Recado para a esquizo
Sabes, Esquizo, o texto está lindo, guardei-o em draft, é daqueles de sete palmos acima da terra, que ganhou vida própria (é um fado, esta coisa de ter textos e dedos desobedientes e insubordinados), mas eu tenho que respirar, aceitar que a vida pode mudar a qualquer instante, sem eu ter feito nada. Se calhar, basta mesmo um bater de asas de borboleta nos Antípodas do mundo para nada ser jamais como era.
Este Domingo, em Alcobaça, uma mulher foi regada com gasolina pelo marido, à porta de casa, que depois acendeu um fósforo e a imolou. Ficou a assistir ao churrasco, e depois, diligente e respeitoso cobriu-a com um cobertor para ela não ter frio. Achou que nunca mais ia conseguir comer carne assada na vida, olha, e foi para casa, e enforcou-se.
Mas pior que isso, amiga, foram as duas famílias de Amarante que ficaram desfeitas pelos braços de um eucalipto, que já estava pronto para morrer de pé, lá do alto dos seus trinta metros de altura. Ninguém gosta de eucaliptos, e eu, depois deste fim-de-semana miserável, onde começou o regime de adaptabilidade do meu contrato de trabalho (hoje tirei fotografias à falta de fotógrafos, amanhã estarei a lavar latrinas, ou se calhar a fechar o jornal e a escrever editoriais e ir à Sic Notícias com os meus melhores sapatos), se calhar, não parto jamais em sua defesa (lamento os campos de concentração de eucaliptos da Portucel, isso vou sempre lamentar e chorar talvez)
Pararam o carro. Estenderam as mantas de piquenique por debaixo da sombra enorme do eucalipto. Podiam ter parado 50 metros à frente, mas não. Foi ali, ali, onde em tempos, nós iamos em grupo, com o tio Manuel e com o Tio Zé, a Magui e o Filipe Sena, ver passar os carros do Rally de Portugal. E eu tinha muito medo, medo que eles nos atropelassem, subíamos a uns pedregulhos e o tio Manuel levava a Leica do meu avô Oliveira numa mão e o fotómtero noutra. E eu não me lembrava nada disto, daquele terror dos motores dos carros decorados com autocolantes a guincharem em altas rotações, até à porta-voz do Seara me dizer que o acidente foi na recta onde passava o Rally.
Um vento mais forte afagou a árvore e ela derreteu-se com o carinho, os ramos secos e cansados de estarem erguidos ao céu partiram-se, caíram por cima daquelas pessoas e uma mulher morreu e há um bebé de seis meses no Santa Maria que vai morrer também.
A vida muda assim, isto acontece todos os dias, e neste momento, deitada nas urgências do Amadora-Sintra, a alma que escolheu o local, o exacto local onde tinha que acontecer aquela tragédia, pergunta-se porque é que não parou 50 metros à frente, ou 50 metros atrás. Como eu. Não posso publicar um texto bonito, se calhar dos mais bonitos que já escrevi (é um texto sobre um milagre), num dia em que um verdilhão morreu às seis da manhã, e em que eu reduzi três vidas que se perderam, que já não estão cá, a menos de três mil caracteres de folha de jornal.
Perdoa.
5 comentários:
O destino nos braços de um Eucalipto. 50 metros à frente ou 50 metros atrás.
Claro que perdoo, amiga. Eu sei o que isso é. Ou quero acreditar que ainda me lembro como era. Com o dossier dos primeiros anos aberto à minha frente [mas esta é uma reportagem feliz. Uma história sobre escuteiros. Descobri outro dia que posso ter conhecido o R. há nove anos atrás, mas se nos conhecemos nenhum de nós se lembra. A história está mal escrita. É das primeiras, das que agora me envergonham] tenho ganas de mudar de vida. Cresce o aperto no peito, uma saudade infinita de quando escrevia sobre a vida e sobre a morte. Há muitas estórias guardadas na caixinha verde alface, não porque foram histórias com um final feliz, mas porque me faziam sentir viva todos os dias.
Sei o que isso é. Ou quero acreditar que ainda sei. Lembro-me de uma miúda, muito nova, como eu era na altura. Lembro-me do fotógrafo me olhar do outro lado da sala, olhos de pânico, porque pela cara da estagiária rolava um choro silencioso. Foi assim, a entrevista toda. Senti na pele as tareias que ela levou de uma freira [são estranhos os caminhos de Deus], os banhos gelados num tanque perdido nas alturas da serra quando a lua já ia alto e os termómetros muito baixos. Lembro-me da primeira noite sem dormir com a consciência pesado da condenação pública pelo que escrevi na primeira página de um jornal que já não existe. Mãe e filha mortas pelo fogo. Quiseram fugir, bateram tanto naquela porta que quase a arrancaram das dobradiças, mas não conseguiram. A chave guardava-a ele. Guardava a chave e a morte delas. São tantas histórias, Dia. É tão grande a saudade. Por isso perdoo-te.
Eu sei que o pedido de perdão não é para mim. No entanto, acho que hoje estás muito mórbida o que é que te deu? Também sei que não é fácil ler todos os dias episódios, senão como estes, parecidos. Também os leio e também fico com os cabelos em pé. Mas também acho que a imprensa alimenta estes factos. Já é altura de haver revolução nos media. E aqui te lanço um desafio. Como revolucionar isto?
Anabela, este é um texto sobre a imprevisibilidade da vida e da morte. Não tem a ver com exploração dos media. Calhou-me a mim escrever essas duas notícias. Os jornalistas deviam ser como os médicos. Rirem-se para não chorar. A primeira breve que eu escrevi no Local era sobre um homem que morreu numa serra de uma linha de montagem. 500 caracteres e eu só pensava na família a recortar aquele pequeno obituário e a colocá-lo no álbum de fotos do pobre homem trocidado. A questão não são as notícias, e este post pode até ser mórbido: morreram três pessoas (uma muito pequenina, com seis meses apenas) de uma forma horrível. Isso é incontornável. Quem lhes fez o obituário fui eu. Quem ouviu os relatos dos médicos, fui eu. O mundo, para além de ser um lugar mau, onde se regam pessoas com gasolina e se acende um fósforo, é, também, um lugar perigoso, imensamente perigoso, onde ramos de duas toneladas e meia de um eucalipto caem por cima de uma família que está a fazer um piquenique em Sintra.
É só isso.
Eu percebi e lamento todas estas notícias e principalmente estas mortes. E muito particularmente da bébé. Não tenho coração de pedra. É que por força das circunstâncias eu não leio essas notícias até ao fim, primeiro porque não é a área que estou a trabalhar. Segundo tudo isso me entristece de tal maneira que muitas vezes só leio as gordas. E sim, compreendo o que sentes uma vez que foste tu que fizeste as notícias e tiveste no terreno, não quero de maneira nenhuma minimizar seja o que for. Eu quando falei nas notícias que os órgãos de comunicação social alimentam reportava-me aos artigos que explicam a maneira como se fazem certos tipos de bombas, como certos tipos de violência são feitos e mostrados e que seria desnecesário mostrá-los para não dar aso a que possam ser repetidos por outras pessoas. Entendes o que quero dizer? Isto tudo independentemente de a notícia ser ou não posta cá fora.
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