alguma dignidade - abençoadas lojas chinesas - e escondessem aquela ridicularia).
O post chamava-se Encontros Imediatos no Hércules (o elevador velhinho da Estados Unidos), calças de cintura descaída e outras estórias.
Depois, há um bom par de valentes horas, à conversa com a minha homónima bébé no messenger, o post sofreu uma mudança abrupta: ia-vos contar, também, como um senhor arquitecto com quem privei pouco mais de uma hora, numa tarde de Domingo em que comprei três pares de sapatos e depois vim ter com o mau feitio do Maique ao pasquim (não vejo a hora de voltares a ficar mansinho outra vez, mas, pronto, estou solidária com a tua dor, a morte do "branquinho" está a ser difícil para todos nós...), de repente, se tornou uma das minhas mais importantes "musas".
Dou comigo a pensar quase que diariamente: "Hoje não escrevi nada na (T)ralha, não pode ser, Ralha, senão o KAos não tem nada para ler".
E, então, sento-me em frente ao computador, coloco os óculos pseudo-intelectuais, fecho os olhos, em sinal de concentração, abro-os, depois de se fazer luz, e escrevo. Para ele e por causa dele. E, por isso, obrigada. Porque abri caixas que há muito estavam fechadas, porque acho que não me tenho saído nada mal, porque me dá um gozo tremendo contar-vos as minhas "Amelices".

Mas tudo isto vai ter que ficar para outro dia.

A minha vida é uma coincidência pegada. A Mónica comentou isso por aqui e tem toda a razão. Hoje a actividade gmailistica esteve praticamente desactivada. Recebi meia dúzia de mails e uma notificação do Hi5. Uma amiga querida do pasquim tinha aderido a esta coisa que eu ainda não percebi muito bem para que é que serve e que só aderi, há cerca de seis meses, por causa do senhor que me salvou o Domingo.
Parece-me que a ideia é partilhar fotografias com os nossos amigos e conhecer os amigos dos amigos. No fundo, com os meus 11 amigos que aderiram à coisa eu estou ligada a qualquer coisa como uma centena e meia de pessoas.
Mas o senhor do Domingo, misterioso, nunca lá pôs fotografia.
Eu nunca vi o senhor que me salvou o Domingo. Falamos há muito tempo através das novas tecnologias (primeiro o ICQ, onde ele me encontrou, depois no messenger). Depois há as longas conversas internacionais ao telefone - gravei na memória a passagem de ano de 2002; passámos horas e horas ao telefone e o senhor mistério estragou-me engate com um jovem comunista, mas valeu a pena, se valeu.
Deu-me, então, para googalizar o nome do senhor. Mandei-lhe um mail a informá-lo que Sherlock Ralha ia entrar em acção.
www.google.com e vamos lá a isso - o nome do senhor com o sítio onde ele trabalha; o nome do senhor com a cidade onde ele mora. Enfim, mais de uma hora depois, e de ficar a saber que o senhor professor doutor anda a estudar uma mutação qualquer nas mosquinhas do vinagre (as drosophilas - desde muito cedo a Magui me ensinou a vantagem das drosophilas na investigação científica, porque se reproduzem a um ritmo alucinante; ela também as estudou quando estava a tirar Medicina...)

E ZÁS!

Aparece uma fotografia num site de um projecto científico financiado pela União Europeia. O senhor doutor, aquele que me salvou o Domingo, é o penúltimo da fotografia.
Não é nada como eu o tinha imaginado.
Estou em choque.
De cinco em cinco minutos abro o JPEG.
Já lhe enviei um mail a anunciar os resultados da minha investigação por conta própria. Estou à espera de confirmação.

A caixa de Pandora está aberta. Se calhar, há caixas que nunca se deviam abrir.
Nada a fazer.

quarta-feira, maio 25, 2005

Don't threaten me with love, baby. Let's just go walking in the rain

Esta frase é da autoria da minha musa musical - Lady Day.
Lamento dona Ella, mas a madame Billie fascina-me. Pela voz imperfeita e dengosa. Pela existência triste e trágica. Pela imortalidade e reconhecimento terem acontecido depois de ter sido encontrada morta, num apartamento, com 500 dólares na vagina.
Hoje estou com os blues.
Porque me apetecia dizer esta frase, mas está um dia radioso lá fora. Porque desejo mais do que tudo cantar em dueto o Potato Head Blues, do Armstrong, de preferência em cima da cama, aos pulos no colchão, de pijama, com um rolo de papel higiénico a fazer de microfone.

"Todos os teus problemas começam na tua voz", disse-me há muito tempo, o meu primeiro namorado. Era desafinado como o raio (mas no peito dos desafinados também bate um coração, diria o meu amigo Tom Jobim), mas percebia imenso de música e eu ainda sorrio quando oiço Soundgarden na rádio.

Toda a gente hoje decidiu tirar o dia para me deprimir, para perguntar porque é que eu não tenho namorado e eu ontem resolvi parcialmente o problema: adoptei duas gatinhas lindas, porque já não suporto dormir sozinha. "All by myself in the morning, toca agora o Real Player, lindo, lindo, oportuno como o diabo...
Mais do que um namorado, procuro um companheiro para duetos improvisados no chuveiro e que gaita, só me vem um nome à cabeça.
(O chuveiro que eu comprei parece mesmo um microfone e agora me lembro como fui tola, quando o empreiteiro estava a colocar a banheira e eu o adverti para fazer a coisa de forma a que coubesse lá uma torre holandesa com mais de um metro e noventa: Idiota, idiota...)

segunda-feira, maio 23, 2005

Nota da redactora

Tem havido aí umas confusões, uns telefonemas, mails e até um sms, enfim, resumindo, eu quando estou de fim-de-semana de piquete no pasquim não blogo tão bem como nos dias em que um self made man português me paga sete euros e qualquer coisa à hora e, então, cá fica a nota: o post 'save my sunday' e o post 'E se...' não são sobre a mesma musa.
As minhas fontes de inspiração são infindáveis. A musa que me salvou o Domingo - e cuja nossa amizade dava um blog autónomo da Tralha (e eu até sei como é que o chamaria: scentedgarden.blogspot.com) - diz que eu sou witty and kinky (foi ele que me ensinou estas palavras). O outro o melhor que sabe dizer é que eu não sou nenhuma Heidi Klum (é assim que se escreve?)
Um grande abraço ao meu novo coleguinha de secretária, JPH, que hoje deve ter sentido muito a minha ausência (tinhas a estagiária gira no meu lugar) e, por isso, se fartou de vir aqui à (T)ralha - the big blogger is watching you... -, com o seu browser absolutamente obsoleto (MSIE 5.0).
Um beijo (argh) ao meu fratelo (os oliveira-ralha não se beijam... achamo-lo repulsivo), que também se farta de contribuir para o engrossar das minhas estatísticas. Foste o feliz contemplado com a 3333ª visita. A tua vida vai mudar depois disto. Muda de Ice Tea e aposto como vais deixar de ter que trabalhar ao Domingo...
Acertei?
Bem, basta de disparates. Vou escrever 20 mil caracteres para o patrão.
Inté

domingo, maio 22, 2005

Save my sunday

Eu sei que prometi nunca escrever sobre ti neste blog, perdoa, mas és demasiado importante para não estares aqui.

O repto era simples: Save my sunday, dizia o subject do mail, que era curto e grosso, uma linha de texto apenas, e foi na onda do post anterior: "E se ele estiver online?"

Estavas online. Salvaste o Domingo.
A distância é enorme, eu conheço-te há quase cinco anos, mas não sei como és.

Pode alguém sentir-se tão próximo de outra pessoa apenas pela escrita?
Pode.

E se...

E se eu não tivesse entrado em piloto automático, se eu não me tivesse enganado no caminho? E se não estivesse a tocar o My Immortal no auto-rádio, teria eu entrado, por engano, no Eixo Norte Sul? E se eu me tivesse marimbado para o telefonema da Mónica? E se não me tivesse dado ao trabalho de confirmar se havia um repuxo de água na Praça de Espanha? E se não me tivesse demorado mais cinco segundos, quando estacionei o Idea, para passar um brilho nos lábios (peneirenta...)? E se o cartão magnético tivesse funcionado à primeira? E se, quando toquei no botão do elevador, ele tivesse aberto as portas, ao invés de descer até ao menos quatro? E se, já dentro do elevador, eu tivesse conseguido dizer alguma coisa de jeito?

As coincidências são como as bruxas: ninguém acredita nelas, mas que as há, há.

sexta-feira, maio 20, 2005

Escadas sinistras



Traseiras



Casa protegida



A minha sala pombalina



Mais obras de Santa Engrácia

A minha casa-de-banho laranja



Obras de Santa Engrácia...

quinta-feira, maio 19, 2005

Isaura de Jesus

Os meus mortos vieram-me visitar.

Da primeira vez que me doeu o coração - num primeiro dia de um ano da longínqua década de 80 -, uma dor tão forte que eu quase não conseguia respirar, a minha avó Zá esteve lá, no quarto dos fundos de um sexto andar na Praça Pasteur, até eu adormecer.

Quando tinha 16 anos e um pai maniaco-depressivo Brahman, de olhos muito azuis, a Isaura de Jesus feriu o olho direito com o espinho de uma rosa. Eu imagino a cena num enorme roseiral bravisco da Quinta das Canas, no Barreiro, mas não sei se se passou assim. A cicatriz, uma bolinha encarnada no branco do olho - que parecia mais branco ainda porque a Isaura de Jesus tinha uns olhos amendoados muito grandes e muito escuros -, ficou lá para sempre, como uma tatuagem.
Eu nasci com a mesma cicatriz no olho direito. Eu sou uma fotocópia da minha avó Zá.

Soube bem ser a favorita - as coisas estavam muito bem distribuídas na nossa família: a avó Tóia gostava mais do meu primo Hugo, o avô Ralha sempre se sentiu mais próximo do Leonardo, o avô Oliveira, magnânime, justo, não demonstrava de que neto gostava mais (eu arrisco que talvez fosse eu a menina dos seus olhos, mas talvez seja demasiada presunção e soberba).

A minha avó Zá inventou um verbo na língua portuguesa - o "princesar". Não o descobrirão, por certo, num exemplar da Porto Editora; faz parte de um compêndio de edição única que está em meu poder.

Quando chegávamos à Praça Pasteur (íamos lá com que regularidade?), o avô Ralha implorava para que não corrêssemos ou pulássemos, recordando o momento Jeunet em que a vizinha de cima, grávida de nove meses, irrompeu pelo tecto da sala. Ou melhor, quando as pernas da vizinha - a barriga travou a sua queda livre - se transformaram num estranho candelabro em movimento.
A avó Zá estava sempre sentada na sua cadeira de cabedal (no Inverno tinha os pés em cima de uma escalfeta), em frente ao bonito móvel onde estava exposta a colecção de vidros do meu bisavô Correia, às voltas com as suas traduções de fórmulas químicas. Levantava-se, baixinha, sapatos de cunha, abertos à frente, deformados pelos joanetes, cabelo totalmente branco, olhos pintados com um duo de sombras verdes da Mary Quant, perfume de madeiras da Lander e lançava: "Vamo-nos princesar!"
Os meus olhos sorriam. Esquecia as repetidas recomendações do avó Ralha de não corrermos pela casa e lá ia eu a voar até ao quarto. Abríamos a última porta do armário (as gravatas do avô Ralha estavam penduradas na porta), junto à cabeceira da cama, e ela deixava-me sempre abrir o baú onde estava o meu tesouro: uma caixa de plástico castanha escura, com tampa beige, onde a avó Zá guardava os "pechisbeques" com os quais eu me "princesava".
Colocava anéis de pedras semi-preciosas em todos os meus dedos, pérolas nas orelhas, colares, lenços na cabeça. Ficávamos horas naquilo.
Ainda hoje uso estas jóias (hoje trago no anelar da mão esquerda o anel de prata em forma de tronco), que não valem nada, mas são um dos meus maiores tesouros. Quando a Isaura de Jesus morreu, seis meses depois da avó Tóia, reclamei o meu tesouro.
Ela disse, repetidamente, quando estava a morrer, quando implorava para o meu avô terminar o seu sofrimento, mas ele só o prolongava, deitada do lado esquerdo da cama de casal do seu quarto verde, que todas as suas jóias (as verdadeiras) deveriam ser para mim. Nunca as vi. Não importa: os anéis que ela trouxe do Brasil estão comigo, o colar e a pregadeira de turquezas e zircónias também, guardadas na caixa castanha escura com tampa beige. (Gostava de ter a cadeira de cabedal, porém).
A avó Zá nasceu há 85 anos e um dia. O avô Ralha nasceu há 84 anos e um dia. Conheceram-se na faculdade - ela era melhor aluna do que ele -, casaram-se por procuração e isto sempre foi algo que me escapou: porque é que o Alberto José falhou o seu próprio casamento.
Partiu cedo demais. Teria sido ainda mais mimada do que sou, ter-me-ia amparado todos os golpes, como fez com o Zé Ralha.
A minha avó Zá esteve presente apenas nos meus primeiros quase sete anos de vida e incutiu-me o gosto pelas rosas trepadeiras braviscas e pelas lantanas, que me ensinou, desde muito cedo, que são venenosas.
Sempre que vou à Costa, deixo uma flor na Sant'ana, que tu mandaste eregir, há meio século atrás, quando o Zé Ralha nasceu, por milagre, depois de anos e anos sem conseguires ter filhos. O avô Ralha quis saber porquê, eu não lhe disse, mas é para ti, trago-te sempre no pensamento: os postais com gatinhos que enviavas para Viseu nas férias grandes, apesar de eu não saber ler, as bolachinhas que tendíamos na cozinha, os desenhos onde eu te retratava loira e ao avô Ralha com um chapéu de pasteleiro na cabeça, as pastilhas efervescentes de vitamina C com sabor a morango que nos davas sempre que iamos à Praça Pasteur.

Todos os dias, quando me olho ao espelho, vejo a minha avó Zá.

segunda-feira, maio 16, 2005

Custódia de Jesus

Depois de tu morreres, quando eu era pequenina e a Magui me fazia, todas as manhãs, à pressa, duas trançinhas simétricas, à índia, como aquelas que eu trago hoje -

tu fazia-las com mais amor: eu sentava-me no banquinho de três pernas da casa de banho,

(que eu rachei numa tarde, quando tentava agarrar já não sei o quê do armário dos remédios, e que nunca foi substituído até à tua casa, que tinha alcatifa verde relva na entrada, ficar em profundo silêncio)

à espera que tu chegasses com um alguidar com um fundinho de água, que servia para domar os meus enormes cabelos. Baixavas o tampo da sanita, sentavas-te, enorme, na tua pose de altivez. Trazias contigo um pentinho pequenino, com o qual dividias meticulosamente o cabelo ao meio e, depois de o entrançares, fazias um caracol na ponta, enrolando as madeixas à volta do teu dedo indicador e humedecendo-as com água e um bocadinho de sabão azul e branco, para ele não se desfazer; depois, o toque final: enfeitavas as trançinhas com um laçarote, daqueles que comprávamos ao metro, numa retrosaria ao lado dos Armazéns do Minho

-, eu encontrava consolo nos dias de chuva, porque, para mim, tu andavas nas limpezas da tua nuvem.

Chamavas-me abelha mestra: é incrível como me leste era eu ainda tão pequenina.

Hoje sonhei contigo, vóvó Tóia.

Estava deitada no sofá de napa alaranjado, com a cabeça em cima do teu colo, ouvia o teu coração e distraía-me a sincronizar a minha respiração com a tua.
De repente, estávamos lá em baixo, na Rua do Tarrafal, a comprar leite na UCAL e, um pouco mais à frente, a aviar hortaliças numa carroça de madeira. Mais um frame do meu sonho, e desta vez estamos na Praça de Alvalade a comer tremoços. Mais 24 imagens por segundo, e eu tenho um cartucho de papel almaço cheio de cerejas: tu ensinas-me a fazer brincos com as cerejas, já que a Magui teima em não me deixar furar as orelhas.
Estás já muito doente, na escola a professora Gertrudes Maria manda-nos ir ao canavial da Igreja de santa Joana Princesa, cortar uma cana, para fazermos marionetes em casa. O Zé vai buscar-me à escola e corta a cana e o dedo, com um canivete, mas a Magui trabalha até tarde e não tem tempo para fazer a marionete.
No dia seguinte, eu chego a casa a chorar: todas as mães fizeram a marionete para os filhos - são todas muito mal amanhadas: não passam de um pau com uma cabeça feita de uma peuga velha -, só eu é que chego de mãos a abanar.
Tu perguntas o que se passa, eu explico-te. Levantas-te da cama, prometes-me a marionete mais bonita - "vou fazer-te uma noiva" - e sentas-te em frente à Singer e ali ficas, durante horas a fio, a costurar. Abres uma gaveta da cozinha e fazes magia: transformas um pauzito nos braços da minha marionete, que forras com um retalho de tecido muito bonito, com florzinhas minúsculas cor-de-rosa, com o qual fazes, também, o vestido da noiva.
A cabeça, fazes com um collant cinzento, que enches de sumaúma. Cozes dois botões, que são os olhos, bordas uma boca com uma linha encarnada, fazes uma cabeleira com lã. O toque final: um véu de tule branco.
Eu não sei onde é que tu foste arranjar forças para fazer a minha marionete. Não sei onde encontraste, assim, do pé para a mão, o tecido das florzinhas minúsculas ou o improvável tule. Só sei que, naquele dia, fizeste magia aos olhos de uma menina de tranças enormes. A minha marionete faz ainda vincar a covinha que eu tenho na bochecha direita.
Fez 20 anos, a tua noiva. Está guardada numa caixinha para não se estragar: o collant que lhe emprestou um rosto tem uma malha enorme, os olhos estão quase descozidos, os cabelos e o véu estão enegrecidos pelo tempo. Vou visitá-la muitas vezes, mas eu não me atrevo a mexer-lhe: a cozer os botões dos olhos, ou a lavá-la num alguidarzinho como aquele que tu usavas para me fazer as tranças.
Vou guardá-la sempre.
Fazes-me mesmo muita falta, vó.

The day after

Tanta merda com o day after, tanta merda (ou caca de cão, para os mais pudicos), tanto impasse, tanto vai não vai e depois dá nisto...

sábado, maio 14, 2005

Sê meu guia espiritual: corta-me o cabelo

Eu disse "um dedo", à Cristina de Montalegre, e ela cortou um dedo.
Não me cobrou o suplemento escandaloso de 25 Euros para cabelos compridos e deu-me uma prenda da Kerastase para a Carolina.
A Mónica diz que eu nasci de facto com o cú virado para a lua e que me calham sempre as mais simpáticas.
André,
És e serás sempre o meu guia espiritual - não me esqueço do penteado magnífico que tu me fizeste numa noite em que o elevador do meu prédio teve mais histórias para contar e em que os inquilinos que nos pagam rendas insultuosas de 50 euros tiveram que gramar com o "Come What May", do Moulin Rouge, até ao amanhecer -, mas, quando eu digo "um dedo" tu levas cinco.
Gostei da Cristina de Montalegre (que eu pensei que era galega). Hei-de lá voltar.

sexta-feira, maio 13, 2005

Fuck!

Quando eu escrevo as barbaridades que vocês encontram neste blog, quando exorcizo os meus demónios, tenho sempre a secreta esperança que haja uma ou outra pessoa que não ponha cá os pés. Talvez, por isso, se explique a minha recente e violentíssima adicção no StatCounter - quero sempre saber quem anda por aqui, como veio cá parar e o que é que faz nos escassos minutos que dedica a este quintal.
Acabo de saber que uma das minhas musas lê com muita atenção o que eu escrevo. Como é que eu me fui esquecer das 'watch lists' e dos 'news agregators' (é isto não é, maique?)
Gaita!

Coincidências...

Tenho um visitante novo.
E de onde???
British Columbia.
Uma miúda não aguenta coincidências destas...

quinta-feira, maio 12, 2005

1237 Euros

É o meu reembolso do IRS.
Ser mãe solteira e comprar casa nem é assim um mau negócio de todo...

Ave Edgar

Edgar querido, tens um corte de cabelo que não lembra ao menino Jesus - o que até é pena, porque és muito engraçado -, mas resgataste as fotos perdidas da Carolina das entranhas mais profundas e viscosas do Toshiba e, por isso, acabo de inscrever o teu nome no "álbum do bébé" da minha loira. Nunca te esqueceremos.
E, assim, qui ça, daqui a alguns dias, conseguirei fazer as pazes com a Leica e tentar-me-ei convencer que ela não tem mau Karma (ainda não lhe chamo Leiquinha, mas também já não digo os dois nomes juntos - Leica Digilux, vem imediatamente à mãmã!!!, o que é, indiscutivelmente, muito bom sinal de tréguas), que tudo não passou de uma fatalidade.

Ave Edgar!

(Mas acho que vou comprar uma Olympus Mju Laranja, só para o caso da maldição da Leica persistir...)

Nojo

De ser portuguesa.
Os demónios que mataram a Vanessa arriscam-se a uma pena de 12 anos.
Sou cada vez mais reaccionária.
Tenho cada vez mais vontade de comprar o bilhete de avião.

quarta-feira, maio 11, 2005

Os meus pertences

Na minha vida é sempre assim - se ao dobrar da esquina houver um lugar de estacionamento, vou lá buscar os meus pertences.
Fui buscar os meus pertences e ele não os atirou pela janela, como eu tinha imaginado na minha fantasia de reencontro. Não tem pedalada.
Acabou.

Breve apontamento botânico

Os Jacarandás estão quase, quase em flor.
Sugiro que esperem mais uns quinze dias e visitem a Rua Almirante Barroso. É uma orgia lilás.

terça-feira, maio 10, 2005

Maniaco-depressiva Parte III

Estava a colocar a chave na fechadura da porta do prédio, ainda a suspirar, porque tu não olhas sequer por cima do sobrolho, porque te sou totalmente indiferente, estava em perfeita simbiose com os blues da chuvinha de molha-tolos que decidiu aparecer finalmente, quando surge, do meu lado esquerdo, um puto - tinha, com certeza a minha idade, mas para mim são sempre putos - a tocar à campainha do sexto andar e a interromper o meu faduncho.
"Oh não", pensei eu, largando um sonoro suspiro, "Só me faltava agora uma viagem silenciosa e desconfortável de elevador", matutei franzindo a testa.
Mas hoje, ou está tudo tarado, ou eu estou mesmo irresistível e tu é que parvo.
O velhinho elevador, que já viu muito na vida, tinha já galgado até ao terceiro piso quando o dito jovem disse: "Grande decote".
Os meus olhos abriram-se muito, baixei a cabeça, colei o queixo ao peito e confirmei a imagem mental da minha vestimenta. "Não, o decote hoje nem é nada de especial", respondi eu.
"Não, não estou a falar desse". Apontou para as rachas imorais que o meu vestido tem, que descobrem dois terços da minha coxa enorme.
"É um bocado demais, não é?", disse eu à criança.
"Qual quê? É lindíssimo", respondeu ele com uma lata que eu até me belisquei para ver se estaria a sonhar, no momento em que o elevador parou, com um sobressalto, no sexto andar.

Isto aconteceu mesmo e tu és muito parvo.

Unsexy

I can feel so unsexy for someone so beautiful
So unloved for someone so fine
I can feel so boring for someone so interesting
So ignorant for someone of sound mind

E, num estalar de dedos, tu pões-me a cantar esta canção.

Odeio-te.

Piropos e outras massagens ao ego

Hoje ao almoço, com o rio a enquadrar os franguitos assados que jaziam coradinhos e estaladiços nos nossos pratos, o psicólogo social que eu fui entrevistar e que, por sinal, é um dos publicitários mais bem sucedidos deste pedaçito de terra do Oeste da Europa, falava-me da imensa necessidade de, quando em quando, sairmos de nós próprios e vermo-nos como nos sonhos.
Pensem num sonho qualquer.
Bom, mau, não interessa.
À noite, assim que fechamos os olhos e entramos no vale profundo dos lençóis, todos nós, sem excepção - pobres, ricos, feios, bonitos, talentosos ou bestas quadradas -, somos realizadores.
Nos sonhos, a uma média de sete a oito horas por noite - mais um dia de trabalho por cima dos nossos corpos -, enquadramos planos, misturamos cenas, coordenamos figurantes e efeitos especiais.
Nos meus sonhos há sempre banda sonora e eu diria, sem modéstia nenhuma, que sou uma excelente directora de fotografia - a luz dos meus filmes nocturnos é sempre mágica, quente, em tons de sépia.
Quem sonha é o homem dos sete instrumentos naquelas horas de suposto descanso e, geralmente, não se escapa de ser, também, o protagonista das películas de algodão doce, da qual são feitos estes filmes do inconsciente.
Mas vemo-nos sempre de fora, pela lente da câmera de oito milímetros.
Eu sonho apenas alguns sonhos com os meus olhos.
Era isto que me falava o senhor Bidarra ao almoço: da imperiosa necessidade de sabermos o que é que os outros pensam de nós.
O Ricardo inaugurou uma Moleskine de folhas de 150 gramas por metro quadrado, quando esteve lá em casa a semana passada. Fez um desenho. Retratou-me.

(é uma gaita eu estar ainda zangada com a Leica, porque gostava de tirar uma foto ao desenho e pô-lo aqui)

Gostei do que vi. Os riscos da caneta preta desenharam uma vamp de cabelos enormes e volumosos, com um vestido comprido de corte "princesa". Os saltos altos lá estavam, enormes (este fim-de-semana comprei umas sandálias Kallisté a 10 por cento do preço no abençoado Stock Market), a pose altiva também.
Sorri e fiquei espantada com o pormenor de uma das mãos: cigarro em riste, mas em pose de cardeal, quando este estende o anel para ser beijado pelos seus súbditos.
O Ricardo vê-me de uma forma bonita. Diz que eu tenho nariz empinado (nunca tinha reparado, mas o Maique concorda) muito bonito - "Gosto desse nariz empinado" - e um sorriso Nicole Kidman.
Foi o piropo mais bonito que eu alguma vez ouvi.
"Em que é que consiste o sorriso Nicole Kidman?", perguntei eu, protegida pelo Messenger. "É absolutamente devastante; a true knock out", disse ele

Enquanto escrevia estas linhas, um colega de trabalho tímido, que tem um dedo que adivinha, veio tirar um café (trabalho lado-a-lado com a ruidosa máquina, que parece ter ataques de flatulência sempre que alguém decide beber um expresso na redacção) e, enchendo-se de coragem, perguntou: "Já alguém te disse que vens sempre bonita para o trabalho?"
"Não", respondi eu, corando de imediato.
"Mas vens; estás sempre muito bonita. Destróis o preconceito de que uma mulher ou tem boa aparência ou é inteligente. E, também, que as jornalistas parecem todas uns homens. É um serviço público que nos prestas".

Sozinha, mas maravilhosa, com o ego a transbordar, lá vou eu escrever um InfelizCidades.

segunda-feira, maio 09, 2005

Cegueira

Hoje, depois de ler as notícias, só acredito que Tu existes, porque me consola a ideia de que a menina que foi queimada numa banheira de água a ferver pela avó, que agonizou durante três dias e ainda foi queimada outra vez com um ferro de engomar em brasa porque chorava muito, ganhou asinhas de querubim no rio Douro e está no céu, numa nuvem bonita qualquer.
A menina chamava-se Vanessa, parece-se com a minha filha e Tu fazes o favor de ir rapidamente ao médico ver essas cataratas que te cegam.

Coleguinha novo

Tenho um coleguinha de secretária novo. Mais um que foi desterrado para a única secção ultra-populosa deste jornal: a secção para onde vão os jornalistas que se portaram mal...
Estou a gostar do meu companheiro de exílio.

Gafanhotos e outras musas

O meu maço de Lucky Strike em cima de uma mesa do Laçinho despoletou uma pontinha de ciúme no senhor que fuma Camel: "Agora até já fumas Lucky? Tens a certeza que não estás apaixonada pelo Madeira?"
Não, não estou. Faria sentido, de facto.
Penso nisso muitas vezes.
Não estou nada apaixonada pelo Miguel, apesar de achar bizarra a quantidade de vezes que subo ao segundo piso só para fumar um Lucky com o senhor Wood (o senhor do Camel também não gosta destas minhas visitas).
Admiro-o. Ponto final. Quero aprender todas as coisas que ele tem para ensinar (são imensas) e o facto mais extraordinário é que ele as quer ensinar e tem jeito para mestre (apesar de a paciência não ser o seu forte).
Admiro a guiquisse dele e ela contagia-me: este blogue não existiria se eu não tivesse conhecido o seu velhinho Something or Something Else e eu não estaria viciada em Statcounter se não tivesse sido ele a criar a minha conta e a instalá-lo no T(Ralha). Se os dias aqui no jornal fossem como nos sete anos em que eu e o Maique nos ignorámos, eu continuaria a utilizar o Explorer, perdendo o maravilhoso mundo do Firefox e das suas mil e uma extensões. Nem tão pouco sonharia que Safari e Camino são browsers para Mac. Desconheceria o significado de open source e se me falassem em panther, jaguar ou tiger, eu estaria convencida que alguém tinha ido ao zoológico -nunca me passaria pela cabeça que estariam a falar de versões do Mac OSx.
O Maique recorda-me outras "musas" que me inspiraram na vida, que despertaram em mim estranhos interesses - direito do Trabalho, em geral, e negociação colectiva, em particular, foram, talvez, os mais estranhos.
No final da semana passada, pedi ao Maique uma ficha de inscrição para me transformar em pequena gafanhota, como a Qui Qui e tantas outras meninas que ele guiou nessa arte das gafanhotices. Ele aceitou-me na Universidade Mikelegurra, e logo tratou de enumerar o material necessário para aprender este antigo ofício (já encontrei o Victorinox cor-de-rosa; é muito pindérico...)
Um dia, espero, ensinas-me fotografia.

sexta-feira, maio 06, 2005

Break

Na prateleira do Dashboard está uma ode ao Maique. Por acabar. Porque, tal como lhe expliquei há pouco, no Gmail, quando escrevemos sobre alguém que nos inspira verdadeiramente, temos que deixar aboborar as palavras, cozer em lume brando para apurar o sabor da prosa.

quinta-feira, maio 05, 2005

Depois



Fotos: MMM

Antes



quarta-feira, maio 04, 2005

Pós-catarse

Catarse. É uma palavra que eu amo, mais que não seja porque foi das únicas coisas que eu ensinei ao Leonardo.
Depois da catarse de ontem - os esqueletos decidiram sair do armário, porque já estavam bafientos, cheios de mofo -, deixo-vos hoje um apontamento completamente fútil e oco: amanhã tiro o aparelho dos dentes. Espero ter, brevemente, motivos para mostrar a minha dentição perfeita.
Se não tiver, tant pirre, como dizem os personagens dos filmes do Jeunet, I will survive, como diria a agora rechunchuda (outra palavra linda) Gloria Gaynor (que actuou no Dubai, quando eu lá estive).

terça-feira, maio 03, 2005

António Ângelo Vasconcelos

Quando eu tinha 13 anos, as certezas do mundo eram todas minhas e eu sabia que queria ser pintora como o Zé Ralha.
No Verão de 1991, terminei o oitavo ano com cincos a quase tudo (só a educação física é que tinha 3 - a mancha do meu currículo escolar foi sempre esta vil disciplina, ainda hoje tenho uma fraca auto-estima por ter sido, durante anos a fio, das últimas a ser escolhida para as equipas; ninguém quer os gordinhos e as gordinhas, somos uma espécie de leprosos, mas eu nunca arranjei atestados médicos falsos a declararem uma qualquer anomalia cardíaca ou esquelética, nem sequer estava com o período todas as semanas, como muitas das minhas outras colegas que, até nem eram gordas, mas não tinham jeito para a coisa), disse adeus à escola que tem das piores reputações de Lisboa (na entrada principal da preparatória Gago Coutinho, a estátua do menino e do cão com a cabeça decapitada há décadas provoca suores frios a qualquer encarregado de educação que se preze, mas a Magui tirou-me do colégio, recusou a matrícula automática no Valsassina, porque, dizia ela, eu tinha que saber o que era o mundo real e, de facto, a Gago Coutinho e os seus barracões pré-fabricados provisórios, que se foram eternizando - ainda lá estão -, foram sempre meus amigos, não me fez mal nenhum, de facto. Se tivesse ido para o Valssassina teria conhecido o Lourenço uns anos antes, mas, provavelmente, hoje em dia, diria "tefone" e "tevisão"), e matriculei-me no Liceu Rainha D. Leonor, na área de Arte & Design.
Em 1991, a Magui já era uma activista contra a assinatura mensal da PT e o nosso telefone - era o 803346 - era meramente um objecto decorativo, mais um brinquedo para os mais de 60 gatos que habitavam a nossa casa destruírem.
Agosto já ia alto quando o meu tio Zé, que mora no mesmo prédio, um andar acima, recebe um telefonema do Liceu Rainha D. Leonor. As senhoras do PBX (sempre foi um mistério para mim, o que quer dizer esta cena do PBX), desesperadas por não conseguirem entrar em contacto comigo, decidiram telefonar para um vizinho (por acaso foi para o meu tio, teria sido mais inteligente, digo eu, ligarem para a vizinha do lado, a D. Anália, mas, se calhar, estiveram horas a fio a rir à gargalhada com o nome da senhora e tiveram medo de ligar e, por lapso, lhe chamar Orália) para requerer a minha presença urgente na secretaria.
Fui com a Milucha, no dia seguinte. "Não há mais vagas para arte & design. Vai ter que escolher outra coisa", anunciou uma professora de cabelo loiro platinado muito armado com laca.
Foi como se o mundo acabasse naquele instante: "Como não há vagas? Qual foi o critério? Já viu as minhas notas?". Nada do que eu aleguei a sensibilizou. O destino é assim, como a vingança, implacável.
Não era o fim do mundo. Só teria que optar por uma área, em definitivo, no décimo ano. Mas eu estava totalmente alterada:"Vai fazer perder-me um ano. Quando eu fôr uma grande artista, vai-se arrepender de me ter feito isto. Esta escola dá-se ao luxo de desperdiçar talentos", disse eu, com intenso dramatismo e soberba à professora, que começou a perceber, naquele instante, porque é que o meu apelido é Ralha.
"Então que vagas é que esta escola tem para mim?", atirei eu, mais conformada, mas com uma saliência que merecia umas boas reguadas nas mãos. "Há Economia e Saúde". "O quê?????" Mas eu lá tenho cara de quem quer ir para Economia ou Saúde???"
Passei-me outra vez, a coitada da minha ex-tia Milucha acho que nunca passou tanta vergonha na vida (mal sabia eu que, meia dúzia de anos depois, daria entrada na secção de Economia de um jornal, secção onde fui muito feliz, onde conheci o amor da minha vida e onde não precisava de escrever em blogues para me sentir útil e realizada).
"Também há música...", disse, baixinho a professora, com medo, naquela sala bafienta da secretaria, cujas paredes eram de um verde hospital.
"Ora é essa mesmo!", sentenciei eu, sem não antes rabujar: "Podia estar a fazer desenhos, a desenvolver os meus talentos artísticos, mas esta escola só me dá música. É isto mesmo."
A professora não percebeu o meu sarcasmo e decidiu vangloriar a minha escolha: "Ora, vai gostar muito. É uma professora velhinha muito querida".
Quando saímos da sala verde e começámos a descer a escadaria da entrada principal pensei: "O que é que eu fiz? Um ano com uma velhinha querida? Vou enlouquecer..." Mas eu já gostava de um bom faduncho na pré-adolescência. Aceitei os desígnios do destino e nessa tarde pus-me a ler na Bíblia a história de Job. Um ano com uma velhota querida não me impediria de ser uma grande pintora.
os horários saíram e as aulas de música eram às segundas e às quintas feiras. A turma de música tinha apenas nove macacos, cujos nomes eu já nem me recordo (estranhamente, recordo-me agora do nome elemento mais asqueroso dos nove maravilhosos, o José Carlos, tinha a cara minada de acne e um nariz que parecia um ângulo recto perfeito). Juntaram-nos, aos nove magníficos, à segunda turma de Saúde. Enquanto eles empinavam a pequena e a grande crculação, nós descobríamos Bach.
A sala de música é ao lado do ginásio do Rainha D. Leonor e por debaixo dos balneários das raparigas, num edifício separado. Era uma sala que cheirava a velha. As aulas de música começavam às 10 e acabavam ao meio-dia.
Naquela primeira segunda-feira, eu preparei-me psicologicamente para a velhinha querida. Mas ela não apereceu. Subiu as escadas um homem dos seus trinta anos, magrinho, cabelo escuro revolto (look acabado de acordar), vestido de preto.
Eu entrei em transe: "Onde é que está velhota?", pensava eu, enquanto ele andava com a sala de música às costas, a mudar secretárias de um lado para o outro, para fazer um semi-círculo de nove carteiras.
Apresentou-se: "Chamo-me António. António e não setôr. Vocês tratam-me por António, ok?"
Choque outra vez.
A custo, timidamente, começámos a tratá-lo por António, mas na terceira pessoa do singular. "Não, não, não. É António e é tu. Não quero cá você".
Naquela primeira aula, o António mostrou não ter os métodos pedagógicos de uma velhota querida. Estivemos a escutar o silêncio, sentados em círculo, no meio do chão. Ouvimos os ponteiros do meu Swatch Scuba, os pássaros, a nossa respiração, e eu até ouvi o bater do meu coração (tenho a certeza que a primeira arritmia que tive foi no dia em que conheci o António)
Mandou-nos comprar uma flauta Honner. Para trazer na próxima aula, quinta-feira.
Eu apaixonei-me pelo António assim que o vi.
Mas pela flauta não. Toda a gente conseguia soprar no instrumento (nada de interpretações nojentas, se faz favor), reproduzir alguma nota, menos eu. Não saía nada parecido com um dó, ou um ré. Um caso perdido, pensou o António. E eu também.
Mas esforcei-me tanto, tanto, tanto, (a minha mãe ficou sem tímpanos: trancava-me no quarto e praticava até à exaustão), que em menos de um mês era a coqueluche da turma e do António. Devorava pautas. Bach, Mozart, cantigas de Santa Maria, música medieval e tantas outras. Chegava às escadas da sala de música às oito da manhã para praticar. A aula era só às dez, mas o António vinha de Almada e, por isso, chegava sempre mais cedo. Estávamos ainda no primeiro período e ele disse-me, nas escadas, onde fumávamos cigarros juntos: "Diana, eu vou-te dar um cinco. Eu não te posso dar um seis, senão eu dava-te".
Nunca fui tão feliz na vida.
Foi o António que descobriu que eu sabia cantar (era uma melodia cantada em cânone, apenas com a palavra "tuemba", parecia magia, quando ambos descobrimos que eu tinha uma voz de anjo). Foi o António que me fez descobrir os Madredeus. Foi por causa do António que eu me aventurei a cantar, com 14 anos, para o Pedro Ayres Magalhães e que, nesse dia, disse a mim mesma, posso morrer agora (anos mais tarde, ao ouvir as variações Goldberg no Palácio de Queluz senti o mesmo), porque o PAM se emocionou, pediu-me para gravar uma demo para ele (ele tinha um banco de voz, que é um conceito lindo) e ainda hoje se lembra - referiu-o há tempos quando o Leonardo o entrevistou para o Indígena - da adolescente louca, que abriu a porta do elevador onde ele seguia (já tinha um qualquer fetiche com elevadores) para lhe cantar "A sombra".
Esta história não tem um final feliz.

Quando o final do ano lectivo se aproximou, o António perguntou-me se eu não queria ir para a Escola de Música de Almada, onde ele leccionava.
A minha mãe não deixou.
Não fui para Arte & Design no ano seguinte. Esqueci a pintura e fui para Letras - o quarto agrupamento -, que era o que me dava menos trabalho.
A única recordação que eu tinha, até hoje, do António, era uma foto, tirada no último dia de aulas, está ele em contra-luz, a arregaçar as calças nos tornozelos, e uma folha pautada de uma sebenta com o seu nome completo e a sua morada, que eu decorei há 12 anos: "António Ângelo Vasconcelos, Quinta de Santo António (e o resto não digo, não vá ele morar lá ainda)".

Mas, hoje ao almoço, duas pessoas de quem eu gosto muito magoaram-me quando me disseram que não vale a pena tentar. Que ou se tem ou não se tem.
E eu lembrei-me do António e das notas que teimavam em não sair da flauta Honner. E do "Diana, eu vou-te dar um cinco. Eu não te posso dar um seis, senão eu dava-te".
Eu não acredito em nada disso que vocês disseram.
E encontrei o António no Google. Por isso, obrigada, Dave. Obrigada, Maique.

Fantasma do Natal passado

De vez em quando, muito de vez em quando, dá-me a fúria das limpezas electrónicas, ponho um lenço imaginário na cabeça, muno-me da pá e vassoura binárias e decido fazer a faxina à caixa de correio do Outlook. E, então, tal como acontece, também muito de vez em quando, nos poucos dias do ano em que arrumo a minha carteira, encontro tesouros que pensava estarem perdidos para sempre.
No final da semana passada encontrei, no Outlook - o próprio Outlook estava a precisar de uma varridela: está cheio de teias de aranha, desde que o Gmail apareceu -, uma pasta escondida que se chama psicanálise. Tem lá muitas mensagens. Senti um nó cego no estômago ao ler uma das muitas dezenas de mensagens de uma amiga que perdi estupidamente, que dizia assim: "És o máximo, sabias?". Ela já não me acha o máximo, acha-me o mínimo, tento não pensar muito no assunto para não me entristecer, agarro-me com unhas e dentes à imagem do amigo que ganhei por causa dela, um amigo que estava mesmo aqui ao lado e que eu não vi.
Encontrei, também, outros dois mails, que, provavelmente, não apaguei só porque um dia os quero mostrar à Carolina, assim como há uma foto, que está escondida no Mac velhinho, que apelidei de "felicidade", há dois anos atrás. Tudo isto, para ela saber que nem sempre os pais foram amargos um com o outro.
Provavelmente, não devia reproduzir os mails aqui. Mas, o pai da minha filha não teve qualquer pudor em utilizar correspondência electrónica pessoal em Tribunal. Aqui vão e desculpem-me a piroseira. O fantasma do natal passado atacou hoje e eu tenho que fazer o exorcismo aqui na (T)ralha.

Subject: De repente, não mais do que de repente
seg 12-05-2003 16:39

Amora,
A gravidez não é um estado de graça; é mais um rodopio de ambiguidades.
No dia 23 de Março decidi acordar de um coma. Assim, de repente, não mais do que de repente, como na canção. As pessoas entram em coma - mesmo que se trate de um coma poético, como o meu - porque sofreram determinado traumatismo grave. Conheces perfeitamente porque é que, não decidindo morrer, optei por adormecer profundamente. Não foste o motivo do meu acordar - suponho que terá sido a doença da minha mãe, mas nem disso tenho a certeza -, mas foste a primeira imagem que vi assim que abri os olhos e pestanejei como há muito não fazia. Foste uma miragem lindíssima para quem estava habituada a não ver nada, a não esperar nada da vida.
És o pai do meu primeiro filho; estava escrito que serias o pai do meu filho e está muito bem assim.
Esta conversa não deveria ser por escrito. Eu sei e tu sabes que eu sou melhor a escrever do que a falar, mas não devia ser por escrito.
Não te amo. Estimo-te muito, gosto que nades nas profundezas do meu corpo, mas não te amo. Se te amasse querer-te-ia a meu lado todos os segundos do dia, ainda mais agora que estou grávida. E isso não acontece. Nem tão pouco estou com vontade de ir a baptizados e casamentos da tua família, apesar de gostar da tua mãe, dos teus irmãos e sobrinhos. Repara: há um pouco mais de oito semanas era um capote errante, uma escrava do prazer e, de repente, não mais do que de repente, estou grávida e gorda, tenho um namorado, uma sogra, cunhados e sobrinhos.
É demasiada pressão. Não estou a aguentar. Ontem, senti-me sufocada; se a tua mãe me tivesse pedido uma segunda vez o meu número de telefone, teria fugido a correr. Confesso que tive inveja da felicidade e plenitude da família feliz que ontem celebrava o baptizado dos seus filhos. E tive a certeza que nós nunca seremos assim, porque eu não quero ser assim.
Cheguei a casa e chorei angustiada por não amar o pai do meu filho, por não poder fruir da maravilhosa experiência que deve ser carregar no ventre uma feijoca de alguém que se ama. O que importa agora, porém, não sou eu nem tu: é o bébé. E mesmo esta conversa, que é importante, deixa de o ser por causa dele; só ele é que conta. Temos um pacto de honestidade. Praticamente o violava, mas queria ter a certeza destes sentimentos que agora escrevo e confesso.
Mudou muita coisa em pouco tempo - talvez seja esse o sentido do título do teu mail ("mudança") -, de repente, não mais do que de repente. O nosso filho é fruto de uma história muito bonita, quase uma história de encantar, daquelas de príncipes e princesas que acabam com "E viveram felizes para sempre". Acredito que a nossa história possa ter um final feliz. Não será, com certeza, nos moldes tradicionais. Pelo menos, por enquanto. Não sei o que os Deuses têm destinado para nós. Por alguma coisa nos uniram. Algum plano terão.


Subejct: O futuro
ter 13-05-2003 12:20

Diana;

Saí cedo da redacção, só vi o teu e-mail hoje. Fosse como fosse, escrever-te-ia entre hoje e amanhã.
Apesar de esperada, obviamente que a tua resposta é cortante. Cortante pelo conteúdo, cortante pela forma (que é tão bela). Gosto das coisas assim, gosto que sejas assim: directa, sincera, sem rodeios.
Resolvi tirar o espelho retrovisor do meu carro. Só quero olhar para a frente. Na minha dianteira, noutro carro, vai uma pessoa de quem gosto muito e que tem um autocalante que diz "cuidado, bébé a bordo". Esse bébé também é meu. Quero dar-lhe tudo. Contrariar a(s) história(s) familiar(es) -comuns- de pais que não têm uma relação saudável, que não são amigos.
Continuo a estar com a Mãe do meu filho para o que der e vier. Não quero perder uma consulta pré-Natal. Não dispenso saber de um sintoma de que o feijãozinho está a passar a gente de palmo e meio. A última coisa que pretendo é ser um Pai ausente. Quero ajudar-te no que precisares. Os moldes da relação serão inevitavelmente diferentes, mas nem por sombras apenas desejo ver-te nas consultas pré-Natal e em Dezembro.

E deixa-me dizer-te outra coisa: independentemente do bébé, sou teu amigo. Mantenho intacto o pacto de "amizade acima de tudo e depois de tudo" que fizemos um dia num belo jantar no Chapitô. O meu telefone não está disponível apenas para assuntos familiares... (leia-se, bébé).

Diana;

Só quero olhar em frente e ser construtivo. Temos um filho e esse desígnio é demasiado forte para nos perdermos em pequenas vaidades, orgulhos feridos e outras frivolidades.


NR: Mas perdemo-nos. Dois meses depois destas linhas, já estava tudo perdido.