O professor de Filosofia II
Feitas as contas, coisa que sempre gostei de fazer, apesar de ter fugido da matemática como o Diabo foge da cruz (e isto também me dana, quase tanto como me ter esquecido do nome dele, ter-me juntado à carneirada que teima que a matemática é para os marrões), duas professoras na primária, uma média de dez professores até ao fim do ensino secundário, e uns quinze por ano no superior, isto dá, vamos lá ver, 142 prof’s, mais coisa menos coisa. Não é desculpa para me ter esquecido. É imperdoável, dou voltas à cabeça, e até já liguei à única pessoa que mantenho contacto desde essa altura, mas ela era do clube dos que não achavam piadinha nenhuma ao pedante (eles não saberiam, quer na altura, quer agora, o que quer dizer pedante, chamar-lhe-iam, no máximo “armado em esperto”) professor de filosofia.
Parece-me que foi com ele que eu me armei em fina, larguei para trás o horroroso “setôr” e adoptei o chamamento de “professor”. Estas coisas de como se deve chamar aos poços de conhecimento que verteram para mim parte do seu saber, abala a minha frágil existência há muito tempo.
Na primeira e segunda classe, a mulher de cabelos cinza-violeta que me guiou a mão num quadro macio e amanteigado de ardósia, e me ensinou a fazer uns “d’s” maiúsculos muito bonitos e uns “x” capitulares como mais ninguém faz, além de me ter passado alguma informação inútil e que colocaria os encarregados de educação vermelhos de cabelos em pé, acaso existissem comunas no Bairro de Alvalade – havia uma grande comunidade hindu, lá isso havia, e com as letras do abecedário e as contas de somar e diminuir, aprendi nomes como Vishnu, Minashri e Pritesh, e outros que apaguei dos registos da memória para arranjar espaço para outras coisas, num processo semelhante ao que faço com o telemóvel baixo de gama, todos os dias, para receber mais sms do meu amigo filósofo, aliás, voltando atrás e pedindo, antecipadamente desculpa pelo desvio sinuoso, brancos havia poucos e com que cor tivéssemos nascido, a verdade é que apresentávamos, sem excepção, um ar miserável e macilento (os mais miseráveis eram os gémeos falsos, Carla e Carlos, muito pequeninos e enfezadinhos), e basta-me vasculhar na poeira dos caixotes do passado e dar uma vista de olhos na tradicional foto de turma, recordação do ano lectivo 1984-85, ano em que a estrela de Floribella estava a nascer, leio ao mesmo tempo no 24 horas (façanha inacreditável, esta, de escrever posts com vida própria e dar uma espreitadela no diário de referência que me informa, com direito a chamada de primeira página, que Merche Romero mandou tirar o bidé da sua mansão e estou totalmente de acordo, porque o monte de porcelana não serve, de facto, para nada), para constatar que nós, branquelas que morávamos num subúrbio chique, éramos uma minoria, no fundo da Estados Unidos, onde agora há o prolongamento até Chelas, havia uma favela, mas lá comunas não devia haver, porque a senhora professora Gertrudes Maria ensinou-nos as linhas de comboios das antigas colónias e ninguém se queixou, nem foi para a televisão chamar a senhora de fascista –, e ela pôs, preto no branco, na primeira aula dentro da sala cinco da escola primária do Bairro das Estacas (o coitado do arquitecto Ruy Authouguia não descansa em paz, lá onde quer que esteja – desconheço se ainda é vivo, aliás -, pelo que a merda das marquises fizeram ao seu inovador bairro, construído respeitando todos os princípios da Carta de Atenas), aula essa em que se armou em bruxa e adivinhou que a minha cor favorita era o roxo (eu fiquei mesmo assustada quando ela me disse isso ao ouvido, tinha cabelo cor-de-bruxa e pintava os olhos com sombra verde-velha, era ligeiramente assustadora, apesar do sorriso enorme, só mais tarde, caramba, muito mais tarde, é que a Magui me explicou que eu pintava tudo a roxo, daí a aferição simples da pedagoga, e isto do roxo lembra-me outra professora, na faculdade, muito machona, que insistia que a cor da minha camisola era lilás e eu corrigia sempre, dizendo, é roxo, professora, é roxo), que assim que pusesse um pé na sala, devíamos levantávar o rabo da cadeira e dizer em uníssono, Bom dia, senhora professora Gertrudes Maria.
E isto nem teria tido importância, a formalidade no trato, se, no fim da segunda classe, as minhas adoradas avós não tivessem morrido em escadinha, seguindo-lhe os passos, o meu querido avô Oliveira, e a Magui não me tivesse, por força das circunstâncias, enfiado no Externato do Aeroporto. Entrei na aula, em silêncio, a professora apresentou-se como Ana Paula e eu disse: Prazer, senhora professora Ana Paula. E ribombou pelas paredes acima um coro de gargalhadas infantis, é que, ali, naquele colégio, os professores eram tratados pelo nome próprio, apesar da distância de um você aqui e além, e eu não sabia, ninguém teve a delicadeza de me avisar, e a minha estreia foi desastrosa (cedo incumbi a minha fértil imaginação de contar histórias horríveis às minhas novas amigas, de como no outro "colégio" - ai de mim que dissesse que vinha de uma escola pública, era linxada num instantinho -, se usavam meninas dos olhos e outras torturas pedagógicas, das quais, usar uniforme e chamar o professor por senhor professor eram migalhitas, e feito este esforço criativo, passei a ser respeitada por aquela maralha de putos queques, que, no final da quarta classe me chamavam "mão de ferro" - parece que eu tinha a mão forte na resposta aos apalpões do menino David Coito (este nome, foi-me impossível de esquecer, apesar de na altura não me dizer nada, foi o Zé Ralha que me explicou que queria dizer queca, e muitas vezes penso se ele não assinará, hoje em dia, com o mais afortunado, de certeza, apelido da mãe).
E isto também não teria tido uma importância por ali e além, se o Zé Ralha não tivesse voltado para casa e eu, desgraçada, mais uma vez, sem saber como chamar o indivíduo durante meses e meses a fio. Evita-se o chamamento e ponto final e, se o trato por você, a culpa é do Bernardo, não é da avenida de Roma, porque, na tarde em que nos conhecemos, tarde demais para dois irmãos se conhecerem, brincávamos por debaixo da mesa de vidro e eu perguntei: como é que tu lhe chamas? A quem? A ele, o nosso pai. Chamo-lhe Pai. Mas não o tratas por tu? Não, trato por pai.
E, depois, ainda veio o António, o professor de música que já teve direito a post autónomo neste blogue, que obrigava a sua enorme turma de destemidos nove alunos que haviam escolhido música como opção no nono ano, ao invés de optarem pela segurança da disciplina saúde ou economia, a tratarem-no por tu.
Esta baralhação toda deu cabo de mim, decidam-se lá como é que querem ser tratados, que maçada incrível, e o último amoque que me deu foi com o meu primeiro editor, Pedro Camacho, actual director da Visão, que eu apenas consegui tratar por tu quando se foi embora do pasquim. Foste como um pai para mim e eu trato o meu pai por você, por causa de uma pergunta feita debaixo de uma mesa de vidro, expliquei-lhe eu, numa das muitas vezes em que o chefinho suplicava para que eu o tratasse por tu.
(continua, há-de continuar, não tenham medo que isto vai acabar ao terceiro capítulo, acho eu, não posso prometer nada, mas não sei o que me deu para partir posts em fascículos da Planeta Agostini, se calhar, é um novo estilo literário, e o meu mais que tudo, que não comenta nada sobre este blogue, nem na caixa de acrílico que acolhe as vossas sugestões e apupos, nem lá em casa, na cozinha encarnada que agora tem uma escrivaninha também de madeira cor de sangue, estilhaçou-me há pouco o coração, ao sugerir que devo partir os meus intermináveis parágrafos, com infindáveis travessões e parêntesis, com uns enter's, para a malta não se perder. Sniff)
5 comentários:
João? José? Artur? Raimundo? Victor? Vítor? Salvador? Domingos?
A mais de 2000 km discutia-se hoje, a atravessar uma zebra, que o tratamento "setôr" era ridículo, que nas escolinhas para filhos de intelectuais burgueses se tratava os profs por tu, e que havia sempre uma que se devia tratar por "sra. dona", para as criancinhas se irem habituando ao mundo lá fora. Adriana, no meu caso. Sra. Dona Adriana. Quando a voltei a encontrar, cinco anos mais tarde, numa escola pública (a dos irmãos do sr. 50.000), a senhora já queria ser setôra. Ai!
Nenhum desses nomes faz soar uma campainha e, por isso, lamentavelmente, nenhum cão saliva abundantemente (também nenhum outro animal leva choques eléctricos, ou recebe costoletas de porco preto).
Mas, pior, pior, e eu nem fui por aí, foi a moda da letra de imprensa. Eu perdi os meus D's e os meus X's como mais ninguém faz, por causa dessa moda. E a professora Ana Paula lamentou profundamente, mas, também ela tinha letra de imprensa.
Nem sabia eu, ai, suspiro, que todos os dias a minha letra seria de imprensa. Coisas da vida...
parentesis jamais, JAMAIS! travessões ainda vá, mas eu gosto dos teus posts sem enters. percebe-se tudo, nada se confunde, pq tu sabes escrever como ninguém. e pra quem sabe escrever, parentesis é um recurso a n usar. eu n escrevo nem metade do q tu escreves, só uso travessões, é mais British, parentesis jamais, JAMAIS. bjs gds vou ler o outro
Acho piada, que penses em acatar as sugestões do teu mais que tudo, quando eu ando há meses a distribuir-te pontos finais através da janelinha mágica que me fez companhia tantas noites. Percebo que ele seja [um bocadinho] mais importante que eu, e até desculpo se ele te convencer a pontuar um bocadinho mais.
[Concordo com a história do bidé! que coisa mais inutil]
PS: Continuo à espera da fotografia!
O que eu gosto deste blogue (que sigo desde que a ASL escreveu no Glória que era o melhor dos blogues e que eu, num feliz acaso, acabei por descobrir)!
Por tudo isso, de não tutear o pai, de ser alvo de risota ao tratar a professora por senhora, etc, passei também. E com mão de ferro.
Enviar um comentário