quarta-feira, setembro 20, 2006

O que mais me custa

O que mais custa não é sair da cama, a horas que, há tão poucos dias e durante tantos anos, não convenceriam as pestanas a desenroscarem-se umas das outras, nem à custa da promessa da visão de uma das maravilhas do mundo. A rua de Santa Marta acorda mais cedo que eu, sei-o bem, e madrugar não é o que me custa, não me queixo, quase todo o mundo acorda mais cedo que eu, que moro por debaixo dos pés do marquês e do seu fiel leão amestrado.
Durante nove meses carreguei nos olhos noites brancas, e ouvi a minha rua a despertar para mais um dia de trabalho, de alegrias e tristezas pontuais sem hora marcada nos ponteiros do relógio. A minha rua acorda quando o sol e os galos ainda preguiçam e ouvem-se vozes de todas as línguas menos daquela que eu sei decifrar. Depois há os polícias, vão e vêm, de e para a esquadra emblemática que nunca está de portas fechadas, mas fazem pouco barulho, pegam no trabalho e largam o trabalho em silêncio, não percebo bem porquê, mas honro o acordo informal entre civis e autoridades do trânsito, que permite aos residentes toda e qualquer espécie de estacionamento selvagem no perímetro da rua de Santa Marta com o Largo de Andaluz e até ao Largo das Palmeiras, segunda fila, por cima dos passeios e, com jeitinho e dois minutos de conversa com o porteiro, até nos dois lugares reservados à Judiciária, cujos agentes almoçam sanduíches na baiuca da D. Beatriz, que os chama respeitosamente de “doutores”.
Não custa entrar às nove e sair as cinco, não custa sair da cama antes das oito da manhã, e só custa um bocadinho a poluição que se entranha na pele, logo pela manhã cedo, na Duque de Loulé, e é um pouco desagradável a poeira que me suja o cabelo das obras do túnel do Marquês, Fontes Pereira de Melo acima.
O que me custa mesmo é não estar na redacção à hora que a Dona Maria chega para lavar as casas-de-banho deste edifício. Deixo-lhe, religiosamente, o 24 Horas em cima do teclado, com um post-it amarelo com qualquer coisa simpática rabiscada, mas acabo por não discutir a manchete do tablóide-bíblia com mais ninguém, não tenho ninguém para falar das as parvoeiras do dia, não oiço queixas do reumático, não debito lamentos sobre os meus joelhos e isso custa, custa mesmo.
A Dona Maria é a melhor coisa deste jornal.

4 comentários:

Isa disse...

adorei a conclusão! :-D bjs

Anónimo disse...

vá lá, pelo menos esse jornal tem uma coisa boa. eu ainda procuro a minha.

miguel

Telescópio disse...

Eu acordo bem mais tarde do que tu, sabe-lo bem. Nunca antes do meio dia, às vezes às quatro da tarde, já cheguei a levantar-me às onze e meia da noite (estava em Buenos Aires, devia ser do fuso horário).
Como tu, também eu lamento não ver todos os dias a brasileira da padaria da rua Guilhermina Suggia, aquela onde fomos tomar café no sábado. Ela está no turno da manhã, penso que só trabalha das 5 da matina até à hora de almoço e é raro apanhá-la. Hoje, descobri o truque.
Cheguei aos States às seis e decidi tomar o pequeno almoço no fim da noite, fartei-me de falar com a brasileira loirinha e adormeci muito mais contente.

Porque não vais dar um beijinho à dona Maria todos os finais de noite?

Goiaoia disse...

Confesso!
Há já muitos anos que não passava por aqui. Considera, pois, estye comentário como um "mark in" e o último, que hoje te deixar, como um "mark out". Vou ler-te de enfiada! Daqui até onde já li.

E, entretanto, nem sei que te diga...

Mas este teu texto está eivado de literatura. Da "Tua" literatura. Que queres que te explique: «Fontes Pereira de Melo acima» e «que os chama resopeitosamente de "doutores"» incluído.

Um abraço enorme... que chegue para ti e ainda sobre para o
50.000 e respectiva filhota.

até já,