terça-feira, agosto 08, 2006

A não ser que seja milagre

A não ser que…
E nesse instante, ela largou os talheres no prato sem cautela, e o barulho metálico do inox sobre a porcelana e do a não ser que trepou pelas paredes acima, fazendo várias vezes ricochete na parede falsa de pladur pintada de laranja-labareda, e fixou o olhar algures entre o copo soprado para o molde pelos mestres vidreiros da Marinha Grande – pensou neles, aliás, 50 graus pelas oito da manhã, 50 graus pelas oito da noite, queimaduras nos braços, a pele muito esticada das cicatrizes e, como recompensa, a humilhação do desemprego – e a embalagem de 500 mililitros de emoliente dermatológico para peles atópicas, que lhe custou nada mais, nada menos, do que 4,54 horas de árduo trabalho de escriba numa redacção de um jornal diário (bela capicua, pensou ela agora, enquanto escrevia estas linhas e fazia as contas salário/ hora no seu telemóvel Nokia baixo de gama, mas doía-lhe tanto receber à hora menos do que uma empregada doméstica; aos poucos, tentava assimilar que há trabalhos sujos que alguém tem que fazer e que, nem por isso, são bem pagos, mas isso não lhe trazia conforto nenhum, apenas uma vontade enorme de mandar tudo às urtigas, e ficar à espera da urticária monstra da plantinha que alguns comem na sopa).
E depois, mordeu o lábio inferior, estranhamente, baixou o olhar, em vez de o erguer ao tecto estucado sobre o tabique onde mulheres que, em tempos idos, foram homens, recebem homens de aspecto másculo ao domicílio em colchões manchados de várias amostras de sémen que dariam muitas dores de cabeça ao Horatio do CSI se tivesse que investigar um crime num prédio de 100 anos em Santa Marta, e, ao mesmo tempo, fez um contorcionismo difícil de replicar com a sobrancelha direita, encolheu ligeiramente os ombros, num misto de vergonha e perfeito estado de incredulidade, e sorriu para ele, o anjo de cabelos dourados, que jantava ao seu lado direito.
E os olhos ficaram brilhantes, pudera, encharcaram-se, encharcaram-se na mesmíssima proporção de há umas semanas atrás, quando uma mulher de olhos meigos e verdes, chamada Natália, lhe colocou um véu de tule branco sobre a cabeça (e a madrinha Teresa, antevendo a choradeira, disse qualquer coisa com graça e ela soltou uma gargalhada do fundo do seu ser – e que saudades tinha ela da madrinha, onde anda a madrinha?).
Apenas quem foi tocado, mesmo que ao de leve, por um milagre, por uma graça pedida de joelhos, ou com lágrimas descontroladas a descerem a alta velocidade pelo escorrega improvisado nas bochechas ou nas maçãs do rosto, àquele que é dono dos céus, é que sabe do eriçado da pele que a percorreu, pela espinha acima, até à ponta dos seus longos cabelos, e no sentido inverso, acabando com uma coceira impossível, um mini-choque eléctrico, no dedo mindinho da perna direita (a mais comprida; a mão direita era, também, muito maior que a esquerda; já no pé, a assimetria revelava-se à esquerda – os cabelos brancos, esses, ainda camufaldos por uma tinta muito escura, abundavam do lado inverso ao do coração).
Sentiu esse arrepio tantas vezes, tantas vezes (está a escrever este parêntesis com pele de galináceo despenado, prestes a entrar no tacho, e a transformar-se em canja rica). Ainda há pouco tempo, a 50.000 visita deste blogue, inchou-lhe a fé a proporções que até fazem mal à saúde. Mas há milagres todos os dias: libelinhas na casa-de-banho, santas que a acordam de madrugada e a guiam, pelo escuro de divisões muito velhas e sem esquadria que lhes valha, até às chamas de um fogo que não chegaram a ser notícia de imprensa. E há, até, coisas menos insólitas, mas que ninguém repara, é uma doença comum, uma conjuntivite mutante: olhos colados no pára-brisas, ou no volante do carro que anda a ser pago em 60 pesadas prestações mensais, impedem que se veja o belo.
Um balão cor-de-rosa passeou-se pelas seis faixas de rodagem da avenida da Liberdade, e ela como sempre na faixa do Bus, oito anos de carta à espera da multa e ainda nada, tem mania das grandezas a miúda, meteu na cabeça que é um autocarro, que presta serviço público ou coisa parecida, e o balão bate na chapa suja do Idea e lá se lhe eriçou a epiderme magoada por duas imensas manchas vermelhas de uma alergia que ainda não foi detectada a causa do prurido.
Milagres...
Ela fazia por não cantar sequer. Cantarolava, isso não controlava, saía-lhe pela boca fora. A toda a hora, no duche, a lavar a loiça, a cozinhar, a escrever notícias e postadas intermináveis. Sabia tantas letras de músicas, quantas a memória de um Ipod de 60 gigas consegue guardar. Mas cantar, colocar a voz e cantar, deixou de o fazer há muito tempo, enterrou esse milagre. Era melhor assim. Não queria mais saber. Fumava cigarro, atrás de cigarro, com uma vontade enorme que as cordas vocais se enferrujassem e se incapacitarem de reproduzir o som dos anjos, escrito pelos Deuses.
O ar-condicionado, porém, era uma grande invenção. As janelas andavam sempre fechadas graças ao ar condicionado, e quando ela vem da clínica de fisioterapia surreal, onde os doentes em reabilitação óssea ou muscular, têm que subir e descer uma enorme escadaria, mete-se no carro e ruma para o jornal, e passa entre um minuto e meia hora à caça de um lugar de estacionamento em Picoas, e nesse curto espaço de tempo pode cantar à vontade que ninguém a escuta.
Isto acontece-lhe muitas vezes. Compulsões musicais. Repeat one até ao limite da exaustão mental. O DN lançou há tempos, à semelhança do seu pasquim, uma vasta colecção do senhor Amadeus, pela ocasião da passagem do quarto de milénio do seu nascimento (ou morte?).
Ela recusa-se a dar dinheiro ao patrão, porém. Faz as compras no Lidl e no Carrefour. Nunca põe os pés no Modelo ou no Continente (irá, voluntariamente, quebrar o embargo, porque os supermercados do senhor Belmiro têm à venda uns lençóis muito bonitos, a replicarem os naif lenços dos namorados).
Comprou um disco, da colecção do DN, por 3 euros e 75 cêntimos, de composições do menino Amadeus. Do menino Amadeus literalmente. Mozart enquanto criança (e pobre papá Leopoldo, deve ter sido um choque, que dois dos seus filhos – porque é que ninguém fala da Nannerl Mozart? – tivessem mais talento do que ele à tenra idade de seis anos).
Ouve-o sempre, todos os dias, quando sai da fisioterapia (são rotinas de prazer), e sabe que aquilo que os seus tímpanos estão a escutar e a enviar para o cérebro, é obra de um milagre. Gosta da Missa solene em dó menor e gostava de saber qual é o timbre do senhor que canta Agnus Dei qui tollis peccata mundi, miserere nobis. E canta por cima dele, salvo seja, por cima da voz dele (está melhor assim, para não haver equívocos), de vidros fechados, com o ar condicionado ligado, mas outro dia, estava no semáforo, na Tomás Ribeiro, em frente ao Picoas Plaza, a queimar um Davidoff Gold entre o indicador e o pai de todos, entusiasmou-se e esqueceu-se que o vidro estava aberto.
Do Fiat Punto do lado, soaram palmas e ela arrancou o mais depressa possível assim que a luz passou para a cor que os daltónicos não distinguem, com o coração aos pulos e a pele de galinha. Não a lembrem que sabe cantar, se faz favor. Todas as suas frustrações nascem-lhe na garganta.
No outro dia, puta da criancinha, repete ela, com a voz que se ouve, ou com aquela que só ela ouve dentro da cabeça, ao ouvir o Apollo et Hyacinthus K38, composto aos nove anos de idade pelo menino Amadeus, puta da criancinha, e os pelos, todos os pelos do seu corpo em sentido, sempre, sempre, é coisa de milagre, por mais que oiça, dá-lhe vontade de chorar, e a sua mãe outro dia ficou preocupada com uma revelação: Sempre que oiço isto, penso numa grande matança, mamã, ao melhor estilo siciliano, rajadas de metralhadora a limparem o sebo a quem se portou mal, e a sua progenitora, disse: mas é tão bonito, e ela acabou a conversa: gostava de morrer ao som desta. Nove anos de idade, e há mais tempo, há dois ou três meses, mais uma vez o vidro aberto no semáforo, e o senhor do lado, de boca aberta a ouvir-lhe a voz e os olhos a cantarem também, bateu no carro da frente e outra vez, prego no fundo, toca a fugir dali, não lhe lembrem dos milagres que poderiam sair da sua boca. (Fica para outra vida.)

[Quer saber como eu componho? Posso dizer-lhe apenas isto: quando me sinto bem disposto, seja na carruagem quando viajo, seja de noite quando durmo, ocorrem-me ideias aos jorros, soberbamente. Como e donde, não sei. As que me agradam, guardo-as como se tivessem sido trazidas por outras pessoas, retenho-as bem na memória e, uma após a outra, delas tomo a parte necessária, para fazer um pastel segundo as regras do contraponto, da harmonia, dos instrumentos, etc. Então, em profundo sossego, sinto aquilo crescer, crescer para a claridade de tal forma que a obra mesmo extensa se completa na minha cabeça e posso abrangê-la de um só relance, como um belo retrato ou uma bela mulher... Quando chego neste ponto, nada mais esqueço, porque boa memória é o maior dom que Deus me deu. Disse W.A. Mozart, cortesia da Wikipedia e se quiserem saber como eu escrevo, a resposta foi dada por ele há coisa de dois séculos e meio]
Uma noite, como todas as outras, em que não dormia, em que não comia, em que se sentava de pernas cruzadas no sofá laranja, a embalar um exemplar do melhor que se faz na Macintosh, a bebé que já trauteia Apollo et Hyacintus do banco de trás do Idea, gemeu. O corpo estava coberto de manchas vermelhas, horríveis. Ecezema atópico, diagnosticaram. Cortisona atrás de cortisona, o prurido não passava, matava o sono de quem está, seguramente, mais próximo de Deus. Ela sentou-se na cama. Pegou o anjo ao colo e embalou-o durante muito tempo. E pediu. Os males do mundo, os males do mundo não precisam de ficar agarrados à pele de porcelana da minha filha. Eu troco com ela. Eu troco com ela, repetiu , enquanto a embalava.
No gabinete claro da alergologista, o espanto tomou conta das feições da especialista demasiado nova para ser aqui descrita como especialista. Nunca teve, em criança, eczema atópico? Não. Nunca tive qualquer problema dermatológico, nem borbulhas na adolescência. Esta doença não se revela na idade adulta, passa na idade adulta, insistiu ela. Nunca tive.
E só mais tarde, horas depois, olhar pegado algures entre o copo da Marinha Grande e a embalagem de emoliente para peles atópicas é que ela disse “A não ser que seja milagre”.

4 comentários:

Sara disse...

queria comentar, mas faltam-me as palavras

Anónimo disse...

Os milagres são como as bruxas. Não existem, mas que os há, há.

Goiaoia disse...

Adoro-te!
E já se estava mesmo a ver: os teus famosos postes em draft... pois, que as ideias te jorrem sempre assim.
Caiu em desuso o termo de cornucópia. Hoje em dia as pessoas só as ligam às motivos "fantasia" nos "peúgos" de gajo [isto dava uns postes].
Os Anglo-num-sei-quê ainda a utilizam amiúde (posso... outra que caiu. Já só a devem utilizar em Cabo-Verde, São Tomé... esses países em que se fala um português maravilhoso)como expressão ... utilizam o "horns of plenty". É cornucópia em americano.
Mas e entonces... As Musas!!! quando se embeiçam por um mortal extraordinário, vão buscar a sua ferramenta de trabalho (que é precisamente a cornucópia) e vertem-na por cima do predestinado: «ocorrem-me ideias aos jorros».

(a mim num me ocorre mai nada. É falta de práctica... não tenho ido aos treinos)

AnadoCastelo disse...

Realmente é uma pena não cantares. Tu cantas muito bem. Estás com vergonha?