Escrever sobre uma pessoa que amamos, ou que, outrora, sabe-se lá porquê, desejámos com todo o nosso ser, é um exercício doloroso. Fazê-lo para milhares de leitores portugueses é angustiante.
Das duas uma: ou saía uma grande merda, ou um grande texto. Não ficou mau.
Não consigo, ainda, escrever sobre o miradouro de Santa Luzia, sobre quase meia dúzia de horas de entrevista e acerto de contas pessoal. Fica o texto.
Novos Lisboetas
Um cidadão do mundo
Na passada reencarnação talvez tenha sido caixeiro viajante...
Nesta é designer.
Andries Vring nasceu, por acaso, em Leidschendam, na Holanda, há 30 anos, filho de pai holandês e mãe lisboeta. “Por acaso”, porque, com apenas seis meses de idade, atravessou meio continente e um oceano e rumou até ao Brasil e, desde então, nunca mais parou.
Primeiro foi São Paulo, depois Salvador da Bahia e, novamente, São Paulo. Levou esta vida de “saltimbanco” nos seus cinco primeiros anos de vida, dos quais pouco se recorda, à excepção de ter sido vizinho de Vinicius de Moraes e de ali ter aprendido os primeiros rudimentos da língua de Camões e também da de Shakespeare, porque frequentava uma escola americana.
Aos seis anos, em idade de ingressar no ensino primário, volta para a Holanda, para uma cidade perto de Haia. A adaptação não é fácil. Fala “vringuês” – uma mistura de três línguas, o holandês, português e inglês. “Um dia, estava na escola, entalei um dedo e não consegui explicar à professora o que me tinha acontecido. A minha mãe levou-me ao médico, preocupada, porque eu misturava as três línguas”, recorda, entre gargalhadas e com um sotaque português perfeito.
Com 13 anos volta a mudar de país. Desta vez, para Portugal. “O meu pai sempre disse que queria voltar para Portugal, onde conheceu a minha mãe, assim que se reformasse”, explica Andy. “Fomos para Alcobaça por mera coincidência, porque conhecíamos na Holanda um casal português que era de lá e os meus pais ficaram apaixonados” pela então vila.
Mais uma vez, tem que lidar com a barreira da língua: “Falava muito pouco português. Custou-me muito a habituar”, admite Vring. Mas teve sorte. Sozinho, no corredor das salas de aula, foi interpelado, em inglês, por dois garotos da sua turma, também eles recém-chegados ao país, filhos de emigrantes portugueses. Foi amizade à primeira vista. Até hoje. Passou esse primeiro ano escolar em Portugal, o oitavo, com boas notas e sem nenhuma negativa. Como prémio, os pais ofereceram-lhe uma prancha de windsurf – uma das suas grandes paixões.
Andy Vring não sabe o que respondia quando lhe perguntavam: “O que é que queres ser quando fores grande?”. Não dizia, de certeza: “Quero ser designer”. Sempre gostou de desenhar e pintar e, por isso, no nono ano, a escolha é óbvia: segue a área de arte e design. Dois anos mais tarde, decide ser escultor e muda mais uma vez de cidade. Para as Caldas da Rainha. Mas desilude-se: “não precisava de um curso superior para o que me estavam ali a ensinar...”
Vem para a capital, pela primeira vez, com o objectivo de estudar Design, na Universidade Lusófona. Por aqui fica durante quatro anos. Mas Andy Vring tem “bichos carpinteiros” a fervilhar nos genes – acaba o curso e embarca para a Holanda, desta vez para Amesterdão, onde estuda Design industrial.
“Depois, foi mais uma sucessão de coincidências: surgiu a Internet quando eu estava a trabalhar num bar que disponibilizava acesso à Net. Eu já tinha interesse por esta área e decidi arriscar”. Andy Vring apanha, então, a euforia das empresas tecnológicas (a chamada “bolha” das “dot com”). Como a oferta de profissionais é escassa e a procura elevada, trabalha como freelancer e, também, em algumas das mais prestigiadas agências de publicidade, como a Grey e Advance Interactive.
Foram seis anos que passou em Amesterdão, de 1997 a 2003. Com um nome estabelecido no mercado e um chorudo salário, volta a sentir-se insatisfeito e com a portuguesíssima saudade herdada de sua mãe a falar mais alto. Volta para Alcobaça, em 2003, um ano que apelida de “sabático”.
Tentou estabelecer-se como designer “freelance” na zona centro, tendo trabalhado com as autarquias de Tomar, Alcobaça e elaborado o primeiro videoclip da banda Gomo, com a agência M104.
Vem, no final de 2003, para Lisboa “por necessidade”, em busca de oportunidades profissionais que não encontra na região centro. Uma professora da Lusófona dá-lhe a mão e arranja-lhe emprego numa pequena agência de design, a Terra, onde trabalha até hoje na área multimédia.
Andy Vring mora na Praça Afrânio Peixoto, junto à Avenida de Roma: “um achado em Lisboa, com um jardim enorme em frente de casa e estacionamento sempre disponível a qualquer hora do dia”. “Gosto imenso de Lisboa, da sua morfologia. É uma metrópole europeia, mas, por outro lado, é muito aconchegante, tal como Amesterdão”, diz, mais uma vez sem se conseguir definir se sente mais português ou mais holandês. No seu bilhete de identidade consta a nacionalidade holandesa e o seu porte gigante denuncia à vista desarmada as suas raízes nórdicas, mas existe em Andy Vring um enorme conflito genético de duas pátrias muito distintas: “tenho uma parte de mim muito emocional, mais portuguesa, e uma outra parte mais fria, racional e calculista, que é mais holandesa; andam constantemente em choque”, nota.
“Ando sempre a saltitar. Tenho facilidade em fazer amigos, mas desapareço com a mesma rapidez”, confessa.“Conheço meio mundo e não conheço ninguém. Não tenho raízes...”, diz, sem muito orgulho do seu destino nómada.
Se Andy Vring fosse uma estação de Metropolitano seria, de certeza, a da Cidade Universitária, onde inscrito nas paredes de azulejo está a frase do filósofo Sócrates: “Não sou ateniense nem grego, mas sim, um cidadão do mundo”. Próxima estação?...