segunda-feira, maio 16, 2005

Custódia de Jesus

Depois de tu morreres, quando eu era pequenina e a Magui me fazia, todas as manhãs, à pressa, duas trançinhas simétricas, à índia, como aquelas que eu trago hoje -

tu fazia-las com mais amor: eu sentava-me no banquinho de três pernas da casa de banho,

(que eu rachei numa tarde, quando tentava agarrar já não sei o quê do armário dos remédios, e que nunca foi substituído até à tua casa, que tinha alcatifa verde relva na entrada, ficar em profundo silêncio)

à espera que tu chegasses com um alguidar com um fundinho de água, que servia para domar os meus enormes cabelos. Baixavas o tampo da sanita, sentavas-te, enorme, na tua pose de altivez. Trazias contigo um pentinho pequenino, com o qual dividias meticulosamente o cabelo ao meio e, depois de o entrançares, fazias um caracol na ponta, enrolando as madeixas à volta do teu dedo indicador e humedecendo-as com água e um bocadinho de sabão azul e branco, para ele não se desfazer; depois, o toque final: enfeitavas as trançinhas com um laçarote, daqueles que comprávamos ao metro, numa retrosaria ao lado dos Armazéns do Minho

-, eu encontrava consolo nos dias de chuva, porque, para mim, tu andavas nas limpezas da tua nuvem.

Chamavas-me abelha mestra: é incrível como me leste era eu ainda tão pequenina.

Hoje sonhei contigo, vóvó Tóia.

Estava deitada no sofá de napa alaranjado, com a cabeça em cima do teu colo, ouvia o teu coração e distraía-me a sincronizar a minha respiração com a tua.
De repente, estávamos lá em baixo, na Rua do Tarrafal, a comprar leite na UCAL e, um pouco mais à frente, a aviar hortaliças numa carroça de madeira. Mais um frame do meu sonho, e desta vez estamos na Praça de Alvalade a comer tremoços. Mais 24 imagens por segundo, e eu tenho um cartucho de papel almaço cheio de cerejas: tu ensinas-me a fazer brincos com as cerejas, já que a Magui teima em não me deixar furar as orelhas.
Estás já muito doente, na escola a professora Gertrudes Maria manda-nos ir ao canavial da Igreja de santa Joana Princesa, cortar uma cana, para fazermos marionetes em casa. O Zé vai buscar-me à escola e corta a cana e o dedo, com um canivete, mas a Magui trabalha até tarde e não tem tempo para fazer a marionete.
No dia seguinte, eu chego a casa a chorar: todas as mães fizeram a marionete para os filhos - são todas muito mal amanhadas: não passam de um pau com uma cabeça feita de uma peuga velha -, só eu é que chego de mãos a abanar.
Tu perguntas o que se passa, eu explico-te. Levantas-te da cama, prometes-me a marionete mais bonita - "vou fazer-te uma noiva" - e sentas-te em frente à Singer e ali ficas, durante horas a fio, a costurar. Abres uma gaveta da cozinha e fazes magia: transformas um pauzito nos braços da minha marionete, que forras com um retalho de tecido muito bonito, com florzinhas minúsculas cor-de-rosa, com o qual fazes, também, o vestido da noiva.
A cabeça, fazes com um collant cinzento, que enches de sumaúma. Cozes dois botões, que são os olhos, bordas uma boca com uma linha encarnada, fazes uma cabeleira com lã. O toque final: um véu de tule branco.
Eu não sei onde é que tu foste arranjar forças para fazer a minha marionete. Não sei onde encontraste, assim, do pé para a mão, o tecido das florzinhas minúsculas ou o improvável tule. Só sei que, naquele dia, fizeste magia aos olhos de uma menina de tranças enormes. A minha marionete faz ainda vincar a covinha que eu tenho na bochecha direita.
Fez 20 anos, a tua noiva. Está guardada numa caixinha para não se estragar: o collant que lhe emprestou um rosto tem uma malha enorme, os olhos estão quase descozidos, os cabelos e o véu estão enegrecidos pelo tempo. Vou visitá-la muitas vezes, mas eu não me atrevo a mexer-lhe: a cozer os botões dos olhos, ou a lavá-la num alguidarzinho como aquele que tu usavas para me fazer as tranças.
Vou guardá-la sempre.
Fazes-me mesmo muita falta, vó.

4 comentários:

Anónimo disse...

Este é mais um dos teus posts que me faz chorar... e sorrir, qdo me lembro tb da minha avó Isabel, que tanta falta me faz. Um beijo grande. Para as duas.

K disse...

acho que as avós são sempre especiais e a minha também faz magia...:)

Anónimo disse...

melhor q mãe uma vez, é quando encontramos uma mãe duas vezes que se atravessa no nosso caminho assim que nascemos, como que a reclamar a herança que, inevitavelmente, também lhe pertence.
melhor q carinho grande, é o carinho imenso q foi forjado na vida mais longa e mais sofrida e, por isso, com tanta mais sensibilidade para emprestar aos filhos a dobrar.
as histórias poderiam encher as páginas das colunas de qualquer blog, mas seria sempre assim: mais forte, mais alta, mais longe, mais amor, mais vida, mais garra, mais dedicação mais ternura, mais vontade, mais amiga, mais cúmplice, mais exemplo, mais heroína, mais leoa porque já sabe que a vida não vai deixar de criar espinhos aos meninos a dobrar.
e as saudades são sempre mais do q muitas, especialmente quando sinto a tradução do q me vai no peito, na homenagem traduzida nas palavras, que também eu, faço em silêncio todos os dias.
a minha também era Custódia, mas eu chamava-lhe Avó Toda, é o meu exemplo, e era a mulher mais linda do mundo.
obrigado Diana, pelas memórias invocadas.

Anónimo disse...

passem os anos que passarem existem pessoas que sempre nos fazem falta e q por vezes nos visitam em sonhos.
o que custa depois é acordar e sentir novamente o vazio q ficou