Isaura de Jesus
Os meus mortos vieram-me visitar.
Da primeira vez que me doeu o coração - num primeiro dia de um ano da longínqua década de 80 -, uma dor tão forte que eu quase não conseguia respirar, a minha avó Zá esteve lá, no quarto dos fundos de um sexto andar na Praça Pasteur, até eu adormecer.
Quando tinha 16 anos e um pai maniaco-depressivo Brahman, de olhos muito azuis, a Isaura de Jesus feriu o olho direito com o espinho de uma rosa. Eu imagino a cena num enorme roseiral bravisco da Quinta das Canas, no Barreiro, mas não sei se se passou assim. A cicatriz, uma bolinha encarnada no branco do olho - que parecia mais branco ainda porque a Isaura de Jesus tinha uns olhos amendoados muito grandes e muito escuros -, ficou lá para sempre, como uma tatuagem.
Eu nasci com a mesma cicatriz no olho direito. Eu sou uma fotocópia da minha avó Zá.
Soube bem ser a favorita - as coisas estavam muito bem distribuídas na nossa família: a avó Tóia gostava mais do meu primo Hugo, o avô Ralha sempre se sentiu mais próximo do Leonardo, o avô Oliveira, magnânime, justo, não demonstrava de que neto gostava mais (eu arrisco que talvez fosse eu a menina dos seus olhos, mas talvez seja demasiada presunção e soberba).
A minha avó Zá inventou um verbo na língua portuguesa - o "princesar". Não o descobrirão, por certo, num exemplar da Porto Editora; faz parte de um compêndio de edição única que está em meu poder.
Quando chegávamos à Praça Pasteur (íamos lá com que regularidade?), o avô Ralha implorava para que não corrêssemos ou pulássemos, recordando o momento Jeunet em que a vizinha de cima, grávida de nove meses, irrompeu pelo tecto da sala. Ou melhor, quando as pernas da vizinha - a barriga travou a sua queda livre - se transformaram num estranho candelabro em movimento.
A avó Zá estava sempre sentada na sua cadeira de cabedal (no Inverno tinha os pés em cima de uma escalfeta), em frente ao bonito móvel onde estava exposta a colecção de vidros do meu bisavô Correia, às voltas com as suas traduções de fórmulas químicas. Levantava-se, baixinha, sapatos de cunha, abertos à frente, deformados pelos joanetes, cabelo totalmente branco, olhos pintados com um duo de sombras verdes da Mary Quant, perfume de madeiras da Lander e lançava: "Vamo-nos princesar!"
Os meus olhos sorriam. Esquecia as repetidas recomendações do avó Ralha de não corrermos pela casa e lá ia eu a voar até ao quarto. Abríamos a última porta do armário (as gravatas do avô Ralha estavam penduradas na porta), junto à cabeceira da cama, e ela deixava-me sempre abrir o baú onde estava o meu tesouro: uma caixa de plástico castanha escura, com tampa beige, onde a avó Zá guardava os "pechisbeques" com os quais eu me "princesava".
Colocava anéis de pedras semi-preciosas em todos os meus dedos, pérolas nas orelhas, colares, lenços na cabeça. Ficávamos horas naquilo.
Ainda hoje uso estas jóias (hoje trago no anelar da mão esquerda o anel de prata em forma de tronco), que não valem nada, mas são um dos meus maiores tesouros. Quando a Isaura de Jesus morreu, seis meses depois da avó Tóia, reclamei o meu tesouro.
Ela disse, repetidamente, quando estava a morrer, quando implorava para o meu avô terminar o seu sofrimento, mas ele só o prolongava, deitada do lado esquerdo da cama de casal do seu quarto verde, que todas as suas jóias (as verdadeiras) deveriam ser para mim. Nunca as vi. Não importa: os anéis que ela trouxe do Brasil estão comigo, o colar e a pregadeira de turquezas e zircónias também, guardadas na caixa castanha escura com tampa beige. (Gostava de ter a cadeira de cabedal, porém).
A avó Zá nasceu há 85 anos e um dia. O avô Ralha nasceu há 84 anos e um dia. Conheceram-se na faculdade - ela era melhor aluna do que ele -, casaram-se por procuração e isto sempre foi algo que me escapou: porque é que o Alberto José falhou o seu próprio casamento.
Partiu cedo demais. Teria sido ainda mais mimada do que sou, ter-me-ia amparado todos os golpes, como fez com o Zé Ralha.
A minha avó Zá esteve presente apenas nos meus primeiros quase sete anos de vida e incutiu-me o gosto pelas rosas trepadeiras braviscas e pelas lantanas, que me ensinou, desde muito cedo, que são venenosas.
Sempre que vou à Costa, deixo uma flor na Sant'ana, que tu mandaste eregir, há meio século atrás, quando o Zé Ralha nasceu, por milagre, depois de anos e anos sem conseguires ter filhos. O avô Ralha quis saber porquê, eu não lhe disse, mas é para ti, trago-te sempre no pensamento: os postais com gatinhos que enviavas para Viseu nas férias grandes, apesar de eu não saber ler, as bolachinhas que tendíamos na cozinha, os desenhos onde eu te retratava loira e ao avô Ralha com um chapéu de pasteleiro na cabeça, as pastilhas efervescentes de vitamina C com sabor a morango que nos davas sempre que iamos à Praça Pasteur.
Todos os dias, quando me olho ao espelho, vejo a minha avó Zá.
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