terça-feira, fevereiro 27, 2007

O administrador do condomínio

O senhor Domingos é tal e qual como imaginado, de raça pequenina, miudinha.
Sabe-se lá porquê, nasce-se com este dom de adivinhar a principal característica fisionómica de um interlocutor, através de um timbre de voz transmitido via GSM.
É uma coisa que corre na família; a Magui, por exemplo, nunca falha – ouve um gato recém-nascido a soltar os primeiros miados e, prontamente, por artes mágicas, sentencia se é um menino ou uma menina. Em 99 por cento dos casos acerta.
Não nos serve de nada, não é um talento suficientemente inebriante para fazer cabeça de cartaz de uma feira de aberrações, ou seja, não dá para ganhar a vida com isto, e depois também não é coisa que convença nenhum empregador numa entrevista para um cargo que pague mais do que o valor hora de uma empregada doméstica.
O senhor Domingos foi um erro de “casting”. Administrador do condomínio durante sete anos fugiu à obrigação de convocar reuniões, cobrar mensalidades, elaborar planos de actividades e adjudicar reparações em dois prédios anteriores a 1850 que suplicam por ajuda para não caírem aos pés da esquadra de Santa Marta.
O senhor Domingos deixou a casa toda desarrumada e agora a sindicalista deslumbrante é, também, administradora do condomínio. Onze mil euros de receitas não cobradas. Seis anos de contas por fazer. Adjudicações de suspeitas empreitadas a trolhas seus amigos.
O senhor Domingos sorriu com a sua boca pequenina, quando escapou ileso a uma moção de censura dos condóminos pela sua fraca performance à frente dos desígnios dos prédios número 84 e 86. Pensou com os botõezinhos pequeninos da sua também pequenina camisa de xadrez – desta já me safei. Não fiz a ponta de um corno, não apresentei contas, acumulei dívidas, e estes totós nem um raspanete à minha fraquinha gestão deixam na acta da reunião.
Saiu todo pimpão, o senhor Domingos. Nessa noite, ficou acordado até à uma da manhã; parecia uma criança em véspera do Carnaval.
O senhor Domingos, não quero ser má-língua, deve cheirar mal da boca. Mas o pior de tudo, é que infringiu todas as alíneas do código de conduta e de ética da Ordem dos Administradores de Condomínios. É uma vergonha para a classe. Terá que ser exterminado.
Ou então torturado com requintes de malvadez, qualquer coisa como passar à mão e com caligrafia exemplar todas as actas dos condomínios dos imóveis sitos na freguesia de Coração de Jesus. A administração de condomínios é como uma sociedade secreta, exige ainda mais fidelidade que a própria máfia. Já sei – o senhor Domingos devia ficar sentado à porta da Associação Lisbonense de Proprietários com um chapéu de burro na cabeça. Mau administrador de condomínios.
As crianças deviam escarrar à porta do senhor Domingos.

13 dias sem postar




Mas já cá venho. Porque a sindicalista deslumbrante é agora a administradora do condomínio.

quarta-feira, fevereiro 14, 2007

O senhor Guilhermino III - a saga continua e está quase a acabar

Senhor Guilhermino, não me quer dar o seu número que eu ligo-lhe de volta, é para não gastar mais dinheiro…

O senhor Guilhermino estremeceu – contaram-se três segundos de silêncio total –, recusou-se a desligar a chamada e gaguejou qualquer coisa como eu estou de olho na porta; se a mulher entra por aqui e me apanha agarrado ao telefone é sermão e missa cantada, não sei porque tanto se amofina o raio da mulher, quem é que paga a conta, quem é que lhe paga, aliás, as idas ao cabeleireiro? (e do outro lado do bocal, numa janela sobre a Andrade Corvo, houve também uma pausa, a mente elevou-se para até ao tecto e pôs-se a visualizar um cego de olho na porta).

Eu é que já fazia um xixizinho, raisparta o drenante com sabor a anis, mas o senhor Guilhermino não podia arriscar desligar o telefone; sabe-se lá há quanto tempo ninguém o escutava sem delongas. Então continue, senhor Guilhermino, estou aqui, sou toda ouvidos.

Branco Rodrigues teve mais sorte que o senhor Guilhermino. Os pais, no final do século XIX, não o acharam amarelo, ou menos filho só porque os seus olhos nasceram sem o dom de ver.
Branco Rodrigues, leio algures no escuro da net, enquanto danço o fandango com vontade de ir mudar a água às azeitonas (que bonita expressão) e oiço a história da vida do senhor Guilhermino contada em duas horas e picos, foi o primeiro grande impulsionador da valorização dos cegos em Portugal. Em 1896 criou uma aula de leitura e de música no Asilo de Nossa Senhora da Esperança, em Castelo de Vide. Um ano depois, numa sala cedida pela Misericórdia de Lisboa, instalou outra aula de leitura.
No redondo ano de 1900, num andar da Escola Comercial Rodrigues Sampaio, cedido por Despacho Ministerial, abriu a Escola Intelectual e Profissional de Cegos, que esteve instalada em vários edifícios e acabou por transformar-se no Instituto de Cegos Branco Rodrigues, em São João do Estoril – a mesma casa com vista sobre o mar (muito relevante para quem não vê) onde o senhor Guilhermino teve que dormir o seu sono angélico, de 1927 a 1947, com as mãos coladas ao pescoço. Em 1903, os cegos do Porto também passaram a contar com a ajuda deste benemérito.

Branco Rodrigues nasceu num berço de ouro, e gastou a sua fortuna na dignificação dos cegos portugueses. É a ele, e a um generoso funcionário da Imprensa Nacional cujo nome não aparece em nenhuma das páginas pescadas pelo Google, que se deve a primeira impressão em Braille, na viragem do século XIX, descubro enquanto escrevo tudo o que o senhor Guilhermino me conta (e, não contem a ninguém, mas ainda consigo, para além de ler, escrever conteúdos totalmente distintos, mascar pastilha com destreza).

O senhor Guilhermino não conheceu Branco Rodrigues, mas chama-lhe pai. Mas em 1947, vinte anos depois de os seus verdadeiros pais o terem abandonado numa casa onde se ouvia o rugido do mar e o pouca-terra do comboio, e terem apanhado o vapor para o calor tropical do Brasil, o senhor Guilhermino era um homem feito, vinte e sete anos de idade e uma tez mais rosada, era pois hora de partir, era a hora de partir porque havia mais cegos em lista de espera para aprenderem a ler pautas sem olhos (como raio é que um cego lê uma pauta?), e o senhor Guilhermino não teve outro remédio senão sair da sua casa, sair a contragosto, com uma mala na mão e um violoncelo noutra.
E foi para a rua, a verdadeira casa dos cegos.

Então o que é que me podia esperar? Fui para a rua, fui tocar para a rua e pedir esmola. As pessoas deitavam as mãos à cabeça, diziam, não há direito, não há direito.
Foi nesses dias, anos que se seguiram que o senhor Guilhermino conheceu a sua mulher, a tal que lavava casas a escova a dois escudos por mês.
A minha mulher não era deficiente mental (?! Lá estou eu de boca aberta a ouvir o senhor Guilhermino), era atrasadinha, mas era muito humana, chorava, chorava mesmo muito, chorava pelos meus olhos que não a viam.

Eu dizia-lhe: não te preocupes. Tu és a minha máquina; eu sou o teu cérebro.

E a vida seguia assim, ela guiava-o, era os seus olhos, e ele era o seu pensamento. Os primeiros anos de casados viveram numa casinha da câmara em parte incerta e de onde foram expulsos por circunstâncias que faltaram apurar num telefonema de duas horas com uma perfeita estranha.

A coisa ficou torta numas pequeninas águas-furtadas nas Portas de Santo Antão.

Imagino sim o que é subir umas escadas estreitinhas até ao quarto andar, senhor Guilhermino. Pois, de facto, de olhos fechados nunca experimentei…

O barulho dos canos era insuportável. Sabe que os cegos ouvem coisas como os cães, coisas que mais ninguém escuta…

A vida fazia-se, fez-se sempre na rua. Certo dia, depois do 25 do 4 porque o senhor Guilhermino a meio deste vórtice temporal disse maldito 25 de Abril, por isso é que eu digo: MALDITO 25 de ABRIL (está em caps, porque a voz do senhor Guilhermino elevou-se, só se eleva, de facto, para falar mal da revolução dos cravos), Gilberto Almeida Monteiro, vestia camisa branca e ziguezagueava com o seu carro pelas ruas estreitas do Intendente.

Este conhecido marinheiro do Intendente era um homem à frente do seu tempo. Muito antes de inventarem a PlayStation e muito menos o popular joguinho Grand Theft Auto, onde se ganham pontos a atropelar as avozinhas que passeiam seus netinhos em carrinhos de bebé, já ele fazia pontaria aos ceguinhos (que ao que constava na época valiam pontos a triplicar).

Atropelou-me e ainda me chamou nomes feios. E eu também lhe chamei os mesmos nomes que ele nos chamou, ora pois, não sou de me ficar.

Cego tombado na calçada, mulher aos gritos, um carro de marinheiros divertidos com a cena rocambolesca (e uma série de pormenores que eu não consigo decifrar da minha caligrafia de há mais de um mês atrás). Não o deixem fugir que eu estou ferido, mas nisto sai do carro um outro de seu nome António Coelho, de camisa grenat (mais referências cromáticas vindas de um cego; é impressionante a memória visual deste cego de 87 anos), e ia a dar um pontapé na barriga da minha mulher, quando saem da taberna muitas prostitutas, que lhes cercaram o carro e deram murros no capot, e aí os valentes marinheiros trancaram-se lá dentro e já não eram tão valentes.

Vieram dois polícias, que viram tudo mas fizeram a vista grossa, abeiraram-se do carro, eu caído no chão, e eles com as mãos atrás das costas (impressionante as coisas que este cego viu há mais três décadas atrás), era só cagufa, porque estes marinheiros eram muito conhecidos na zona do Intendente.

O polícia mais novo já levava dinheiro na mão e o sub-chefe Barata, quando cheguei à esquadra para apresentar queixa contra os malandros, também já tinha a carteira bem recheada de notas.

O senhor Guilhermino deve aos marinheiros Gilberto Almeida Monteiro, de camisa branca, e António Coelho, de camisa grenat, um volte-face do seu destino e da sua mulher que não era deficiente mental, apenas atrasadinha.

Mas esse, só há-de ser contado no próximo episódio da saga do senhor Guilhermino (não queriam mais nada, duas horas e meia de patuá telefónico reduzido a dois posts…)

quinta-feira, fevereiro 08, 2007

Os pequenos salazares

Tenho melhor que fazer. Tenho, por exemplo, que contestar a multa de há dez dias atrás e convencer o Director Geral de Viação que fui autuada injustamente (o sacaninha do polícia vai levar na próxima lua cheia com o feitiço da impotência e ai de mim que dou em criminosa se descubro que viatura conduz ele, aqui na pacata rua de Santa Marta).

E eu até nem ia escrever sobre o referendo para não me chatear com os meus amigos do sim. E só o fiz porque sofro de stress pós-traumático, apesar de nunca ter interrompido a gestação de um filho meu. Sofro 15 anos depois da tarde na saleta da Paula e da descarga do autoclismo e choro descontroladamente pela minha irmã que não nasceu.

Irrita-me, sobretudo, que o post mais abaixo seja o mais comentado deste blogue, suplantando um dos mais bonitos e mais bem escritos desta horta (este).

E depois tenho o comentário do Filipe a dizer que aquele foi o primeiro texto do (T)ralha que detestou, e isto apenas, presumo, porque tenho o azar de não pensar como ele, e há ainda o telefonema do Trigo de Abreu, o desaparecido Trigo de Abreu, o muito saudoso Trigo de Abreu que, por acaso, não leu o post das três dezenas de comentários, mas que ficou pessoalmente desiludido com esta sua amiga por ela no próximo Domingo ir desenhar uma cruzinha na opção Não. Debaixo de uma chuva torrencial ouço que sou irracional por votar não, que afinal não sou tão boa pessoa como penso que sou, porque tenho o desejo mórbido de ver mulheres na cadeia.

Há um pequeno Salazar em cada um de nós.

quarta-feira, fevereiro 07, 2007

O cavalinho da chuva

Tirem o cavalinho da chuva, todos os que lêem esta gaita e que partilham o mesmo edifício com vista para a Andrade Corvo: ninguém, nem mesmo os sindicalistas deslumbrantes, legalmente protegidos no próximo biénio pelo estatuto de delegados sindicais, mas mesmo ninguém nestes milhares de metros quadrados pode respirar bem fundo – e não podem mesmo respirar fundo, porque a qualidade do ar, apesar de ninguém fumar despudoradamente como antigamente, é do piorzinho que já se viu, regrediu aos tempos de umas instalações na Quinta do Lambert cobertas de material radioctivo, metem 70 tipos onde havia 40 o que é que querem? –, ninguém pode miraculosamente deixar de roer as unhas por causa do nervoso miudinho, ou de sentir borboletas nocturnas no estômago encandeadas por um holofote de mil watts sempre que o telefone toca, não pensem que ninguém vos vai chatear porque o vosso salário é uma migalha, ou que não vos vai sair a rifa porque são caladinhos de natureza e nunca levantaram ondas; pior, não se sintam protegidos pela graça do divino espírito santo lá porque são engraçados ou porque há tempos caíram em graça; por favor, nem ousem planear o nascimento de um filho ou mesmo trocar de carro.

Olho para a esquerda e está a filha do grande engenheiro. Olho para a direita e está o britânico pago a peso de ouro de 19 quilates que decidiu que o logótipo do meu jornal passa a ser um P vermelho. E se olhar para trás lá está o meu presidente. Passam o dia fechados na sala envidraçada com a vídeo-conferência ligada.

Ninguém sabe o que tanto discutem, porque é que tanto reúnem.

A cena repete-se. E mesmo depois de se repetir 63 vezes nos últimos três meses não deixa de doer assistir às lágrimas de quem vê a dedicação de quase duas décadas de vida reduzida a um cheque do BPI.

Ninguém está a salvo.
Hoje eu soube que ninguém está a salvo.

segunda-feira, fevereiro 05, 2007

Declaração de voto

A Célia viu-se grávida quando eu ainda só pedia três no bate-pé e passava as tardes sentadas num Morris Minor abandonado na rua 2, uma rua do Bairro de Alvalade que tem nome de poeta há muitos anos, mas que todos ainda conhecem como rua 2.
E foi dentro do Morris, eu ao volante a fingir que sabia pôr mudanças apesar de não saber qual era o pedal da embraiagem, que a Célia nos anunciou que naquela tarde ia correr como louca, ia fazer abdominais até as suas forças se esgotarem, que ia pular na sala com uma corda de ginástica até aquilo se desprender. A Célia era ginasta de alta competição e o desmancho não ia ser feito num vão de escada, iriam bastar oito horas de treino aeróbico violento.
E todas as ocupantes do Morris estavam lá, na saleta da Paula onde se faziam sessões de espiritismo numa mesa de pé-de-galo, quando o feto se soltou das entranhas da Célia. E todas ouviram o barulho do autoclismo e nunca mais falaram dessa tarde, aliás, nunca mais falaram umas com as outras, a nossa infância morreu ali, foi-se com a descarga da sanita e com a pasta ensanguentada.

Por outro lado, a prima solteirona da Ana já estava habituada. Uma vez por ano, setenta contos, e um dia deitada na cama com direito às visitas de todos os familiares mais próximos no apartamento de dois quartos no subúrbio. Era esta a receita de um encontro anual com um amante marinheiro que teimava sempre em resultar numa gravidez. E eu lá os acompanhei, lençóis de flanela, acenos de desaprovação com a cabeça, a pílula, o preservativo, porquê, e as lágrimas da outra a rolarem para a base de um rosto pálido.

O João diz-me na cama, saca dos seus conhecimentos de seminarista por entre o edredon, diz-me que os filhos que não nasceram ficam no limbo a tremer de frio para toda a eternidade. E eu penso na minha irmã com nome de fada que foi aspirada não fosse ser mongolóide ou coisa pior, e desato a chorar porque ela merecia o risco, merecia ter dezassete anos e eu nem sei se era uma menina, nunca tive coragem de perguntar.

Aos vinte e quatro foi a minha vez.
Não tomava nada, não exigi latex porque estava em rota descendente de auto-destruição, tanto fazia: diariamente engolia duas tomas de sertralina, bebia, fumava e escrevia sobre o Código do Trabalho, comprava toneladas de sapatos caros e a vida era isto, ninguém me convencia que voltaria a sorrir de novo.

Por causa de um feto estive cinco meses na cama, em casa, em repouso absoluto. Perdi o meu posto de trabalho (às 37 semanas de gravidez, saí de casa, fui a Picoas e constatei que estava tudo encaixotado e que já outro jornalista dedilhava atrás da minha coluna).
E por duas vezes – às 24 e às 26 semanas – entrei numa urgência de obstetrícia prestes a parir, e os médicos, em Santa Maria, caso sirva de algo este detalhe, minimizaram a coisa que trazia dentro de mim, que não era viável, que o meu organismo me estava a avisar de algo que eu devia escutar e aceitar, e das duas vezes assinei um termo de responsabilidade e dei entrada numa urgência privada.

O meu feto tem 38 mais nove meses agora. É uma menina loira de olhos azuis que herdou a mesma propensão às anginas que a mãe. Às dez semanas, eu nem tinha a certeza de quem seria o pai, mas tinha a certeza que naquele ecrã, onde fixei o olhar por dois minutos e sorri ao discernir dezenas de pontapés, estava uma vida.

Compro menos stilettos, pois compro, o ordenado não chega ao dia 15, é verdade, ganho cabelos brancos e perco anos de vida em corredores do Tribunal de Menores e afins, oh lá lá se ganho e se perco.

No sofá, cheia de febre e a dormir, está a não planeada Maria Carolina Ralha. Que eu quase perdi às 24, às 26 e às 37 semanas de gestação intra-uterina. Que me valeu uma cesariana de urgência sem anestesia e uma cicatriz no ventre [o aparelho do CTG a apitar por todo o lado, a pulsação do feto a cair dos 160 para os 60, a enfermeira Deodata a gritar chamem o doutor Moniz, a desligar os alarmes, outra a cantar-me ao ouvido uma canção do Carlos Paião, uma a rapar-me os pelos púbicos, e a minha mãe num elevador com o obstetra e eu no outro a chorar sem fazer barulho, e depois um bloco operatório de mármore rosa, o doutor Moniz com pulover de losangos, eu a dizer à Magui, não consigo respirar, e a desmaiar logo depois de ver 2,9 quilos de gente ensanguentada por cima de um lençol branco]. A Maria Carolina que, em Abril de 2003, tinha dez semanas e era do tamanho de um feijão.

O (T)ralha vota não no referendo sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez até às dez semanas de gravidez a pedido da mulher, porque acredita que cada vida é única e irrepetível e que, em concreto, aquela que dorme no sofá com uma otite e uma amigdalite agudas vale bem mais do que três pares de stilletos por mês.

quinta-feira, fevereiro 01, 2007

O parecer e as unhas com pós de perlimpimpim

E quando a sindicalista deslumbrante pediu à sua sombra muito mais magra e muito mais loira que ele se empoleirasse no escadote centenário que veio de brinde com um apartamento pombalino em estado de semi-ruína, nada fazia prever que os astros preparavam nas seguintes 48 horas uma surpresa bem maior do que duas dezenas de vernizes de cores e feitios esquizofrénicos, guardados num baú de madeira.
Guardados religiosamente numa pequena caixa que também esconde, lá em cima, na última prateleira, a três metros de altura, ao nível da Duque de Loulé, algum cotão de mágoas; vernizes de todas as cores, com estrelas e purpurinas, verdes, azuis, amarelos, e até uma edição especial psicadélica da Dior, que reage, ou pelo menos reagia, há cinco anos atrás, à luz negra das discotecas; duas dezenas de frasquinhos de vidro guardados na secreta esperança que um dia as unhas deixassem de se esfarelar como uma rocha de talco; escondidos no baú, fechados a sete chaves, vinte vernizes malcheirosos, dos mais caros aos das lojas dos 300, à espera que um anjo pequenito me chegasse – eu não sabia, quando os tranquei, se ia ter um anjo loiro, ou um moreno –, e dissesse assim, depois do jantar: Quero pintar as unhas para ficar uma princesa.
A pequenota decidiu e a sindicalista deslumbrante pintou as unhas com pós de perlimpimpim. Unhas de fada, com brilhos de mil cores. E foi com unhas mágicas que a sindicalista deslumbrante se cruzou numa viagem de elevador silenciosa com o presidente do conselho de admiração.
Ele cortou o silêncio que se ouvia num quadradinho da marca Schindler e disse: O que é que achas?
E o que a sindicalista achava mesmo é que não o conhece de lado nenhum para o diálogo fluir na segunda pessoa do singular, e por isso cerrou os dentes quando se preparava para responder: Acho que o respeitinho é bom e eu gosto.
Na verdade, o presidente do conselho de admiração estava à rasca porque não gostava de silêncios de elevador e, seguramente, estava-se bem marimbando para a opinião da sindicalista deslumbrante sobre umas folhas de papel impressas a cor que vão estar nas bancas de todo o país a 12 de Fevereiro, desde que ela continue a trabalhar bem e barato e sem chatear muito, e era isso é que o fazia sorrir naquele cubículo vidrado – e o presidente do conselho de admiração tem dentinhos pequeninos, diga-se a despropósito.
Tenho medo, disse a deslumbrante sindicalista que mais uma vez teve vontade de picotar os pulsos porque não estava mascarada de deslumbrante, estava, na realidade com o cabelo em desalinho, mas desculpou-se rapidamente a si própria, já que nada faria supor que teria encontros imediatos de terceiro degrau com o presidente do conselho de admiração, até porque ia no elevador e não nas escadas e o terceiro degrau era do outro lado, na saída de emergência.
Tinha medo. Tinha tanto medo daquilo como de fazer um implante de silicone. É uma questão de hábito, deveria ter ela dito, teria sido a melhor resposta, e até já estava um post nesta tralha escrito sobre o assunto, rais partam que não lhe ocorreu, deve ter sido de não estar particularmente deslumbrante nessa manhã.

O senhor H. é o Ambrósio lá de cima. Coxeando até ao novo posto de trabalho da sindicalista deslumbrante perguntou-lhe baixinho: “Então? O que é que dizia a Inspecção-geral do Trabalho?”

E a sindicalista deslumbrante franziu o sobrolho e não teve tempo de dizer: “Sobre o quê?”, porque o senhor H. ficou nervoso e antecipou-se com um: “Não me digas que não recebeste?”.
A sindicalista deslumbrante gosta do senhor H. Até assumir estas lides sindicais, o contacto entre o senhor H. e a sindicalista deslumbrante era nulo, bom dia boa tarde, ah, sim, e de dois em dois anos, como manda a lei, o empregador da sindicalista deslumbrante fazia umas consultas de medicina no trabalho, e era sempre o senhor H. que as marcava, aquilo era uma fantochada, por mais que a sindicalista deslumbrante se esforçasse para chocar os médicos, eles, porém, só eram pagos para escreverem a vermelho APTO.

Não, não tinha recebido, e nunca tinha visto o senhor H. a andar tão depressa e sem mancar. Agarrou-lhe no bocal do telefone, ligou para não sei quem, onde é que está a carta da Inspecção-geral do Trabalho, seu burro, ela já não é dessa secção há mais de três anos – e nisto, a sindicalista deslumbrante maravilhada e boquiaberta com o notável conhecimento do senhor H. relativamente ao seu percurso profissional, saberia também o seu director a mesma cronologia? –, a Diana é a presidente da Comichão de Trabalhadores, é sempre a ela que têm que ser entregues todas as cartas – e com esta de ser presidente, a sindicalista deslumbrante sorriu –, e desligado o telefone, a carta registada apareceu como por magia no piso que fica acima do novo local de trabalho da deslumbrante defensora dos direitos dos trabalhadores.
A sindicalista deslumbrante sentou-se numa secretária vaga da tal secção à qual não pertencia há mais de três anos. E leu. Tremiam-lhe as mãos e ela à medida que passava folhas, olhava para as unhas de fada, pintadas a pedido do anjo loiro, e pedia em segredo um milagre. Chegou à última folha, sem ler com a devida atenção as anteriores. Leu a conclusão: “sou de parecer negativo ao despedimento de fulana, por motivo de extinção de posto de trabalho.”
A sindicalista deslumbrante chorou de alegria abraçada a uma grande repórter de olhos azuis.

Foram os anjos que no último dia do prazo legal avisaram a sindicalista deslumbrante para chamar a Inspecção-geral de Trabalho. As tais epifanias de que ela se fartava de escrever neste blogue.

Não tinha garrafa de Veuve Clicquot para brindar. Sentou-se, no final do dia, na tasca da Dona Beatriz e bebeu um whiskey oferecido pela casa (e andava a pensar candidatar a Dona Beatriz ao concurso de melhor vizinho de Portugal no programa do Goucha na TVI). Brindou e riu com a satisfação do dever cumprido, mesmo sem saber que oito horas depois seria multada injustamente por circular na faixa do Bus, na Duque de Loulé. E ingenuamente pensou que o presidente do conselho de admiração teria mais tento na língua e que pensasse duas vezes quando lhe apetecesse dizer extinção do posto de trabalho.

Era mais uma vitória, era um manguito do Zé povinho ao presidente do conselho de admiração com unhas pintadas com purpurinas de mil cores.

Por esse mundo fora, ainda havia muita gente que se limitava a dizer: É aquela que tem um cu grande.