terça-feira, maio 03, 2005

Fantasma do Natal passado

De vez em quando, muito de vez em quando, dá-me a fúria das limpezas electrónicas, ponho um lenço imaginário na cabeça, muno-me da pá e vassoura binárias e decido fazer a faxina à caixa de correio do Outlook. E, então, tal como acontece, também muito de vez em quando, nos poucos dias do ano em que arrumo a minha carteira, encontro tesouros que pensava estarem perdidos para sempre.
No final da semana passada encontrei, no Outlook - o próprio Outlook estava a precisar de uma varridela: está cheio de teias de aranha, desde que o Gmail apareceu -, uma pasta escondida que se chama psicanálise. Tem lá muitas mensagens. Senti um nó cego no estômago ao ler uma das muitas dezenas de mensagens de uma amiga que perdi estupidamente, que dizia assim: "És o máximo, sabias?". Ela já não me acha o máximo, acha-me o mínimo, tento não pensar muito no assunto para não me entristecer, agarro-me com unhas e dentes à imagem do amigo que ganhei por causa dela, um amigo que estava mesmo aqui ao lado e que eu não vi.
Encontrei, também, outros dois mails, que, provavelmente, não apaguei só porque um dia os quero mostrar à Carolina, assim como há uma foto, que está escondida no Mac velhinho, que apelidei de "felicidade", há dois anos atrás. Tudo isto, para ela saber que nem sempre os pais foram amargos um com o outro.
Provavelmente, não devia reproduzir os mails aqui. Mas, o pai da minha filha não teve qualquer pudor em utilizar correspondência electrónica pessoal em Tribunal. Aqui vão e desculpem-me a piroseira. O fantasma do natal passado atacou hoje e eu tenho que fazer o exorcismo aqui na (T)ralha.

Subject: De repente, não mais do que de repente
seg 12-05-2003 16:39

Amora,
A gravidez não é um estado de graça; é mais um rodopio de ambiguidades.
No dia 23 de Março decidi acordar de um coma. Assim, de repente, não mais do que de repente, como na canção. As pessoas entram em coma - mesmo que se trate de um coma poético, como o meu - porque sofreram determinado traumatismo grave. Conheces perfeitamente porque é que, não decidindo morrer, optei por adormecer profundamente. Não foste o motivo do meu acordar - suponho que terá sido a doença da minha mãe, mas nem disso tenho a certeza -, mas foste a primeira imagem que vi assim que abri os olhos e pestanejei como há muito não fazia. Foste uma miragem lindíssima para quem estava habituada a não ver nada, a não esperar nada da vida.
És o pai do meu primeiro filho; estava escrito que serias o pai do meu filho e está muito bem assim.
Esta conversa não deveria ser por escrito. Eu sei e tu sabes que eu sou melhor a escrever do que a falar, mas não devia ser por escrito.
Não te amo. Estimo-te muito, gosto que nades nas profundezas do meu corpo, mas não te amo. Se te amasse querer-te-ia a meu lado todos os segundos do dia, ainda mais agora que estou grávida. E isso não acontece. Nem tão pouco estou com vontade de ir a baptizados e casamentos da tua família, apesar de gostar da tua mãe, dos teus irmãos e sobrinhos. Repara: há um pouco mais de oito semanas era um capote errante, uma escrava do prazer e, de repente, não mais do que de repente, estou grávida e gorda, tenho um namorado, uma sogra, cunhados e sobrinhos.
É demasiada pressão. Não estou a aguentar. Ontem, senti-me sufocada; se a tua mãe me tivesse pedido uma segunda vez o meu número de telefone, teria fugido a correr. Confesso que tive inveja da felicidade e plenitude da família feliz que ontem celebrava o baptizado dos seus filhos. E tive a certeza que nós nunca seremos assim, porque eu não quero ser assim.
Cheguei a casa e chorei angustiada por não amar o pai do meu filho, por não poder fruir da maravilhosa experiência que deve ser carregar no ventre uma feijoca de alguém que se ama. O que importa agora, porém, não sou eu nem tu: é o bébé. E mesmo esta conversa, que é importante, deixa de o ser por causa dele; só ele é que conta. Temos um pacto de honestidade. Praticamente o violava, mas queria ter a certeza destes sentimentos que agora escrevo e confesso.
Mudou muita coisa em pouco tempo - talvez seja esse o sentido do título do teu mail ("mudança") -, de repente, não mais do que de repente. O nosso filho é fruto de uma história muito bonita, quase uma história de encantar, daquelas de príncipes e princesas que acabam com "E viveram felizes para sempre". Acredito que a nossa história possa ter um final feliz. Não será, com certeza, nos moldes tradicionais. Pelo menos, por enquanto. Não sei o que os Deuses têm destinado para nós. Por alguma coisa nos uniram. Algum plano terão.


Subejct: O futuro
ter 13-05-2003 12:20

Diana;

Saí cedo da redacção, só vi o teu e-mail hoje. Fosse como fosse, escrever-te-ia entre hoje e amanhã.
Apesar de esperada, obviamente que a tua resposta é cortante. Cortante pelo conteúdo, cortante pela forma (que é tão bela). Gosto das coisas assim, gosto que sejas assim: directa, sincera, sem rodeios.
Resolvi tirar o espelho retrovisor do meu carro. Só quero olhar para a frente. Na minha dianteira, noutro carro, vai uma pessoa de quem gosto muito e que tem um autocalante que diz "cuidado, bébé a bordo". Esse bébé também é meu. Quero dar-lhe tudo. Contrariar a(s) história(s) familiar(es) -comuns- de pais que não têm uma relação saudável, que não são amigos.
Continuo a estar com a Mãe do meu filho para o que der e vier. Não quero perder uma consulta pré-Natal. Não dispenso saber de um sintoma de que o feijãozinho está a passar a gente de palmo e meio. A última coisa que pretendo é ser um Pai ausente. Quero ajudar-te no que precisares. Os moldes da relação serão inevitavelmente diferentes, mas nem por sombras apenas desejo ver-te nas consultas pré-Natal e em Dezembro.

E deixa-me dizer-te outra coisa: independentemente do bébé, sou teu amigo. Mantenho intacto o pacto de "amizade acima de tudo e depois de tudo" que fizemos um dia num belo jantar no Chapitô. O meu telefone não está disponível apenas para assuntos familiares... (leia-se, bébé).

Diana;

Só quero olhar em frente e ser construtivo. Temos um filho e esse desígnio é demasiado forte para nos perdermos em pequenas vaidades, orgulhos feridos e outras frivolidades.


NR: Mas perdemo-nos. Dois meses depois destas linhas, já estava tudo perdido.

1 comentário:

Anónimo disse...

é bom comer o tal peixe ao almoço de vez enquando (sublinhe_se o de vez enquando).

é impossivel viver colocando uma máscara na nossa sensibilidade e no que nos faria realmente felizes.

um beijinho d uma menina que nao a conhece, mas q gosta d por aqui passar