O professor de Filosofia III (a saga que não acaba nunca)
Chamemos-lhe, então, Carlos Pedro (porque eu não consigo continuar a chamar-lhe o professor de filosofia… ou consigo?), com a certeza, porém, que essa não era e não será, certamente, hoje em dia, a sua graça, a menos que o professor de filosofia tenha cometido um crime grave nestes 14 anos em que perdemos o contacto, ou que alguém o tenha cometido por ele sem pedir licença de apropriação da sua identidade.
E, talvez por isso, porque já não era um jovem e inofensivo pedagogo que se recusava ver televisão (sendo este o seu acto de maior rebeldia da sua vida), mas sim, um psicopata de várias faces, vários rostos e vários nomes, ou porque, se calhar, tal como eu, o professor de filosofia veio ao mundo com um tê na testa marcado a tinta invisível e, a certa altura, estava tão farto de receber na caixa do correio notificações da Divisão de Investigação Criminal e da PJ para prestar declarações nos casos mais estapafúrdios dos quais não tinha qualquer intervenção, responsabilidade ou contributo a dar às investigações, simplesmente, porque não tinha estado lá, ou então, podemos ainda ir mais longe, e, seguindo este raciocínio, conjecturar que o que motivou o professor de filosofia a mudar o seu nome foi o facto de já não existiam paredes suficientes, na sua casa que antes era orgulhosamente estéril e desprovida das coisas terrenas, para pendurar nem mais um termo de identidade e residência indevido, por processos que nunca lhe chegavam a manchar o cadastro, porque eram sempre arquivados pelo Ministério Público por falta de provas – e os magistrados já suspiravam sempre que o chamavam, e pediam desculpas em adiantado pela maçada e perda de tempo.
Talvez por isto, e isto é só uma hipótese, tão estapafúrdia como os crimes estranhíssimos que perfeitos estranhos podem ter imputado ao professor de filosofia, este pobre homem, objector de consciência (nem à inspecção militar foi), tenha dado corda aos sapatos e aventurado a uma visita a um bairro de má fama no centro da cidade, e tenha comprado um novo nome. Carlos Pedro, disse ele, a uns romenos que vendem BI’s fresquinhos e, até, os novos passaportes electrónicos, numas águas furtadas dos Anjos. Carlos Pedro para não ter mais chatices, e até os deixou escolher o sobrenome à sorte, num sorteio com papelinhos dentro de um saco de plástico com cheiro a erva de fazer rir.
Ou, talvez, nada disto se tenha passado e ele continue com o nome que a sua mãe escolheu e que o seu pai ditou à notária que só se dava ao trabalho de fazer uma caligrafia bonita aos seres que tinham acabado de nascer e que ainda não desconfiavam como seria dura a sua vida (quando averbava um casamento, ainda se esforçava, a caligrafia ainda era cuidada, apesar de só ter amarguras para contar acerca desse sacramento, nódoas negras que escondia sobre a roupa de estampados floridos – usava sempre roupas floridas, gostava de ser como as flores –, mas, nos divórcios, não trazia o mata-borrão e, então nos óbitos, era a sua letra mais corriqueira e desleixada que ficava impressa no certidão), talvez este naco de texto sirva apenas para fazer render a saga professor de filosofia que, ao que me está a parecer, não vai acabar por aqui, porque eu ainda nem cheguei nem aos subúrbios daquilo que quero contar, ou, vai-se lá saber, se calhar até acertei e ainda vou a tempo de ir preencher um euro milhões à papelaria da Fontes Pereira de Melo.
De uma coisa tenho a certeza: o professor de Filosofia tinha dois nomes próprios. E apresentou-se assim aos alunos do nono ano, quarta turma, da Escola Secundária Rainha D. Leonor. Carlos Pedro era um nome duro. E ele estava sempre em sentido, muito tenso (e tinha um belo rabo, desculpem-me os mais pudicos pelo acrescento). A aluna da franja encaracolada (todos nós temos coisas que nos envergonhamos; eu tive franja) começou a analisar o professor de filosofia naquele preciso instante. O tratamento pelos dois nomes próprios só poderia ser fruto de uma educação militar. Não podia ser o Carlos ou o Pedro simplesmente, estava sempre de alerta, como se tivesse feito um qualquer disparate e esperasse o grito: “Carlos Pedrooooooo!”.
Ela acertou. Foi educado nos Pupilos do Exército. Quando, um trio de anos mais tarde, o encontrou a cumprir serviço cívico na biblioteca da escola, por se ter recusado a ir à tropa, ela aflorou, ingenuamente a questão: “Mas, se passou a vida nos pupilos… Porque aceitou este castigo, de ser despromovido de professor a bibliotecário, professor?”. E ele encolheu os ombros e foi à procura do livro que ela precisava para o trabalho de História.
(só um aparte: hoje, antes de entrar no grande edifício da bófia, no Porto de Lisboa, ergui os olhos para o céu de nortada, e disse, em voz alta, já basta de surrealismos, já basta, mas afinal não bastava, e ao que parece, segundo a queixosa, eu sou um homem, e ameaço pessoas na A8 que me fazem sinais de luz à traseira do Idea com armas de calibre desconhecido)
Continua. Só ninguém sabe é quando acaba.
3 comentários:
Não seria um nome de família parecido com um nome próprio? Por exemplo... "Frederico Lourenço"?
sim, é capaz... Carlos da parte da mãe e Pedro da parte do pai.
Já quanto a sí, sô Dôna Autora, o meu desejo é que acabe (mas é) nunca!
Que professor mais esquisito. É mesmo qualidade filosófica. E estou aguardando a continuação....
Enviar um comentário