quinta-feira, agosto 31, 2006

O Professor de Filosofia IV (a gaja agora só está a encher chouriços)

E, da mesma forma que, em 28 anos, se acumularam, empilhados no baú das tralhas imprestáveis e esquecidas, pronomes, substantivos, verbos e adjectivos que nunca se ouviram da boca ou dos dedos para fora, também é bem provável que, alguns de nós, por falta de tempo e, sobretudo, de transcendência, nunca tenhamos elaborado e, muito menos respondido, à pergunta com que o professor de Filosofia presenteou, de surpresa, uma turma de três dezenas de garotos com hormonas fervilhantes e peles oleosas – a sua maioria, vindos da Ameixoeira no autocarro 17, que já não estou certa que exista e que, se existir, ainda tenha este número – na aula de apresentação.
A aula de apresentação, aquela em que as caras são todas novas, em que não se pregou olho na véspera, em que, de manhã, pela enésima vez, se verifica se, no estojo de lata com bonequinhos japoneses, estão 15 canetas de cores e cheiros diferentes, em que os dossiers e os separadores cheiram a papel acabado de sair da Portucel, apresentando ainda um leve aroma de eucalipto, para os narizes mais treinados; as aulas em que, dificilmente, há já nomes decorados, a não ser os que são estupidamente invulgares, como Élvio (o word desconhece-o, sublinha a encarnado, mas a mãe gostava muito das baladas românticas do Elvis e o auxiliar da conservatória, o mesmo que impediu há pouco tempo a D. Nereida de passar o mesmo nome invulgar à filha recém-nascida, fechou os olhos, e bichanou entre os dentes, porque nunca soube assobiar, apenas bichanar, o Love me Tender quando guardava nos arquivos o assento de nascimento da pequena criaturinha que nasceu com seis dedos em cada mão e pé), Íris, ou Cidalina (ora aqui está outro que o Word assinala como gralha, deixa ver o da minha vizinha do lado: Anália, pois, para o programa da Microsoft, também não existe), em que se anda em pequenos grupos, aos apalpões, pelos corredores escuros, à procura das salas que nunca estão numeradas logicamente, ou, simplesmente, aqueles cinquenta e cinco minutos em que se preenchiam as fichas de aluno de cartolina, não tão rapidamente quanto seria desejável, e havia sempre quem se enganava, e isto se, calhar, era só a aluna aplicada e com dotes burocráticos – garantiam os testes psicotécnicos realizados com a psicóloga no ano transacto –, a implicar com os seus coleguinhas que sofriam de analfabetismo funcional.
Aulas de apresentação, ou seja, intervalos de 40 minutos passados no recreio de cimento, onde se fumavam, descaradamente, à frente das contínuas velhas de bata rosa velho para não destoar, os primeiros cigarros, roubados no dia anterior da carteira do mãe ou do bolso do pai só para dar estilo junto dos novos colegas. Mas, na aula de apresentação do professor de Filosofia, a missão para grande parte dos alunos era outra. Os pulmões não seriam enegrecidos, mas sim, desafiados numa tentativa de bater a velocidade da luz: ir num pé às Galinheiras encher o bandulho, e voltar no outro, até às traseiras da avenida de Roma, isto tudo em pé-coxinho, se se ia num pé e se voltava no outro, o que dificultava ainda mais a façanha.

As palavras, sorte a delas, não têm dilemas metafísicos – quem são, para onde vão, qual é o sentido da vida –, tudo isto lhes passa ao lado, não se deitam no divã do linguista com depressões profundas. Vivem a sua vidinha, simples, despojada, sem grandes pretensões a terem um cargo relevante no dicionário, não vão ao hospital, apesar de algumas serem autênticas múmias, gastas e velhinhas, e de haver palavras moribundas, que já ninguém usa.
Como “persiganga” (o Word franze o sobrolho, desconhece, na sua ignorância informática, o termo). O Google, verifico, só a refere 1720 vezes. Está em vias de extinção, confirma-se: o prognóstico é reservado.
Diz o senhor meu noivo, revisor tipográfico de alto gabarito e que fica de olhos em bico com os meus parágrafos intermináveis, que a última personalidade a utiliza-la frequentemente foi o Rodrigues Sampaio (1450 ocorrências no Google, está pior que a persiganga, pelo que é motivo de preocupação; se pesquisarmos, por exemplo, entre aspas, a expressão sexo com animais, temos 131 mil páginas disponíveis).
Persiganga não vem nos dicionários que tenho disponíveis no pasquim e que ninguém se dá ao trabalho de consultar, confiando no Word (gente naïf, não sabem quão matreiro pode ser o programinha, sobretudo se, como é o caso desta escriba que vos aborrece com divagações inúteis sobre palavras, estiver activado o “auto correct”). Persiganga morre com esta geração, provavelmente com a minha, mas, ainda assim, farei tudo para a passar à minha filha, mas não sei se com sucesso. “Carolina, se não fazes xixi no bacio vais parar à persiganga…” Vou começar hoje.
Há palavras de elite, as palavras não são democráticas, há algumas cujo acesso universal está vedado, e eu não entendo muito bem porquê, ou quem é que decide e define a lista nacional de vocábulos apropriados para a grande maralha e a outra, mais pequena, de palavras que pretendem exclusivamente a uma espécie de sociedade secreta.

Não me confundam, por favor. O meu vocabulário é limitado e eu não pago as quotas dessa associação de palavras difíceis, apesar de ter recebido convites de vários membros – só assim é que se entra, garantem-me. Quem me tira uma boa caralhada tira-me tudo, e nesse clube, calão não entra, é pecado.
Se, por um lado, ensinei ao meu irmão Leonardo, já andava ele a meio da faculdade, do alto dos meus púberes 16 anos, a palavra catarse (foi a única coisa que lhe ensinei na vida, isto vai comigo para a pira de cremação), já foi com a boca aberta e com um encolher de ombros, sinónimo de ignorância em estado mais puro, que ouvi dizer que, em tempos, se escreveu aqui no pasquim onde me vendo a 4,54 euros a hora, “catarse crística”, a propósito de não sei o quê, nas páginas da secção cultural. Paz à sua alma, do autor de tamanho palavrão, que fazia parte do gang das palavras que só se servem à mesa com toalhas de linho, talheres de prata, ou se escrevem a tinta permanente, em papel de 180 gramas por metro quadrado, idêntico a este onde escrevinho, um esboço de post, deitada na cama, de barriga para baixo, e com a mão direita a latejar da dor dos tendões inflamados. É que estas palavras raras não andam de avental no dia-a-dia, mas têm os seus rituais.
Sei perfeitamente as minhas limitações, dizia lá atrás, e até por as conhecer bem demais é que não consigo andar para a frente. Sorrio quando pedem: escreve um livro. Não tenho capacidades para tal, lamento.
O senhor revisor, esse sim, tem as quotas pagas a tempo e horas. E, por estar a seu lado, sem dar por isso, passei a guardiã da “persiganga”. E nisto, a casa está desarrumada, suja mesmo, com tabaco de enrolar espalhado por todo o lado (tinhas razão, João Pedro, os homens só são arrumadinhos e lavam a loiça nos três primeiros meses) e a estante está subitamente mais gorda, empilham-se dicionários de todas as marcas, línguas e formatos. E abrir uma página ao calhas de um dos três volumes do Houaiss, é confirmar a minha pobreza lexical. Escrever um livro… As coisas que vos passam pela cabeça…
Quando era pequenita, anos antes de me cruzar com o professor de Filosofia, não era fã dos cinco, nem dos sete, muito menos das aventuras da Isabel Alçada e Ana Maria Magalhães. Pousado, na mesinha de cabeceira, estava o dicionário de Português da Porto Editora. Devorava-o e era fascinante aprender novas palavras todas as noites, ao deitar. Pena ter perdido esse hábito nocturno autista para a feitura de diários que hoje não me atrevo a abrir.

Há palavras que não se usam. Outras que ainda não nos foram apresentadas, ou que nunca serão, tão longe que estão.
Os silêncios, diz a minha amiga Lyra, são a verdade mais cruel, porque contêm todas as palavras. A amiga Esquizo, que nem com terapia vitalícia ficaria curada da insegurança absurda de que sofre, está sempre a citar um escritor qualquer que eu nunca li (mais uma limitação minha, não ler em doses diárias recomendadas pela OMS), que me diz que há palavras que parecem beijos na boca. O primeiro post do Luís Gouveia Monteiro que li, e que não esqueço, dizia que quando se diz uma coisa matam-se todas as outras, que os silêncios eram os melhores amigos dos amantes.
Em tempos, enterrado nas coisas do arco da velha, escrevi neste blogue, um post para um indivíduo que vocês conhecem bem demais, que muitos zeros e uns fez correr neste blogue, e que devia lavar a boca com lixívia quando se refere ao meu amor por "parolo, que “a custo, num processo quase tão doloroso quanto prazeiroso, vou continuar a arranjar frases. Vou arranjar uma frase que te martele um mês inteiro na cabeça – quando abrires os olhos, de manhã, e quando os fechares, à noite, quando passeares pelas ruas da cidade e pelas ruelas da tua casa; uma frase que se cole à tua pele – e não vale a pena esfregares no duche com água quente, vai ficar grudada. Vou arranjar-te uma frase, ou três, porque só gosto de ímpares, daquelas que te prendem a mim para sempre, e um dia, com esforço, se me fizeres mal, arranjo-te uma frase que te amachuque, daquelas que ferem toda a gente.”

Passa-se o mesmo com as perguntas. As perguntas não são mais que palavras amontoadas (e as palavras não são ingénuas, não pensem nisso, comandam-nos, não somos nós que lhes damos ordens, não haja ilusões, as palavras são como os gatos que nos escolheram como donos e não nós como animais de companhia, e para demonstrar esta teoria, quantas vezes dizemos, não sei como disse aquilo, saiu-me da boca para fora…)

O Professor de Filosofia recolheu, uma a uma, as fichas de alunos já preenchidas, percorrendo como numa marcha militar, as cinco filas de carteiras

Estragou o almoço dos alunos da Ameixoeira. Escrevam numa folha e entreguem-me a resposta a: O que é pensar?


[9157 caracteres, porque as palavras são mesmo assim, como as cerejas]

terça-feira, agosto 29, 2006

E, agora, para algo completamente inovador

Ciclópico
Biltre

Duas palavras que eu nunca tinha escrito na vida.
Já está e, de facto, há sempre uma primeira vez para tudo.
Certamente, lembrarei, para todo sempre, se continuar com esta capacidade incrível de guardar insignificâncias no lado esquerdo do meu cérebro, que as escrevi recorrendo apenas aos deditos da mão esquerda, já que a direita, hoje, decidiu fazer greve de tendinite.

sexta-feira, agosto 25, 2006

O professor de Filosofia III (a saga que não acaba nunca)

Chamemos-lhe, então, Carlos Pedro (porque eu não consigo continuar a chamar-lhe o professor de filosofia… ou consigo?), com a certeza, porém, que essa não era e não será, certamente, hoje em dia, a sua graça, a menos que o professor de filosofia tenha cometido um crime grave nestes 14 anos em que perdemos o contacto, ou que alguém o tenha cometido por ele sem pedir licença de apropriação da sua identidade.
E, talvez por isso, porque já não era um jovem e inofensivo pedagogo que se recusava ver televisão (sendo este o seu acto de maior rebeldia da sua vida), mas sim, um psicopata de várias faces, vários rostos e vários nomes, ou porque, se calhar, tal como eu, o professor de filosofia veio ao mundo com um tê na testa marcado a tinta invisível e, a certa altura, estava tão farto de receber na caixa do correio notificações da Divisão de Investigação Criminal e da PJ para prestar declarações nos casos mais estapafúrdios dos quais não tinha qualquer intervenção, responsabilidade ou contributo a dar às investigações, simplesmente, porque não tinha estado lá, ou então, podemos ainda ir mais longe, e, seguindo este raciocínio, conjecturar que o que motivou o professor de filosofia a mudar o seu nome foi o facto de já não existiam paredes suficientes, na sua casa que antes era orgulhosamente estéril e desprovida das coisas terrenas, para pendurar nem mais um termo de identidade e residência indevido, por processos que nunca lhe chegavam a manchar o cadastro, porque eram sempre arquivados pelo Ministério Público por falta de provas – e os magistrados já suspiravam sempre que o chamavam, e pediam desculpas em adiantado pela maçada e perda de tempo.
Talvez por isto, e isto é só uma hipótese, tão estapafúrdia como os crimes estranhíssimos que perfeitos estranhos podem ter imputado ao professor de filosofia, este pobre homem, objector de consciência (nem à inspecção militar foi), tenha dado corda aos sapatos e aventurado a uma visita a um bairro de má fama no centro da cidade, e tenha comprado um novo nome. Carlos Pedro, disse ele, a uns romenos que vendem BI’s fresquinhos e, até, os novos passaportes electrónicos, numas águas furtadas dos Anjos. Carlos Pedro para não ter mais chatices, e até os deixou escolher o sobrenome à sorte, num sorteio com papelinhos dentro de um saco de plástico com cheiro a erva de fazer rir.
Ou, talvez, nada disto se tenha passado e ele continue com o nome que a sua mãe escolheu e que o seu pai ditou à notária que só se dava ao trabalho de fazer uma caligrafia bonita aos seres que tinham acabado de nascer e que ainda não desconfiavam como seria dura a sua vida (quando averbava um casamento, ainda se esforçava, a caligrafia ainda era cuidada, apesar de só ter amarguras para contar acerca desse sacramento, nódoas negras que escondia sobre a roupa de estampados floridos – usava sempre roupas floridas, gostava de ser como as flores –, mas, nos divórcios, não trazia o mata-borrão e, então nos óbitos, era a sua letra mais corriqueira e desleixada que ficava impressa no certidão), talvez este naco de texto sirva apenas para fazer render a saga professor de filosofia que, ao que me está a parecer, não vai acabar por aqui, porque eu ainda nem cheguei nem aos subúrbios daquilo que quero contar, ou, vai-se lá saber, se calhar até acertei e ainda vou a tempo de ir preencher um euro milhões à papelaria da Fontes Pereira de Melo.
De uma coisa tenho a certeza: o professor de Filosofia tinha dois nomes próprios. E apresentou-se assim aos alunos do nono ano, quarta turma, da Escola Secundária Rainha D. Leonor. Carlos Pedro era um nome duro. E ele estava sempre em sentido, muito tenso (e tinha um belo rabo, desculpem-me os mais pudicos pelo acrescento). A aluna da franja encaracolada (todos nós temos coisas que nos envergonhamos; eu tive franja) começou a analisar o professor de filosofia naquele preciso instante. O tratamento pelos dois nomes próprios só poderia ser fruto de uma educação militar. Não podia ser o Carlos ou o Pedro simplesmente, estava sempre de alerta, como se tivesse feito um qualquer disparate e esperasse o grito: “Carlos Pedrooooooo!”.
Ela acertou. Foi educado nos Pupilos do Exército. Quando, um trio de anos mais tarde, o encontrou a cumprir serviço cívico na biblioteca da escola, por se ter recusado a ir à tropa, ela aflorou, ingenuamente a questão: “Mas, se passou a vida nos pupilos… Porque aceitou este castigo, de ser despromovido de professor a bibliotecário, professor?”. E ele encolheu os ombros e foi à procura do livro que ela precisava para o trabalho de História.


(só um aparte: hoje, antes de entrar no grande edifício da bófia, no Porto de Lisboa, ergui os olhos para o céu de nortada, e disse, em voz alta, já basta de surrealismos, já basta, mas afinal não bastava, e ao que parece, segundo a queixosa, eu sou um homem, e ameaço pessoas na A8 que me fazem sinais de luz à traseira do Idea com armas de calibre desconhecido)

Continua. Só ninguém sabe é quando acaba.

segunda-feira, agosto 21, 2006

Diálogo de quase despedida, a dois dias de acabar três meses de fisioterapia intensa por cima das rótulas dos joelhos

Então, Diana, sente-se melhor dos joelhos?
Nem por isso, Irma, mas isto foi muito agradável, gosto sobretudo da corrente eléctrica sobre as rótulas, bem, e já vou no segundo Saramago... E isso é obra. Coisa que eu demorei cinco anos a fazer. Obrigada e até para o ano, quando eu aparecer aí à porta com o primeiro joelho costurado a linha de seda (e aí, vou ler que autor?)

domingo, agosto 20, 2006

Fui a um casamento hoje,


de uma menina ruiva, com cara de boneca de porcelana fina.
À porta da sua casa repousava um ás de copas.
Como não choveu, porque São Pedro não queria o guichet cheio de reclamações em pleno Agosto - os querubins também preferem este mês para descansar e o expediente acumula-se em pilhas e pilhas de nuvens até Setembro -, enviou esta carta dos céus, de madrugada, logo quando o sol nasceu, para abençoar a boda.
Haverá melhor augúrio?

Todos os dias, saio de casa e faço por olhar com olhos de ver.
É a chave da felicidade.

A quem possa interessar, ontem, encontrei, na esplanada do Luanda, a senhora professora Gertrudes Maria, que não via há 22 anos. Lembrou-se de mim: era aquela que desenhava muito bem. Estive para lhe dizer que agora sou aquela que escreve muito bem, que se enganou no meu talento, mas, de facto, ela não teve tempo para o avaliar. Apenas me ensinou os nomes das letras e dos números e a desenhar xis que mais ninguém desenha. Sorriu quando lhe disse que ainda hoje escrevo assim os xis. A professora da sala seis, a sala em frente à da senhora professora Gertrudes Maria, anuiu: Sim, ensinavas assim os xis. As coisas que ela se lembra. E nada de extraordinário acontece?

sexta-feira, agosto 18, 2006

Pax


Pax, com um ano e picos, menos de dois dias depois de ter ressuscitado da sua primeira torção gástrica com dilatação (coisa de milagre, o estômago já estava em gangrena), e há dois anos, com a Carolina, muito pequenita, com nove meses, na casa antiga.

Aniversário do Pax e daquele que foi o primeiro a saber que eu seria uma grande escritora

Foi por um triz.
Ai, Esqueci-me dos anos do Pax! As coisas que me surgem assim do nada depois do jantar, quando um dos últimos cigarros do dia me queima o lábio inferior que tem uma ferida, como um calo, que nunca sara (e às vezes, devo-o assustar, estou certa que, desta vez, o assustei, não pelos anos do Pax, mas pelo que veio a seguir…)
E tal foi a comoção da deslembrança (existe esta palavra? O word diz que não, mas eu não quero repetir a palavra esquecimento e a preguiça é muita para ir catar o dicionário de sinónimos a alguma secretária desarrumada de jornalista, e encontrar outra diferente que queira dizer o mesmo, e tenho que dizê-lo, é tão estúpido, que tenho que o dizer, é só mais uma linha, não deseperem: há três linhas atrás quando escrevi word, ó santinho, o nome do dito cujo, ele também o sublinhou a vermelho, sofre de amnésia, não sabe quem é, está desorientado, é natural, ando para aqui às voltas, não faz ideia, também, para onde vai – sossega, programa filho de Bill Gates, eu também não, anda meio mundo nessa incerteza…), que raio de dona sou eu, que raio de mãe sou eu, perguntava ainda ontem, também, por me ter esquecido de verificar se a minha filha dormia em paz, o coração bateu tão forte, apertado lá na caixa onde está. Que até inflacionei a idade do bicho em um ano, qualquer coisa como 365 dias.
O Pax é o cão, o grand danois manhoso que eu fui buscar a Ponte de Rol há cinco e não seis anos, no primeiro dia do mês de Agosto. Ele veio numa caixa de papelão, quatro quilos de cachorro que não se tinha ainda nas patas, uma doçura, coisa de anúncio de papel higiénico (não comeces, não comeces, isto é um esforço desumano para não desviar o assunto, mas porque é que os anúncios da indústria farmacêutica são tão maus? Agora, todos os dias, deito-me uma hora numa caminha da fisioterapia e, para além de Saramagos – sacana do comuna é bom -, leio, também, a imprensa de saúde e afiro que a publicidade dos grandes gigantes farmacêuticos deve ser feita pelas filhas dos directores que “tinham jeito para o desenho quando eram pequenitas”), era mais pequeno que o Rolf (e vocês não sabem quem é o Rolf, mas eu conto, é que ser mais pequeno que o Rolf é uma façanha: o Rolf é um podengo anão de pelo cerdoso, propriedade da senhora minha mãe, o primeiro cão que ousou pôr a pata em casa de gatos, na altura em que nasceu, era o exemplar nº 97 registado no Clube Português de Canicultura), uma semana depois já era maior, mas não interessa, quando se encontram, o Rolf ainda pode latir qualquer coisa como: eu lembro-me quando tu eras um caga tacos que não se tinha nos quartos traseiros, por isso, bolinha baixa, matulão, que eu tenho idade para ser teu pai.
A imagem que se guarda na memória, a primeira, depois guardam-se muitas outras e algumas não são boas – num outro dia, dei boleia ao Gustavo da Praia das Maçãs até às Olaias, e com o trânsito parado ao longo do IC 19 disse: a única vez que enlouqueci foi por causa dos cães –, é esta: bola de pelo preto e focinho empapado de Nestum, lá atrás, no banco do Twingo, e o Pedro não veio comigo, provavelmente, se tivesse trocado uma tarde de trabalho árduo no ministério da Saúde, pelo passeio de auto-estrada até Torres Novas, também não se teria apercebido que o indivíduo que vende candeeiros de latão e cães de raças gigantes, era um charlatão de primeira, que me vendeu gato por lebre, por assim dizer, esquecendo o aparte de estarmos a falar de canídeos e não de felinos, muito menos leporídeos (isto foi o senhor 50.000 que me ensinou; eu sou limitada em termos de vocabulário…). Temos um híbrido, uma mutação genética, exemplar único de uma nova raça ainda sem estalão, que dá pelo nome de grand labrador (eu explico: corpulência de grand danois e pelo de labrador).
O cão, que recebeu o nome de baptismo de uma ex-ministra da Saúde, que não fosse ter abandonado o cargo uns tempos depois, antes de a besta pesar 60 quilos distribuídos em 1,80 metros de altura, o teria pedido emprestado para meter medo aos sindicalistas da classe médica, ficou sentido, tive a certeza disso quando perguntei: que dia é hoje? 16. Ai, foda-se - sai-me sempre o calão nestas alturas -, e levantei-me num pulo do sofá laranja, que ainda não seja meia-noite, pedi ao Deus do Tempo, do Pax já não me posso redimir, ó tempo volta para trás, e tu, canitchone, perdoa a tua dona, mas olha, já nem vou ao talho do senhor Vieira, aliás, o que será feito do senhor dos olhos lacrimejantes, casado com uma mulher com traços suínos (que apropriado, um talhante casar com alguém que reúne características físicas semelhantes às das febras e costoletas que o seu facalhão corta como se fossem feitas de manteiga), e, por isso, já vês: não te podia ter levado uma tíbia de vaca de presente, com um lacinho de cetim. E nisto, a moldura do Pax com seis meses, de boca aberta a bocejar, como quem diz “WHAZZZUPPPPPP?????” caiu da prateleira, e, caraças, ele está mesmo zangado, tenho que arranjar, pelo menos um fémur de vaca para ele me perdoar, mas eram 23:13 e eu suspirei de alívio e pude dizer parabéns ao amigo de sempre, ao amigo para sempre.
Isto de ter um telemóvel baixo de gama, cuja performance mais espectacular é ter uma lanterna que alumia no escuro, é o que o salário dá para pagar, azarinho do caraças, faz com que estas lembranças à última da hora valham palladium (vocês também, decerto, não sabem o que é palladium e eu também não saberia se não tivesse sido jornalista de economia durante anos a mais, quase me toldou o cérebro o feito, mas depois, posso fazer estes brilharetes e outros do género, perfeitamente inúteis – estais rodeados de palladium, ficai sabendo: o processador do vosso computador deve levar um bocadinho pequeno deste metal precioso, e vós, companheiros da ortodontia, vós também tenhais palladium na boca, certamente).
Não tenho a mão da tecnologia a auxiliar-me a memória. Este amigo, que quer que eu abandone o domínio blogspot e migre para o domínio da sua empresa de telecomunicações (só se me pagarem muito bem é que mudo, lamento, a vida é mesmo assim, e já que ninguém, à excepção da esquizo, me quis comprar um conto por um conto, tenho que fazer render este peixinho), foi o primeiro a ler os meus posts, no tempo em que não havia blogs. Semanalmente, enviava-lhe o “mote da semana”. Tem-los guardados, assim como os cartões de Natal que lhe desenho todos os Dezembros, os únicos que desenho (também tenho jeito para a coisa, e o meu avô até foi bastonário da Ordem dos Farmacêuticos, olha que gaita, porque é que não me pagam para fazer anúncios a comprimidos?), e os milhares de caracteres que escrevi, estão num ficheiro protegido com password, chamado Amelices. Deixem ver se me lembro ainda da password (só um momento)… Sim, lembro ainda, e nesta fase, há quatro anos atrás, as minhas palavras-passe não eram palavrões. Foram 65.000 caracteres muito bonitos que não vou reproduzir aqui, são dele, quando eu morrer, ele que os publique, se quiser, se eu for alguém na vida, que consiga vender um décimo dos exemplares da Margarida Rebelo Pinto. Ele que espere sentado, porém, porque eu não vou ser mais do que a jornalista maluca que escreve posts de sete mil caracteres sobre o professor de Filosofia, cujo nome foi roído pelos peixinhos de prata, sem contar, aos 15.000 caracteres de texto, porque raio este homem a marcou, e ele sempre acreditou que eu seria uma grande escritora, e eu sempre acreditei, também, que ele seria quem é hoje, mais que não fosse, devia, pela confiança que depositou nestes dedos, escrever qualquer coisa que tivesse princípio, meio e fim.

7.229 caracteres – BINGO!
(daqui a umas horas, finalmente, o último capítulo do professor de filosofia)

quinta-feira, agosto 17, 2006

Nada mais me apetece dizer

a não ser que,

tenho uma bandoleta na cabeça, com uma auréola de penugens de pato posicionada a meio do meu cocuruto, que me obrigou a fazer a seguinte ressalva ao vizinho do primeiro andar: eu tenho uma auréola de anjo na cabeça mas não estou maluca, é da minha filha (e não é, que coisa feia é mentir, que importa o que ele pensa, nem acredito que pus as culpas no anjo loiro que dormia ao colo do 50.000, e ela deve fazer de propósito, adormecer no carro, para não ter que subir a penantes a escadaria de Santa Marta),

os meus dentes estão azuis turquesa e prateados, tenho estrelinhas na mandíbula inferior, diz o senhor 50.000, que é como quem diz a uma criança que ainda tem pouca maldade, que ela tem um sorriso metálico, sim, novamente, vá lá que a senhora não teve o desplante de cobrar a sua burrice, e um ano e três meses depois de me ter libertado da ditadura do titânio, só espero voltar a emagrecer (para já, o jantar ficou no prato - a carne, também, estava dura como solas de sapatos da Inditex cosidos à mão por crianças de Felgueiras, a culpa nem foi do aparelho, ainda só sinto uma moinha irritante, um arrastar dos dentes teimosos do sítio onde sempre foram felizes, para o sítio onde eu quero que eles se mudem de armas e bagagens até que as cáries e as gengivites os separem) e que achem que eu sou uma miúda outra vez, ou, pelo menos, que tenho os 28 anos que efectivamente tenho (continuo a dizer que tenho 26, parei aí e não é por mal),

e o ortopedista da CUF, saído do casting do ER (é parecido com o Luka, mas o Luka é mais bonito, e hoje, particularmente, não sei se por me estar a explicar como me cortaria os músculos das pernas, não o achei tão encantador, estava assimétrico hoje, o senhor doutor, um olho mais acima que o outro, ele a apalpar-me os joelhos e eu concentrada na assimetria, sem retirar prazer nenhum naquilo, e a pensar, será tudo isto produto da minha imaginação, será que a recepcionista com cara de palito de fósforo também existe ou eu tenho mesmo que deixar as drogas, mas depois a rótula saiu de sítio e eu esqueci as divagações todas acerca da minha lucidez, da simetria e da estranha forma de cara da outra, e concentrei-me em entoar um sonoro camandro), lamentou profundamente, mas vai ter que fazer ponto de cruz nas minhas duas pernas – deixe-me casar com os joelhos intactos, pedi eu, e ele, que não usa aliança, sorriu e disse, O casamento faz milagres, quem sabe se não fica curada, e ainda me passou pela cabeça dizer um disparate a despropósito, mas sorri, ainda sem aparelho nos dentes.

quarta-feira, agosto 16, 2006

O professor de Filosofia II

Feitas as contas, coisa que sempre gostei de fazer, apesar de ter fugido da matemática como o Diabo foge da cruz (e isto também me dana, quase tanto como me ter esquecido do nome dele, ter-me juntado à carneirada que teima que a matemática é para os marrões), duas professoras na primária, uma média de dez professores até ao fim do ensino secundário, e uns quinze por ano no superior, isto dá, vamos lá ver, 142 prof’s, mais coisa menos coisa. Não é desculpa para me ter esquecido. É imperdoável, dou voltas à cabeça, e até já liguei à única pessoa que mantenho contacto desde essa altura, mas ela era do clube dos que não achavam piadinha nenhuma ao pedante (eles não saberiam, quer na altura, quer agora, o que quer dizer pedante, chamar-lhe-iam, no máximo “armado em esperto”) professor de filosofia.
Parece-me que foi com ele que eu me armei em fina, larguei para trás o horroroso “setôr” e adoptei o chamamento de “professor”. Estas coisas de como se deve chamar aos poços de conhecimento que verteram para mim parte do seu saber, abala a minha frágil existência há muito tempo.
Na primeira e segunda classe, a mulher de cabelos cinza-violeta que me guiou a mão num quadro macio e amanteigado de ardósia, e me ensinou a fazer uns “d’s” maiúsculos muito bonitos e uns “x” capitulares como mais ninguém faz, além de me ter passado alguma informação inútil e que colocaria os encarregados de educação vermelhos de cabelos em pé, acaso existissem comunas no Bairro de Alvalade – havia uma grande comunidade hindu, lá isso havia, e com as letras do abecedário e as contas de somar e diminuir, aprendi nomes como Vishnu, Minashri e Pritesh, e outros que apaguei dos registos da memória para arranjar espaço para outras coisas, num processo semelhante ao que faço com o telemóvel baixo de gama, todos os dias, para receber mais sms do meu amigo filósofo, aliás, voltando atrás e pedindo, antecipadamente desculpa pelo desvio sinuoso, brancos havia poucos e com que cor tivéssemos nascido, a verdade é que apresentávamos, sem excepção, um ar miserável e macilento (os mais miseráveis eram os gémeos falsos, Carla e Carlos, muito pequeninos e enfezadinhos), e basta-me vasculhar na poeira dos caixotes do passado e dar uma vista de olhos na tradicional foto de turma, recordação do ano lectivo 1984-85, ano em que a estrela de Floribella estava a nascer, leio ao mesmo tempo no 24 horas (façanha inacreditável, esta, de escrever posts com vida própria e dar uma espreitadela no diário de referência que me informa, com direito a chamada de primeira página, que Merche Romero mandou tirar o bidé da sua mansão e estou totalmente de acordo, porque o monte de porcelana não serve, de facto, para nada), para constatar que nós, branquelas que morávamos num subúrbio chique, éramos uma minoria, no fundo da Estados Unidos, onde agora há o prolongamento até Chelas, havia uma favela, mas lá comunas não devia haver, porque a senhora professora Gertrudes Maria ensinou-nos as linhas de comboios das antigas colónias e ninguém se queixou, nem foi para a televisão chamar a senhora de fascista –, e ela pôs, preto no branco, na primeira aula dentro da sala cinco da escola primária do Bairro das Estacas (o coitado do arquitecto Ruy Authouguia não descansa em paz, lá onde quer que esteja – desconheço se ainda é vivo, aliás -, pelo que a merda das marquises fizeram ao seu inovador bairro, construído respeitando todos os princípios da Carta de Atenas), aula essa em que se armou em bruxa e adivinhou que a minha cor favorita era o roxo (eu fiquei mesmo assustada quando ela me disse isso ao ouvido, tinha cabelo cor-de-bruxa e pintava os olhos com sombra verde-velha, era ligeiramente assustadora, apesar do sorriso enorme, só mais tarde, caramba, muito mais tarde, é que a Magui me explicou que eu pintava tudo a roxo, daí a aferição simples da pedagoga, e isto do roxo lembra-me outra professora, na faculdade, muito machona, que insistia que a cor da minha camisola era lilás e eu corrigia sempre, dizendo, é roxo, professora, é roxo), que assim que pusesse um pé na sala, devíamos levantávar o rabo da cadeira e dizer em uníssono, Bom dia, senhora professora Gertrudes Maria.
E isto nem teria tido importância, a formalidade no trato, se, no fim da segunda classe, as minhas adoradas avós não tivessem morrido em escadinha, seguindo-lhe os passos, o meu querido avô Oliveira, e a Magui não me tivesse, por força das circunstâncias, enfiado no Externato do Aeroporto. Entrei na aula, em silêncio, a professora apresentou-se como Ana Paula e eu disse: Prazer, senhora professora Ana Paula. E ribombou pelas paredes acima um coro de gargalhadas infantis, é que, ali, naquele colégio, os professores eram tratados pelo nome próprio, apesar da distância de um você aqui e além, e eu não sabia, ninguém teve a delicadeza de me avisar, e a minha estreia foi desastrosa (cedo incumbi a minha fértil imaginação de contar histórias horríveis às minhas novas amigas, de como no outro "colégio" - ai de mim que dissesse que vinha de uma escola pública, era linxada num instantinho -, se usavam meninas dos olhos e outras torturas pedagógicas, das quais, usar uniforme e chamar o professor por senhor professor eram migalhitas, e feito este esforço criativo, passei a ser respeitada por aquela maralha de putos queques, que, no final da quarta classe me chamavam "mão de ferro" - parece que eu tinha a mão forte na resposta aos apalpões do menino David Coito (este nome, foi-me impossível de esquecer, apesar de na altura não me dizer nada, foi o Zé Ralha que me explicou que queria dizer queca, e muitas vezes penso se ele não assinará, hoje em dia, com o mais afortunado, de certeza, apelido da mãe).
E isto também não teria tido uma importância por ali e além, se o Zé Ralha não tivesse voltado para casa e eu, desgraçada, mais uma vez, sem saber como chamar o indivíduo durante meses e meses a fio. Evita-se o chamamento e ponto final e, se o trato por você, a culpa é do Bernardo, não é da avenida de Roma, porque, na tarde em que nos conhecemos, tarde demais para dois irmãos se conhecerem, brincávamos por debaixo da mesa de vidro e eu perguntei: como é que tu lhe chamas? A quem? A ele, o nosso pai. Chamo-lhe Pai. Mas não o tratas por tu? Não, trato por pai.
E, depois, ainda veio o António, o professor de música que já teve direito a post autónomo neste blogue, que obrigava a sua enorme turma de destemidos nove alunos que haviam escolhido música como opção no nono ano, ao invés de optarem pela segurança da disciplina saúde ou economia, a tratarem-no por tu.
Esta baralhação toda deu cabo de mim, decidam-se lá como é que querem ser tratados, que maçada incrível, e o último amoque que me deu foi com o meu primeiro editor, Pedro Camacho, actual director da Visão, que eu apenas consegui tratar por tu quando se foi embora do pasquim. Foste como um pai para mim e eu trato o meu pai por você, por causa de uma pergunta feita debaixo de uma mesa de vidro, expliquei-lhe eu, numa das muitas vezes em que o chefinho suplicava para que eu o tratasse por tu.

(continua, há-de continuar, não tenham medo que isto vai acabar ao terceiro capítulo, acho eu, não posso prometer nada, mas não sei o que me deu para partir posts em fascículos da Planeta Agostini, se calhar, é um novo estilo literário, e o meu mais que tudo, que não comenta nada sobre este blogue, nem na caixa de acrílico que acolhe as vossas sugestões e apupos, nem lá em casa, na cozinha encarnada que agora tem uma escrivaninha também de madeira cor de sangue, estilhaçou-me há pouco o coração, ao sugerir que devo partir os meus intermináveis parágrafos, com infindáveis travessões e parêntesis, com uns enter's, para a malta não se perder. Sniff)

terça-feira, agosto 15, 2006

O professor de Filosofia I

A gente habitua-se a tudo, a fazer piquetes de polícia – olá, boa tarde, daqui fala a Diana Ralha, jornalista, há alguma desgraça na cidade, ou está tudo em paz, agora que a temperatura desceu, e com ela, talvez os níveis de ozono no ar, tenham voltado a níveis aceitáveis? Ahhh, coitado, acabou de chegar de férias e leva logo com uma jornalista curiosa arraçada de gato, pois, fui criada com eles, a páginas tantas, a Magui tinha mais de seis dezenas de bichanos lá em casa, passaram-me esta coisa da curiosidade, mas, olhe, aqui para nós que ninguém nos ouve, eu até largava mão da curiosidade, se eles me emprestassem umas vidas que tivessem para lá aos caídos, sem uso…Desculpe lá qualquer coisita, eu sei que somos todos uma cambata de chatos, não, não quero saber como apanhou isso com uma prostituta do Intendente, mas tenha a bondade de me auxiliar, como diz o outro ceguinho do metro, hmmm, veja lá isso, já sabe como é, vivemos de desgraças, se tiver uma boa notícia, olhe que eu também a publico… (Espera) O quê? Profanaram quatro túmulos no Cemitério dos Prazeres… (silêncio) Sim, há gente para tudo, realmente, mas, de facto, os mortos não precisam das jóias no caixão, não vão a lado nenhum, e a vida está difícil, lá isso está… –, a demorar mais de uma hora (quatro euros e cinquenta e quatro cêntimos pagos, hoje, a triplicar pela entidade patronal, porque é feriado pela ascensão da nossa senhora aos céus – aleluia para ela, e que não se coíba de repetir a façanha mais umas quantas vezes ao ano e de coincidir as datas com as minhas escalas de piquete, se não der muito trabalho) a confirmar uma linha de uma notícia sem interesse, que tem que ser escrita dê lá por onde der, por razões que são perfeitos dogmas inquestionáveis. O hábito faz o monge, e já quase nem custa fazer obituários a prédios demolidos por bulldozers no coração da cidade, reconstruída pelo saudoso Marquês de Pombal (quando é que ele me reencarna para acabar com as marquises galinheiro de Lisboa? E já agora, permitam-me reproduzir aqui, uma mensagem bonita que eu encontrei na necrologia do Correio da Manhã da semana passada, de um marido que não contratou as mensagens padronizadas da Servilusa: “Já lá vão seis meses e a saudade é cada vez maior. As lágrimas são quase diárias, como quase diárias são as visitas que te faço, levando-te as flores que tanto gostavas. Até quando Deus quiser. Bonito, extremamente bonito, e eu estive quase a ir à Igreja de Nossa Senhora do Carmo, no Alto do Lumiar, para estar presente nesta missa e, com esta mensagem, acreditei novamente que não sou louca e que não perco o meu precioso tempo, quando começo os dias, com uma vista bastante exaustiva nos classificados de toda a imprensa diária, à procura de algo belo), e até se engole – a custo, vá – o facto de um ofício interno aconselhar jornalistas a passarem a ir de metro para os serviços, porque o táxi está caro e os jornais cada vez se vendem menos (e eu ofereço quatro exemplares aos desgraçados dos transeuntes que me respondem aos inquéritos diários idiotas que são publicados na página 2 do Local Lisboa e ai de mim se o meu director sabe disto, põe-me de castigo por andar a aumentar os custos da empresa, que ideia tonta a minha, para que é que a gente quer mais quatro leitores e, para o ano, em vez de me avaliar a 90 por cento, baixa ainda mais significativamente o seu juízo, mas, também, nem faz mal, já está tudo perdido, de qualquer forma: no mapa de férias que está aqui afixado à minha esquerda – o lado onde está o coração e, por isso, dói mais, é como os pelos da perna e da axila esquerdas, manhosos, arrancam sempre mais uns gritos guturais de dor do que os da metade direita de mim –, sou a funcionária com a categoria mais baixa deste piso e, “they can’t take that away from me”, como diz uma bela canção que eu gosto de cantarolar – e este é, talvez, o momento em que eu devia calar os dedos, diria o meu paizinho blogueiro e, se calhar, a Ana Sá Lopes também, por estar a arriscar demais, mas também vos digo: antes, portava-me mal, barricava-me na casa-de-banho, e dava-me sempre bem…).
O que me dana mesmo, mesmo, aquilo a que não me vou acostumar nunca, nem que uma manada de vacas tussam e com as tosses reproduzam a nona sinfonia de Beethoven, é não me conseguir lembrar do nome do professor de Filosofia do nono ano.
(continua, há-de continuar, vamos ver onde é que isto nos vai levar...)

quinta-feira, agosto 10, 2006

Provocação

Como ninguém diz nada - porra, dez mil caracteres (alguém leu aquilo até ao fim???) dão para três dias sem postar, não? -, como eu fico triste quando não aparecem mails a jorrar no Gmail, resolve-se assim o problema: escrevo um parágro (coisa inédita, neste blogue de palmo e meio e ganso - isto é gíria de quem jogava ao "guelas" no recreio e sonhava com abafadores irisados, guardados como preciosidades em frascos de vidro), e aparece uma surpresa no mail dos mails. E isto lembra-me uma história que comecei a escrever num centro comercial, num guardanapo de papel que não era, mas que se transformou em papel vegetal - está comatoso há muitos meses, não fala, não come, está para lá aos caídos -, sobre um homem que era tão solitário, tão solitário, que a sua única companhia era a sua bicha solitária amestrada, e que, quando ela estava a dormir e ele não tinha com quem falar, escrevia os posts e os comentários do seu próprio blogue, e depois disso, puxava do tabuleiro de xadrês e jogava contra si mesmo - e qual fosse o resultado, ganhasse ele, ou ele, ficava sempre irado por não ter ganho.
Vou comprar bifes. Nem me vou dar ao trabalho de abrir o mail e saber se está aí alguém.

terça-feira, agosto 08, 2006

A não ser que seja milagre

A não ser que…
E nesse instante, ela largou os talheres no prato sem cautela, e o barulho metálico do inox sobre a porcelana e do a não ser que trepou pelas paredes acima, fazendo várias vezes ricochete na parede falsa de pladur pintada de laranja-labareda, e fixou o olhar algures entre o copo soprado para o molde pelos mestres vidreiros da Marinha Grande – pensou neles, aliás, 50 graus pelas oito da manhã, 50 graus pelas oito da noite, queimaduras nos braços, a pele muito esticada das cicatrizes e, como recompensa, a humilhação do desemprego – e a embalagem de 500 mililitros de emoliente dermatológico para peles atópicas, que lhe custou nada mais, nada menos, do que 4,54 horas de árduo trabalho de escriba numa redacção de um jornal diário (bela capicua, pensou ela agora, enquanto escrevia estas linhas e fazia as contas salário/ hora no seu telemóvel Nokia baixo de gama, mas doía-lhe tanto receber à hora menos do que uma empregada doméstica; aos poucos, tentava assimilar que há trabalhos sujos que alguém tem que fazer e que, nem por isso, são bem pagos, mas isso não lhe trazia conforto nenhum, apenas uma vontade enorme de mandar tudo às urtigas, e ficar à espera da urticária monstra da plantinha que alguns comem na sopa).
E depois, mordeu o lábio inferior, estranhamente, baixou o olhar, em vez de o erguer ao tecto estucado sobre o tabique onde mulheres que, em tempos idos, foram homens, recebem homens de aspecto másculo ao domicílio em colchões manchados de várias amostras de sémen que dariam muitas dores de cabeça ao Horatio do CSI se tivesse que investigar um crime num prédio de 100 anos em Santa Marta, e, ao mesmo tempo, fez um contorcionismo difícil de replicar com a sobrancelha direita, encolheu ligeiramente os ombros, num misto de vergonha e perfeito estado de incredulidade, e sorriu para ele, o anjo de cabelos dourados, que jantava ao seu lado direito.
E os olhos ficaram brilhantes, pudera, encharcaram-se, encharcaram-se na mesmíssima proporção de há umas semanas atrás, quando uma mulher de olhos meigos e verdes, chamada Natália, lhe colocou um véu de tule branco sobre a cabeça (e a madrinha Teresa, antevendo a choradeira, disse qualquer coisa com graça e ela soltou uma gargalhada do fundo do seu ser – e que saudades tinha ela da madrinha, onde anda a madrinha?).
Apenas quem foi tocado, mesmo que ao de leve, por um milagre, por uma graça pedida de joelhos, ou com lágrimas descontroladas a descerem a alta velocidade pelo escorrega improvisado nas bochechas ou nas maçãs do rosto, àquele que é dono dos céus, é que sabe do eriçado da pele que a percorreu, pela espinha acima, até à ponta dos seus longos cabelos, e no sentido inverso, acabando com uma coceira impossível, um mini-choque eléctrico, no dedo mindinho da perna direita (a mais comprida; a mão direita era, também, muito maior que a esquerda; já no pé, a assimetria revelava-se à esquerda – os cabelos brancos, esses, ainda camufaldos por uma tinta muito escura, abundavam do lado inverso ao do coração).
Sentiu esse arrepio tantas vezes, tantas vezes (está a escrever este parêntesis com pele de galináceo despenado, prestes a entrar no tacho, e a transformar-se em canja rica). Ainda há pouco tempo, a 50.000 visita deste blogue, inchou-lhe a fé a proporções que até fazem mal à saúde. Mas há milagres todos os dias: libelinhas na casa-de-banho, santas que a acordam de madrugada e a guiam, pelo escuro de divisões muito velhas e sem esquadria que lhes valha, até às chamas de um fogo que não chegaram a ser notícia de imprensa. E há, até, coisas menos insólitas, mas que ninguém repara, é uma doença comum, uma conjuntivite mutante: olhos colados no pára-brisas, ou no volante do carro que anda a ser pago em 60 pesadas prestações mensais, impedem que se veja o belo.
Um balão cor-de-rosa passeou-se pelas seis faixas de rodagem da avenida da Liberdade, e ela como sempre na faixa do Bus, oito anos de carta à espera da multa e ainda nada, tem mania das grandezas a miúda, meteu na cabeça que é um autocarro, que presta serviço público ou coisa parecida, e o balão bate na chapa suja do Idea e lá se lhe eriçou a epiderme magoada por duas imensas manchas vermelhas de uma alergia que ainda não foi detectada a causa do prurido.
Milagres...
Ela fazia por não cantar sequer. Cantarolava, isso não controlava, saía-lhe pela boca fora. A toda a hora, no duche, a lavar a loiça, a cozinhar, a escrever notícias e postadas intermináveis. Sabia tantas letras de músicas, quantas a memória de um Ipod de 60 gigas consegue guardar. Mas cantar, colocar a voz e cantar, deixou de o fazer há muito tempo, enterrou esse milagre. Era melhor assim. Não queria mais saber. Fumava cigarro, atrás de cigarro, com uma vontade enorme que as cordas vocais se enferrujassem e se incapacitarem de reproduzir o som dos anjos, escrito pelos Deuses.
O ar-condicionado, porém, era uma grande invenção. As janelas andavam sempre fechadas graças ao ar condicionado, e quando ela vem da clínica de fisioterapia surreal, onde os doentes em reabilitação óssea ou muscular, têm que subir e descer uma enorme escadaria, mete-se no carro e ruma para o jornal, e passa entre um minuto e meia hora à caça de um lugar de estacionamento em Picoas, e nesse curto espaço de tempo pode cantar à vontade que ninguém a escuta.
Isto acontece-lhe muitas vezes. Compulsões musicais. Repeat one até ao limite da exaustão mental. O DN lançou há tempos, à semelhança do seu pasquim, uma vasta colecção do senhor Amadeus, pela ocasião da passagem do quarto de milénio do seu nascimento (ou morte?).
Ela recusa-se a dar dinheiro ao patrão, porém. Faz as compras no Lidl e no Carrefour. Nunca põe os pés no Modelo ou no Continente (irá, voluntariamente, quebrar o embargo, porque os supermercados do senhor Belmiro têm à venda uns lençóis muito bonitos, a replicarem os naif lenços dos namorados).
Comprou um disco, da colecção do DN, por 3 euros e 75 cêntimos, de composições do menino Amadeus. Do menino Amadeus literalmente. Mozart enquanto criança (e pobre papá Leopoldo, deve ter sido um choque, que dois dos seus filhos – porque é que ninguém fala da Nannerl Mozart? – tivessem mais talento do que ele à tenra idade de seis anos).
Ouve-o sempre, todos os dias, quando sai da fisioterapia (são rotinas de prazer), e sabe que aquilo que os seus tímpanos estão a escutar e a enviar para o cérebro, é obra de um milagre. Gosta da Missa solene em dó menor e gostava de saber qual é o timbre do senhor que canta Agnus Dei qui tollis peccata mundi, miserere nobis. E canta por cima dele, salvo seja, por cima da voz dele (está melhor assim, para não haver equívocos), de vidros fechados, com o ar condicionado ligado, mas outro dia, estava no semáforo, na Tomás Ribeiro, em frente ao Picoas Plaza, a queimar um Davidoff Gold entre o indicador e o pai de todos, entusiasmou-se e esqueceu-se que o vidro estava aberto.
Do Fiat Punto do lado, soaram palmas e ela arrancou o mais depressa possível assim que a luz passou para a cor que os daltónicos não distinguem, com o coração aos pulos e a pele de galinha. Não a lembrem que sabe cantar, se faz favor. Todas as suas frustrações nascem-lhe na garganta.
No outro dia, puta da criancinha, repete ela, com a voz que se ouve, ou com aquela que só ela ouve dentro da cabeça, ao ouvir o Apollo et Hyacinthus K38, composto aos nove anos de idade pelo menino Amadeus, puta da criancinha, e os pelos, todos os pelos do seu corpo em sentido, sempre, sempre, é coisa de milagre, por mais que oiça, dá-lhe vontade de chorar, e a sua mãe outro dia ficou preocupada com uma revelação: Sempre que oiço isto, penso numa grande matança, mamã, ao melhor estilo siciliano, rajadas de metralhadora a limparem o sebo a quem se portou mal, e a sua progenitora, disse: mas é tão bonito, e ela acabou a conversa: gostava de morrer ao som desta. Nove anos de idade, e há mais tempo, há dois ou três meses, mais uma vez o vidro aberto no semáforo, e o senhor do lado, de boca aberta a ouvir-lhe a voz e os olhos a cantarem também, bateu no carro da frente e outra vez, prego no fundo, toca a fugir dali, não lhe lembrem dos milagres que poderiam sair da sua boca. (Fica para outra vida.)

[Quer saber como eu componho? Posso dizer-lhe apenas isto: quando me sinto bem disposto, seja na carruagem quando viajo, seja de noite quando durmo, ocorrem-me ideias aos jorros, soberbamente. Como e donde, não sei. As que me agradam, guardo-as como se tivessem sido trazidas por outras pessoas, retenho-as bem na memória e, uma após a outra, delas tomo a parte necessária, para fazer um pastel segundo as regras do contraponto, da harmonia, dos instrumentos, etc. Então, em profundo sossego, sinto aquilo crescer, crescer para a claridade de tal forma que a obra mesmo extensa se completa na minha cabeça e posso abrangê-la de um só relance, como um belo retrato ou uma bela mulher... Quando chego neste ponto, nada mais esqueço, porque boa memória é o maior dom que Deus me deu. Disse W.A. Mozart, cortesia da Wikipedia e se quiserem saber como eu escrevo, a resposta foi dada por ele há coisa de dois séculos e meio]
Uma noite, como todas as outras, em que não dormia, em que não comia, em que se sentava de pernas cruzadas no sofá laranja, a embalar um exemplar do melhor que se faz na Macintosh, a bebé que já trauteia Apollo et Hyacintus do banco de trás do Idea, gemeu. O corpo estava coberto de manchas vermelhas, horríveis. Ecezema atópico, diagnosticaram. Cortisona atrás de cortisona, o prurido não passava, matava o sono de quem está, seguramente, mais próximo de Deus. Ela sentou-se na cama. Pegou o anjo ao colo e embalou-o durante muito tempo. E pediu. Os males do mundo, os males do mundo não precisam de ficar agarrados à pele de porcelana da minha filha. Eu troco com ela. Eu troco com ela, repetiu , enquanto a embalava.
No gabinete claro da alergologista, o espanto tomou conta das feições da especialista demasiado nova para ser aqui descrita como especialista. Nunca teve, em criança, eczema atópico? Não. Nunca tive qualquer problema dermatológico, nem borbulhas na adolescência. Esta doença não se revela na idade adulta, passa na idade adulta, insistiu ela. Nunca tive.
E só mais tarde, horas depois, olhar pegado algures entre o copo da Marinha Grande e a embalagem de emoliente para peles atópicas é que ela disse “A não ser que seja milagre”.

domingo, agosto 06, 2006

Recado para a esquizo

Sabes, Esquizo, o texto está lindo, guardei-o em draft, é daqueles de sete palmos acima da terra, que ganhou vida própria (é um fado, esta coisa de ter textos e dedos desobedientes e insubordinados), mas eu tenho que respirar, aceitar que a vida pode mudar a qualquer instante, sem eu ter feito nada. Se calhar, basta mesmo um bater de asas de borboleta nos Antípodas do mundo para nada ser jamais como era.
Este Domingo, em Alcobaça, uma mulher foi regada com gasolina pelo marido, à porta de casa, que depois acendeu um fósforo e a imolou. Ficou a assistir ao churrasco, e depois, diligente e respeitoso cobriu-a com um cobertor para ela não ter frio. Achou que nunca mais ia conseguir comer carne assada na vida, olha, e foi para casa, e enforcou-se.
Mas pior que isso, amiga, foram as duas famílias de Amarante que ficaram desfeitas pelos braços de um eucalipto, que já estava pronto para morrer de pé, lá do alto dos seus trinta metros de altura. Ninguém gosta de eucaliptos, e eu, depois deste fim-de-semana miserável, onde começou o regime de adaptabilidade do meu contrato de trabalho (hoje tirei fotografias à falta de fotógrafos, amanhã estarei a lavar latrinas, ou se calhar a fechar o jornal e a escrever editoriais e ir à Sic Notícias com os meus melhores sapatos), se calhar, não parto jamais em sua defesa (lamento os campos de concentração de eucaliptos da Portucel, isso vou sempre lamentar e chorar talvez)
Pararam o carro. Estenderam as mantas de piquenique por debaixo da sombra enorme do eucalipto. Podiam ter parado 50 metros à frente, mas não. Foi ali, ali, onde em tempos, nós iamos em grupo, com o tio Manuel e com o Tio Zé, a Magui e o Filipe Sena, ver passar os carros do Rally de Portugal. E eu tinha muito medo, medo que eles nos atropelassem, subíamos a uns pedregulhos e o tio Manuel levava a Leica do meu avô Oliveira numa mão e o fotómtero noutra. E eu não me lembrava nada disto, daquele terror dos motores dos carros decorados com autocolantes a guincharem em altas rotações, até à porta-voz do Seara me dizer que o acidente foi na recta onde passava o Rally.
Um vento mais forte afagou a árvore e ela derreteu-se com o carinho, os ramos secos e cansados de estarem erguidos ao céu partiram-se, caíram por cima daquelas pessoas e uma mulher morreu e há um bebé de seis meses no Santa Maria que vai morrer também.
A vida muda assim, isto acontece todos os dias, e neste momento, deitada nas urgências do Amadora-Sintra, a alma que escolheu o local, o exacto local onde tinha que acontecer aquela tragédia, pergunta-se porque é que não parou 50 metros à frente, ou 50 metros atrás. Como eu. Não posso publicar um texto bonito, se calhar dos mais bonitos que já escrevi (é um texto sobre um milagre), num dia em que um verdilhão morreu às seis da manhã, e em que eu reduzi três vidas que se perderam, que já não estão cá, a menos de três mil caracteres de folha de jornal.
Perdoa.

quinta-feira, agosto 03, 2006

Tenho uma escrivaninha na cozinha e não sei o que lhe fazer (e que tal escrivaninhar?)

L1060543

Gestora de património e a teoria da linha de montagem

No dia seguinte, fui à Baixa da Banheira e à Amora e, se não estou em erro, passei pelo Seixal e pela famosa terreola que dá pelo nome – atreito a trocadilhos parvos – de Coina.
Nesse dia, fui gestora de património – mais uma profissão acima dos dois mil euros, do rol de muitas outras que pretendo experimentar nos próximos meses – e, quando era miúda, preenchia a ficha de aluno, como todos os alunos que se sentavam, no início de todos os Setembros, em carteiras rabiscadas a x-acto e com pastilhas gorila coladas por debaixo do tampo, detalhando o nome dos meus pais, a morada, o telefone, as medidas do meu corpo, os distúrbios psicológicos diagnosticados na família nas últimas três gerações, o rendimento médio mensal do agregado familiar, os títulos nobiliárquicos herdados, as ambições para o futuro, e nessa folha de papel, com uma fotocópia de uma fotografia tipo passe colada com cuspo, os professores anotavam apenas as faltas e as classificações dos testes, e nunca as singularidades da personalidade dos seus pupilos (se eu fosse professora traçaria um perfil detalhado de cada um dos meus alunos: Ana Rita Santos, rói as unhas e lê com a ajuda do indicador direito – deve precisar de óculos, chamar o encarregado de educação; João Pedro Oliveira, excelente aluno, tímido e comum tique nervoso com a perna, puxar mais por ele nas aulas, tirá-lo do silêncio, dar-lhe oportunidade para fazer uns brilharetes; Isabel Sampaio e Melo, tetraneta do Marquês de Pombal; os pais puseram-na na escola pública porque têm a mania da inclusão social e até pensam em comprar um T10 ou uma moradia em Chelas; Zélia Silva, sonhadora, detesta ser sempre a última da turma, mas este ano até gosta de ser a número 33), e no espaço reservado à profissão da mãe, eu vacilava, chamava o docente erguendo o indicador ao ar, e explicava, discretamente, que a Magui tinha prédios, era isso que fazia na vida, e, sem pachorra, eles ligavam o descomplicómetro da menina Diana, ainda sem saberem que ela seria a melhor aluna da turma, e diziam que a profissão da sua mãe era doméstica, mas eu não ia na conversa e inventei a profissão de proprietária.
Levo jeito para a coisa, para gestora do património da proprietária. Pela primeira vez na vida, houve delegação de competências da matriarca para a filha mais nova (o filho mais velho, teria tido uma síncope no decorrer do processo, e teria deixado o pato-bravo, que compra e vende apartamentos em guettos da margem sul – e eu a pensar dizer-lhe: “senhor Fortes, penso que faria mais dinheiro se recuperasse casas em Lisboa”, mas resolvi não gastar o meu Latim com ele, é um caso perdido, o senhor 50.000 poupa as palavras, todos se queixam dos seus silêncios, mas eu começo a aprender com ele, e quando usava aparelho nos dentes, falava menos porque o titânio fazia-me aftas nos lábios e não me fez mal nenhum estar caladinha –, forrar as paredes das casas-de-banho e cozinha de um apartamento que se quer de luxo, em Alvalade, de azulejos de gosto duvidoso, imitações baratas, mesmo muito baratas, a rondarem os cinco euros o metro quadrado, de pedra mármore verde esmeralda, rematadas por barrinhas com frutos e utensílios de cozinha).
Não é, pois, um trabalho fácil. Não é para qualquer um. Suportei o calvário de percorrer mil e quinhentas ruas apadrinhadas de 25 de Abril e 1 de Maio, e pior, muito pior que isso, a “road trip” pela margem sul do Tejo, incluía, sem encargos acrescidos, um mostruário ao vivo de todos os tipos de marquises possíveis e imaginárias, dos vários artífices serralheiros da região.
Eu tenho uma teoria, que geralmente aplico ao vestuário, mas que é excelente para as caixilharias de alumínio que transformam o que, outrora era uma varanda, numa marquise, que há coisas que nunca deveriam ter ido parar à linha de montagem. Penso nisso, sempre que vejo uma jornalista que tem a mania que as calças “à pirata” amarelas são o último berro da moda e que está convencida que lhe ficam a matar, ou em relação a todos os modelos de calças de cintura subida, afunilada nos tornozelos.
E abro a boca de espanto quando vejo combinações de vestuário que não lembram ao menino Jesus, bolas com riscas, acessórios espalhados no corpo, inspirados na árvore de Natal que se monta no dia 1 de Dezembro de cada mim, é que, para mim, e de acordo com a teoria Ralha da linha de montagem, aquelas peças nunca deviam ter sido produzidas, nenhuma criança as devia ter costurado na China ou em Felgueiras, muito menos, era de esperar que uma alma (mesmo que penada, ou panada, ou empenada) a tivesse comprado, alimentando uma cadeia interminável de aberrações visuais. E é assim com 99 por cento das marquises. Mostrem-me uma aceitável (aceitável, atenção, que nem peço nenhuma obra de arte) e eu monto um espectáculo de pirotecnia.
A cozinha vai ser laranja e branca e as casas-de-banho, cinza-claro e encarnadas. No fim, o pato-bravo, garantiu à proprietária um pouco chocada com as escolhas cromáticas da sua gestora estagiária, que esta escolheu materiais “modernos, de muito bom gosto”. E isto mete medo. Porque o bom gosto dele é um conceito que se enquadra na teoria da linha de montagem.

[mil perdões pela ausência, espero não demorar mais uma eternidade a escrever sobre a escrivaninha na cozinha]