Senhor Guilhermino, não me quer dar o seu número que eu ligo-lhe de volta, é para não gastar mais dinheiro…
O senhor Guilhermino estremeceu – contaram-se três segundos de silêncio total –, recusou-se a desligar a chamada e gaguejou qualquer coisa como eu estou de olho na porta; se a mulher entra por aqui e me apanha agarrado ao telefone é sermão e missa cantada, não sei porque tanto se amofina o raio da mulher, quem é que paga a conta, quem é que lhe paga, aliás, as idas ao cabeleireiro? (e do outro lado do bocal, numa janela sobre a Andrade Corvo, houve também uma pausa, a mente elevou-se para até ao tecto e pôs-se a visualizar um cego de olho na porta).
Eu é que já fazia um xixizinho, raisparta o drenante com sabor a anis, mas o senhor Guilhermino não podia arriscar desligar o telefone; sabe-se lá há quanto tempo ninguém o escutava sem delongas. Então continue, senhor Guilhermino, estou aqui, sou toda ouvidos.
Branco Rodrigues teve mais sorte que o senhor Guilhermino. Os pais, no final do século XIX, não o acharam amarelo, ou menos filho só porque os seus olhos nasceram sem o dom de ver.
Branco Rodrigues, leio algures no escuro da net, enquanto danço o fandango com vontade de ir mudar a água às azeitonas (que bonita expressão) e oiço a história da vida do senhor Guilhermino contada em duas horas e picos, foi o primeiro grande impulsionador da valorização dos cegos em Portugal. Em 1896 criou uma aula de leitura e de música no Asilo de Nossa Senhora da Esperança, em Castelo de Vide. Um ano depois, numa sala cedida pela Misericórdia de Lisboa, instalou outra aula de leitura.
No redondo ano de 1900, num andar da Escola Comercial Rodrigues Sampaio, cedido por Despacho Ministerial, abriu a Escola Intelectual e Profissional de Cegos, que esteve instalada em vários edifícios e acabou por transformar-se no Instituto de Cegos Branco Rodrigues, em São João do Estoril – a mesma casa com vista sobre o mar (muito relevante para quem não vê) onde o senhor Guilhermino teve que dormir o seu sono angélico, de 1927 a 1947, com as mãos coladas ao pescoço. Em 1903, os cegos do Porto também passaram a contar com a ajuda deste benemérito.
Branco Rodrigues nasceu num berço de ouro, e gastou a sua fortuna na dignificação dos cegos portugueses. É a ele, e a um generoso funcionário da Imprensa Nacional cujo nome não aparece em nenhuma das páginas pescadas pelo Google, que se deve a primeira impressão em Braille, na viragem do século XIX, descubro enquanto escrevo tudo o que o senhor Guilhermino me conta (e, não contem a ninguém, mas ainda consigo, para além de ler, escrever conteúdos totalmente distintos, mascar pastilha com destreza).
O senhor Guilhermino não conheceu Branco Rodrigues, mas chama-lhe pai. Mas em 1947, vinte anos depois de os seus verdadeiros pais o terem abandonado numa casa onde se ouvia o rugido do mar e o pouca-terra do comboio, e terem apanhado o vapor para o calor tropical do Brasil, o senhor Guilhermino era um homem feito, vinte e sete anos de idade e uma tez mais rosada, era pois hora de partir, era a hora de partir porque havia mais cegos em lista de espera para aprenderem a ler pautas sem olhos (como raio é que um cego lê uma pauta?), e o senhor Guilhermino não teve outro remédio senão sair da sua casa, sair a contragosto, com uma mala na mão e um violoncelo noutra.
E foi para a rua, a verdadeira casa dos cegos.
Então o que é que me podia esperar? Fui para a rua, fui tocar para a rua e pedir esmola. As pessoas deitavam as mãos à cabeça, diziam, não há direito, não há direito.
Foi nesses dias, anos que se seguiram que o senhor Guilhermino conheceu a sua mulher, a tal que lavava casas a escova a dois escudos por mês.
A minha mulher não era deficiente mental (?! Lá estou eu de boca aberta a ouvir o senhor Guilhermino), era atrasadinha, mas era muito humana, chorava, chorava mesmo muito, chorava pelos meus olhos que não a viam.
Eu dizia-lhe: não te preocupes. Tu és a minha máquina; eu sou o teu cérebro.
E a vida seguia assim, ela guiava-o, era os seus olhos, e ele era o seu pensamento. Os primeiros anos de casados viveram numa casinha da câmara em parte incerta e de onde foram expulsos por circunstâncias que faltaram apurar num telefonema de duas horas com uma perfeita estranha.
A coisa ficou torta numas pequeninas águas-furtadas nas Portas de Santo Antão.
Imagino sim o que é subir umas escadas estreitinhas até ao quarto andar, senhor Guilhermino. Pois, de facto, de olhos fechados nunca experimentei…
O barulho dos canos era insuportável. Sabe que os cegos ouvem coisas como os cães, coisas que mais ninguém escuta…
A vida fazia-se, fez-se sempre na rua. Certo dia, depois do 25 do 4 porque o senhor Guilhermino a meio deste vórtice temporal disse maldito 25 de Abril, por isso é que eu digo: MALDITO 25 de ABRIL (está em caps, porque a voz do senhor Guilhermino elevou-se, só se eleva, de facto, para falar mal da revolução dos cravos), Gilberto Almeida Monteiro, vestia camisa branca e ziguezagueava com o seu carro pelas ruas estreitas do Intendente.
Este conhecido marinheiro do Intendente era um homem à frente do seu tempo. Muito antes de inventarem a PlayStation e muito menos o popular joguinho Grand Theft Auto, onde se ganham pontos a atropelar as avozinhas que passeiam seus netinhos em carrinhos de bebé, já ele fazia pontaria aos ceguinhos (que ao que constava na época valiam pontos a triplicar).
Atropelou-me e ainda me chamou nomes feios. E eu também lhe chamei os mesmos nomes que ele nos chamou, ora pois, não sou de me ficar.
Cego tombado na calçada, mulher aos gritos, um carro de marinheiros divertidos com a cena rocambolesca (e uma série de pormenores que eu não consigo decifrar da minha caligrafia de há mais de um mês atrás). Não o deixem fugir que eu estou ferido, mas nisto sai do carro um outro de seu nome António Coelho, de camisa grenat (mais referências cromáticas vindas de um cego; é impressionante a memória visual deste cego de 87 anos), e ia a dar um pontapé na barriga da minha mulher, quando saem da taberna muitas prostitutas, que lhes cercaram o carro e deram murros no capot, e aí os valentes marinheiros trancaram-se lá dentro e já não eram tão valentes.
Vieram dois polícias, que viram tudo mas fizeram a vista grossa, abeiraram-se do carro, eu caído no chão, e eles com as mãos atrás das costas (impressionante as coisas que este cego viu há mais três décadas atrás), era só cagufa, porque estes marinheiros eram muito conhecidos na zona do Intendente.
O polícia mais novo já levava dinheiro na mão e o sub-chefe Barata, quando cheguei à esquadra para apresentar queixa contra os malandros, também já tinha a carteira bem recheada de notas.
O senhor Guilhermino deve aos marinheiros Gilberto Almeida Monteiro, de camisa branca, e António Coelho, de camisa grenat, um volte-face do seu destino e da sua mulher que não era deficiente mental, apenas atrasadinha.
Mas esse, só há-de ser contado no próximo episódio da saga do senhor Guilhermino (não queriam mais nada, duas horas e meia de patuá telefónico reduzido a dois posts…)