O Professor de Filosofia IV (a gaja agora só está a encher chouriços)
E, da mesma forma que, em 28 anos, se acumularam, empilhados no baú das tralhas imprestáveis e esquecidas, pronomes, substantivos, verbos e adjectivos que nunca se ouviram da boca ou dos dedos para fora, também é bem provável que, alguns de nós, por falta de tempo e, sobretudo, de transcendência, nunca tenhamos elaborado e, muito menos respondido, à pergunta com que o professor de Filosofia presenteou, de surpresa, uma turma de três dezenas de garotos com hormonas fervilhantes e peles oleosas – a sua maioria, vindos da Ameixoeira no autocarro 17, que já não estou certa que exista e que, se existir, ainda tenha este número – na aula de apresentação.
A aula de apresentação, aquela em que as caras são todas novas, em que não se pregou olho na véspera, em que, de manhã, pela enésima vez, se verifica se, no estojo de lata com bonequinhos japoneses, estão 15 canetas de cores e cheiros diferentes, em que os dossiers e os separadores cheiram a papel acabado de sair da Portucel, apresentando ainda um leve aroma de eucalipto, para os narizes mais treinados; as aulas em que, dificilmente, há já nomes decorados, a não ser os que são estupidamente invulgares, como Élvio (o word desconhece-o, sublinha a encarnado, mas a mãe gostava muito das baladas românticas do Elvis e o auxiliar da conservatória, o mesmo que impediu há pouco tempo a D. Nereida de passar o mesmo nome invulgar à filha recém-nascida, fechou os olhos, e bichanou entre os dentes, porque nunca soube assobiar, apenas bichanar, o Love me Tender quando guardava nos arquivos o assento de nascimento da pequena criaturinha que nasceu com seis dedos em cada mão e pé), Íris, ou Cidalina (ora aqui está outro que o Word assinala como gralha, deixa ver o da minha vizinha do lado: Anália, pois, para o programa da Microsoft, também não existe), em que se anda em pequenos grupos, aos apalpões, pelos corredores escuros, à procura das salas que nunca estão numeradas logicamente, ou, simplesmente, aqueles cinquenta e cinco minutos em que se preenchiam as fichas de aluno de cartolina, não tão rapidamente quanto seria desejável, e havia sempre quem se enganava, e isto se, calhar, era só a aluna aplicada e com dotes burocráticos – garantiam os testes psicotécnicos realizados com a psicóloga no ano transacto –, a implicar com os seus coleguinhas que sofriam de analfabetismo funcional.
Aulas de apresentação, ou seja, intervalos de 40 minutos passados no recreio de cimento, onde se fumavam, descaradamente, à frente das contínuas velhas de bata rosa velho para não destoar, os primeiros cigarros, roubados no dia anterior da carteira do mãe ou do bolso do pai só para dar estilo junto dos novos colegas. Mas, na aula de apresentação do professor de Filosofia, a missão para grande parte dos alunos era outra. Os pulmões não seriam enegrecidos, mas sim, desafiados numa tentativa de bater a velocidade da luz: ir num pé às Galinheiras encher o bandulho, e voltar no outro, até às traseiras da avenida de Roma, isto tudo em pé-coxinho, se se ia num pé e se voltava no outro, o que dificultava ainda mais a façanha.
As palavras, sorte a delas, não têm dilemas metafísicos – quem são, para onde vão, qual é o sentido da vida –, tudo isto lhes passa ao lado, não se deitam no divã do linguista com depressões profundas. Vivem a sua vidinha, simples, despojada, sem grandes pretensões a terem um cargo relevante no dicionário, não vão ao hospital, apesar de algumas serem autênticas múmias, gastas e velhinhas, e de haver palavras moribundas, que já ninguém usa.
Como “persiganga” (o Word franze o sobrolho, desconhece, na sua ignorância informática, o termo). O Google, verifico, só a refere 1720 vezes. Está em vias de extinção, confirma-se: o prognóstico é reservado.
Diz o senhor meu noivo, revisor tipográfico de alto gabarito e que fica de olhos em bico com os meus parágrafos intermináveis, que a última personalidade a utiliza-la frequentemente foi o Rodrigues Sampaio (1450 ocorrências no Google, está pior que a persiganga, pelo que é motivo de preocupação; se pesquisarmos, por exemplo, entre aspas, a expressão sexo com animais, temos 131 mil páginas disponíveis).
Persiganga não vem nos dicionários que tenho disponíveis no pasquim e que ninguém se dá ao trabalho de consultar, confiando no Word (gente naïf, não sabem quão matreiro pode ser o programinha, sobretudo se, como é o caso desta escriba que vos aborrece com divagações inúteis sobre palavras, estiver activado o “auto correct”). Persiganga morre com esta geração, provavelmente com a minha, mas, ainda assim, farei tudo para a passar à minha filha, mas não sei se com sucesso. “Carolina, se não fazes xixi no bacio vais parar à persiganga…” Vou começar hoje.
Há palavras de elite, as palavras não são democráticas, há algumas cujo acesso universal está vedado, e eu não entendo muito bem porquê, ou quem é que decide e define a lista nacional de vocábulos apropriados para a grande maralha e a outra, mais pequena, de palavras que pretendem exclusivamente a uma espécie de sociedade secreta.
Não me confundam, por favor. O meu vocabulário é limitado e eu não pago as quotas dessa associação de palavras difíceis, apesar de ter recebido convites de vários membros – só assim é que se entra, garantem-me. Quem me tira uma boa caralhada tira-me tudo, e nesse clube, calão não entra, é pecado.
Se, por um lado, ensinei ao meu irmão Leonardo, já andava ele a meio da faculdade, do alto dos meus púberes 16 anos, a palavra catarse (foi a única coisa que lhe ensinei na vida, isto vai comigo para a pira de cremação), já foi com a boca aberta e com um encolher de ombros, sinónimo de ignorância em estado mais puro, que ouvi dizer que, em tempos, se escreveu aqui no pasquim onde me vendo a 4,54 euros a hora, “catarse crística”, a propósito de não sei o quê, nas páginas da secção cultural. Paz à sua alma, do autor de tamanho palavrão, que fazia parte do gang das palavras que só se servem à mesa com toalhas de linho, talheres de prata, ou se escrevem a tinta permanente, em papel de 180 gramas por metro quadrado, idêntico a este onde escrevinho, um esboço de post, deitada na cama, de barriga para baixo, e com a mão direita a latejar da dor dos tendões inflamados. É que estas palavras raras não andam de avental no dia-a-dia, mas têm os seus rituais.
Sei perfeitamente as minhas limitações, dizia lá atrás, e até por as conhecer bem demais é que não consigo andar para a frente. Sorrio quando pedem: escreve um livro. Não tenho capacidades para tal, lamento.
O senhor revisor, esse sim, tem as quotas pagas a tempo e horas. E, por estar a seu lado, sem dar por isso, passei a guardiã da “persiganga”. E nisto, a casa está desarrumada, suja mesmo, com tabaco de enrolar espalhado por todo o lado (tinhas razão, João Pedro, os homens só são arrumadinhos e lavam a loiça nos três primeiros meses) e a estante está subitamente mais gorda, empilham-se dicionários de todas as marcas, línguas e formatos. E abrir uma página ao calhas de um dos três volumes do Houaiss, é confirmar a minha pobreza lexical. Escrever um livro… As coisas que vos passam pela cabeça…
Quando era pequenita, anos antes de me cruzar com o professor de Filosofia, não era fã dos cinco, nem dos sete, muito menos das aventuras da Isabel Alçada e Ana Maria Magalhães. Pousado, na mesinha de cabeceira, estava o dicionário de Português da Porto Editora. Devorava-o e era fascinante aprender novas palavras todas as noites, ao deitar. Pena ter perdido esse hábito nocturno autista para a feitura de diários que hoje não me atrevo a abrir.
Há palavras que não se usam. Outras que ainda não nos foram apresentadas, ou que nunca serão, tão longe que estão.
Os silêncios, diz a minha amiga Lyra, são a verdade mais cruel, porque contêm todas as palavras. A amiga Esquizo, que nem com terapia vitalícia ficaria curada da insegurança absurda de que sofre, está sempre a citar um escritor qualquer que eu nunca li (mais uma limitação minha, não ler em doses diárias recomendadas pela OMS), que me diz que há palavras que parecem beijos na boca. O primeiro post do Luís Gouveia Monteiro que li, e que não esqueço, dizia que quando se diz uma coisa matam-se todas as outras, que os silêncios eram os melhores amigos dos amantes.
Em tempos, enterrado nas coisas do arco da velha, escrevi neste blogue, um post para um indivíduo que vocês conhecem bem demais, que muitos zeros e uns fez correr neste blogue, e que devia lavar a boca com lixívia quando se refere ao meu amor por "parolo, que “a custo, num processo quase tão doloroso quanto prazeiroso, vou continuar a arranjar frases. Vou arranjar uma frase que te martele um mês inteiro na cabeça – quando abrires os olhos, de manhã, e quando os fechares, à noite, quando passeares pelas ruas da cidade e pelas ruelas da tua casa; uma frase que se cole à tua pele – e não vale a pena esfregares no duche com água quente, vai ficar grudada. Vou arranjar-te uma frase, ou três, porque só gosto de ímpares, daquelas que te prendem a mim para sempre, e um dia, com esforço, se me fizeres mal, arranjo-te uma frase que te amachuque, daquelas que ferem toda a gente.”
Passa-se o mesmo com as perguntas. As perguntas não são mais que palavras amontoadas (e as palavras não são ingénuas, não pensem nisso, comandam-nos, não somos nós que lhes damos ordens, não haja ilusões, as palavras são como os gatos que nos escolheram como donos e não nós como animais de companhia, e para demonstrar esta teoria, quantas vezes dizemos, não sei como disse aquilo, saiu-me da boca para fora…)
O Professor de Filosofia recolheu, uma a uma, as fichas de alunos já preenchidas, percorrendo como numa marcha militar, as cinco filas de carteiras
Estragou o almoço dos alunos da Ameixoeira. Escrevam numa folha e entreguem-me a resposta a: O que é pensar?
[9157 caracteres, porque as palavras são mesmo assim, como as cerejas]