Gestora de património e a teoria da linha de montagem
No dia seguinte, fui à Baixa da Banheira e à Amora e, se não estou em erro, passei pelo Seixal e pela famosa terreola que dá pelo nome – atreito a trocadilhos parvos – de Coina.
Nesse dia, fui gestora de património – mais uma profissão acima dos dois mil euros, do rol de muitas outras que pretendo experimentar nos próximos meses – e, quando era miúda, preenchia a ficha de aluno, como todos os alunos que se sentavam, no início de todos os Setembros, em carteiras rabiscadas a x-acto e com pastilhas gorila coladas por debaixo do tampo, detalhando o nome dos meus pais, a morada, o telefone, as medidas do meu corpo, os distúrbios psicológicos diagnosticados na família nas últimas três gerações, o rendimento médio mensal do agregado familiar, os títulos nobiliárquicos herdados, as ambições para o futuro, e nessa folha de papel, com uma fotocópia de uma fotografia tipo passe colada com cuspo, os professores anotavam apenas as faltas e as classificações dos testes, e nunca as singularidades da personalidade dos seus pupilos (se eu fosse professora traçaria um perfil detalhado de cada um dos meus alunos: Ana Rita Santos, rói as unhas e lê com a ajuda do indicador direito – deve precisar de óculos, chamar o encarregado de educação; João Pedro Oliveira, excelente aluno, tímido e comum tique nervoso com a perna, puxar mais por ele nas aulas, tirá-lo do silêncio, dar-lhe oportunidade para fazer uns brilharetes; Isabel Sampaio e Melo, tetraneta do Marquês de Pombal; os pais puseram-na na escola pública porque têm a mania da inclusão social e até pensam em comprar um T10 ou uma moradia em Chelas; Zélia Silva, sonhadora, detesta ser sempre a última da turma, mas este ano até gosta de ser a número 33), e no espaço reservado à profissão da mãe, eu vacilava, chamava o docente erguendo o indicador ao ar, e explicava, discretamente, que a Magui tinha prédios, era isso que fazia na vida, e, sem pachorra, eles ligavam o descomplicómetro da menina Diana, ainda sem saberem que ela seria a melhor aluna da turma, e diziam que a profissão da sua mãe era doméstica, mas eu não ia na conversa e inventei a profissão de proprietária.
Levo jeito para a coisa, para gestora do património da proprietária. Pela primeira vez na vida, houve delegação de competências da matriarca para a filha mais nova (o filho mais velho, teria tido uma síncope no decorrer do processo, e teria deixado o pato-bravo, que compra e vende apartamentos em guettos da margem sul – e eu a pensar dizer-lhe: “senhor Fortes, penso que faria mais dinheiro se recuperasse casas em Lisboa”, mas resolvi não gastar o meu Latim com ele, é um caso perdido, o senhor 50.000 poupa as palavras, todos se queixam dos seus silêncios, mas eu começo a aprender com ele, e quando usava aparelho nos dentes, falava menos porque o titânio fazia-me aftas nos lábios e não me fez mal nenhum estar caladinha –, forrar as paredes das casas-de-banho e cozinha de um apartamento que se quer de luxo, em Alvalade, de azulejos de gosto duvidoso, imitações baratas, mesmo muito baratas, a rondarem os cinco euros o metro quadrado, de pedra mármore verde esmeralda, rematadas por barrinhas com frutos e utensílios de cozinha).
Não é, pois, um trabalho fácil. Não é para qualquer um. Suportei o calvário de percorrer mil e quinhentas ruas apadrinhadas de 25 de Abril e 1 de Maio, e pior, muito pior que isso, a “road trip” pela margem sul do Tejo, incluía, sem encargos acrescidos, um mostruário ao vivo de todos os tipos de marquises possíveis e imaginárias, dos vários artífices serralheiros da região.
Eu tenho uma teoria, que geralmente aplico ao vestuário, mas que é excelente para as caixilharias de alumínio que transformam o que, outrora era uma varanda, numa marquise, que há coisas que nunca deveriam ter ido parar à linha de montagem. Penso nisso, sempre que vejo uma jornalista que tem a mania que as calças “à pirata” amarelas são o último berro da moda e que está convencida que lhe ficam a matar, ou em relação a todos os modelos de calças de cintura subida, afunilada nos tornozelos.
E abro a boca de espanto quando vejo combinações de vestuário que não lembram ao menino Jesus, bolas com riscas, acessórios espalhados no corpo, inspirados na árvore de Natal que se monta no dia 1 de Dezembro de cada mim, é que, para mim, e de acordo com a teoria Ralha da linha de montagem, aquelas peças nunca deviam ter sido produzidas, nenhuma criança as devia ter costurado na China ou em Felgueiras, muito menos, era de esperar que uma alma (mesmo que penada, ou panada, ou empenada) a tivesse comprado, alimentando uma cadeia interminável de aberrações visuais. E é assim com 99 por cento das marquises. Mostrem-me uma aceitável (aceitável, atenção, que nem peço nenhuma obra de arte) e eu monto um espectáculo de pirotecnia.
A cozinha vai ser laranja e branca e as casas-de-banho, cinza-claro e encarnadas. No fim, o pato-bravo, garantiu à proprietária um pouco chocada com as escolhas cromáticas da sua gestora estagiária, que esta escolheu materiais “modernos, de muito bom gosto”. E isto mete medo. Porque o bom gosto dele é um conceito que se enquadra na teoria da linha de montagem.
[mil perdões pela ausência, espero não demorar mais uma eternidade a escrever sobre a escrivaninha na cozinha]
3 comentários:
Exagero!! Eu conheço algumas marquises bem catitas, em que o aluminio resplandece ao sol de verão.
Saltem os foguetes.
Não digas mal do empreiteiro, que perdeu 40Kg para caber na sua magnífica banehira preta, que tem na sua casa de banho preta, na casa onde à porta tem um alpendre, guarnecido com fardos de palha, que servem de décor a um cavalo em tamanho real, mas de plástico. Cavalo esse que pode sempre ir beber à fonte, adornada por magníficos anjinhos, que remata o conjunto. Este é o homem que melhor pode reconhecer bom gosto. Por ser algo que ele sabe que nunca terá. Ou não. Porque gostos não se discutem. Lamentam-se.
Rui, há que apresentar provas documentais. Para o mail empantanas@gmail.com.
Enviar um comentário